Crítica | Sobrevivente
O início das filmagens se dá em um mergulho nas profundezas marinhas da gélida Islândia. Baseado em uma história real, Sobrevivente remonta o conto de um grupo de pescadores que, nos anos 80, viajou em um embarque fatal, tendo sobrevivido apenas um deles – daí seu (repetido inúmeras vezes) título brasileiro. A fita marca o retorno do prodigioso Baltasar Kormákur à direção de filmes em seu país, após uma pequena parceria com Mark Wahlberg em Contrabando e Dose Dupla.
Sobrevivente tem muitas semelhanças narrativas com Tráfico de Orgãos, filme de Kormákur de 2010, ao mostrar um mundo distante do idealizado, em que os personagens são repletos de falhas e defeitos, com rotinas boêmias e ressacas que tentam esconder uma existência sem desafios além do ofício como barqueiros. Ao embarcar, a câmera se transforma em mais um tripulante, analisando o alto mar sob um viés tão realista quanto o modo de vida dos marujos.
A tempestade acomete o barco, derrubando seus tripulantes na superfície líquida, mas o frio intenso vai aos poucos ceifando a vida de cada um dos personagens. O espirituoso Gulli (Ólafur Darri Ólafsson), visto antes convivendo com uma bela família, se desespera para manter-se vivo, a despeito do mar revolto e das poucas possibilidades de sair dali com vida. Para não enlouquecer, ele lembra-se dos momentos marcantes que tinha com seus entes queridos, ecos de uma vida normativa e ordinária, distante do esforço hercúleo que teria de fazer para simplesmente não morrer.
Após ficar à deriva por um tempo praticamente incalculável, Gulli chega a uma enseada, chocando-se contra as rochas de um modo perigoso, quase fatal. A fim de não perecer, o protagonista se submete a condições insalubres, lançando mão de qualquer coisa para poder se alimentar, passando, inclusive, por eventos em que a realidade é questionada, entre a improbabilidade do que lhe ocorria e a ilusão de ter finalmente se salvado, ao encontrar a civilização que buscava desde os tempos em que seu transporte naufragou. O período curto entre os eventos gera uma sensação de eternidade para si.
Ao retornar ao seu lar, o sobrevivente é submetido a uma bateria de exames na tentativa de explicar o motivo de ter escapado da tragédia, a despeito principalmente de sua forma física rotunda. Aparentemente, sua gordura o impediu de morrer, isolando suas sinapses do efeito destruidor do congelamento, podendo, assim, fazer toda a movimentação necessária para que conseguisse sobreviver.
Após recuperação física, Gulli tem de enfrentar o monstro do cotidiano, a começar pelo velório, sem a presença dos corpos dos antigos companheiros, que têm no mar o seu túmulo. A dor acachapante o comprime para baixo, deixando-o inerte, incapaz de chorar. Sua expressão triste é cortada por olhos arrochados, cujas bolsas embaixo das pálpebras revelam que alguém queria chorar e desabafar, mas não tinha condições nem mesmo para isso.
Após não obter qualquer explicação plausível para a própria sobrevivência e não a dos demais, Gulli se lança em mais uma aventura marítima, superando seus temores para enfim fazer prosseguir sua vida. Após o subir dos créditos, é mostrado em uma pequena tela o depoimento do sobrevivente real, cuja sorte por ter permanecido vivo é destacada no emocionante depoimento de um sujeito que, ante o milagre que viveu, não faz nada além de perceber o quão ínfima é sua existência, possivelmente em respeito aos que perderam entes queridos na fatídica viagem. A direção de Baltasar Kormákur expõe uma abordagem bela de uma história não menos emocionante, sem apelar para cafonices ou mensagens edificantes, deixando o público tirar do filme as sensações que lhe convém sentir.