Resenha | O Máskara
O Máskara é um personagem muito popular, graças principalmente ao filme homônimo, O Máskara, de Chuck Russell protagonizado pelo astro em ascensão Jim Carrey. Na versão original em quadrinhos há a mesma irreverência e um largo uso de cores gritantes que há no longa. Mas o caráter das historias é diferente, sobretudo na violência explícita dos atos de quem usa a máscara verde, aqui chamado de Cabeção. A publicação que nos Estados Unidos foi compilada em dois volumes de Omnibus finalmente chega ao Brasil com uma edição caprichada da editora Pipoca e Nanquim.
Já no primeiro arco se nota o quão ácido é o roteiro de John Arcudi, acompanhado das letras super estilizadas de David Jackson (brilhantemente adaptadas por Arion Wu). A historia apresenta Stanley Ipkiss, um sujeito de meia idade, fracassado, calvo e covarde, que tem sorte de ser par de Katherine, uma mulher bonita, independente e muito esperta. A fim de tentar agradá-la, compra uma máscara e, depois do artefato surgir em sua frente em locais inesperado na casa, coloca-a sobre a face.
A transformação o faz lançar promessas de altruísmo, quebrando a quarta parede e falando diretamente ao leitor sobre ser justo e heróico – é aqui que reside uma das diferenças básicas da revista para o filme. Stanley não é um herói errático como o personagem de Carrey. E sim um escroto, violento e mal caráter que, em seus momentos menos egoístas, se aproxima de um anti herói. O personagem julga que o mundo lhe deve algo, que não o valoriza como deveria. Assim, faz uma lista negra de ações para resolver que culminam em uma rápida escalada de violência, ao ponto de homicídios se tornarem algo banal. De certa forma, sua mentalidade conversa bem com o fenômeno dos incels (que em tradução literal seria algo como celibatários involuntários). Há intolerâncias bem graves em seu discurso e ação, piorando a medida que usa mais a máscara, como se seu pior emergisse do peito, ganhando carne, realidade e fúria.
A Dark Horse foi uma das pioneiras a utilizar largamente a colorização digital nos quadrinhos. O trabalho de Doug Mahnke (que também assina a arte) e Matt Webb na primeira história é soberbo. As cores são vivas e o papel escolhido para a edição maximiza a ação do portador da maldição da máscara. A segunda trama com Chris Chalenor e a terceira com Gregory Wright também não deixam a desejar, modificando tanto os quadros que Mankhe propõe que faz até o leitor se perguntar se o desenhista não mudou. Os estilos e abordagens diferenciadas dão a história um caráter poderosíssimo de inevitabilidade do destino e de tragédia anunciada através do artefato mágico misterioso que aumenta as capacidades humanas e piora as falhas mentais e de caráter de seu portador.
É curioso como o longa resolveu modificar o visual dos personagens, em especial Stanley e o tenente Kellaway. A versão do policial, aliás, tem mais semelhanças com o desenho animado do que a versão interpretada por Peter Riegert. Aqui também se notam as referências ao mundo biruta de Tex Avery, o animador de desenhos surtados da Era de Ouro da animação mas também se percebe influências europeias das revistas Frigidaire italiana (onde foi publicado Squeak The Mouse), um bocado dos humanoides e da arquitetura de matérias de Métal Hurlant, e até o cinismo de Robert Crumb.
Nas duas primeiras narrativas, o Cabeção parece uma entidade que se apossa do usuário, claramente há uma postura diferente de acordo com o portador, mas só em pequenas nuances. Não é exatamente como o simbionte de Venom faz com Eddie Brock e Peter Parker nas historias do Homem Aranha, mas sim uma ação conjunta em que a alma do homem tem suas características exageradas, quase sempre com um comportamento de justiçamento e violência bem presentes.
O artefato é encarado pelos personagens sóbrios – Kath e Kellaway – como uma arma poderosa e que não pode cair nas mãos erradas. No entanto, a máscara produz um efeito de fascínio e tentação tão grande que é praticamente impossível driblar isso, como era o Um Anel com Frodo, Bilbo ou Gollum na trilogia O Senhor dos Anéis.
Mankhe consegue variar bem sua arte, apelando para quadrinhos underground, para o traço comum aos gibis de heróis repletos de bolsos, trabucos e pochetes, mas também tem elementos de violência explicita. Dessa forma, a historia adulta de O Máskara soa plausível, mesmo quando se disfarça de uma obra que mira o publico infantojuvenil (por conta da aura divertida). Em alguns pontos ele até ressignifica a violência das fitas de ação dos anos 80 e 90, digerindo o caráter dos filmes de brucutu para algo completamente diferente, usando seu espaço de metalinguagem para condenar criticamente essa violência. Nesse ponto, Russell, por mais concessões que tenha feito em seu filme, acerta como a HQ acertou, pois referencia de maneira ácida a utilização da agressividade e violência.
Da parte dos opositores do Cabeção, se destaca principalmente Walter, um gigante intransponível, de origem desconhecida, mas que claramente possui poderes sobre humanos, resultando numa mistura entre Hulk, Solomon Grundy e Luca Brasi de O Poderoso Chefão. Aqui a versão dele é muito mais violento e implacável que no desenho animado do Máskara, embora ele seja bem fiel, guardadas as devidas proporções de ser uma animação infantil.
A intervenção dos portadores da máscara na hierarquia mafiosa mostra que basta um homem pensante e com poderes para desmantelar toda sua estrutura, como quase ocorre com Don Mozzo, um dos opositores bandidos da revista. Mankhe desenha de maneira tão magistral que consegue destacar beleza até em Walter. Sua figura é sui generis, mesmo quando está coberto de sangue – algo comum para o capanga – se nota um olhar de ternura, quando não se percebe um vazio nesse mesmo olhar. Essa mistura de sensações bem diferentes entre si torna a briga do Cabeção com ele em algo bizarro e graficamente absurdo, além é claro de muito divertida e sanguinolenta, com uma dose cavalar de gore.
Ao contrario do que a péssima continuação O Filho do Máskara prega, não há uma origem certa para a máscara. O que se define é um sonho de Kath em que vê uma sangrenta origem para o artefato envolvendo um culto, decapitação e sacrifício a alguma divindade superior. O gibi aliás é macabro na sua totalidade. Exemplo disso é quando Walter decide aceitar um trabalho depois de se cortar e de jogar o próprio sangue no rosto do contratante que de tão assustado nem reclama.
A terceira trama mostra a influência da máscara sobre mais pessoas, agindo de maneira psicodélica, pretensamente heroica. Essa é das três historias a menos focada, mas a que possui mais referências para o famigerado universo expandido do personagem como uma aparição bem leve do que seria o Cara de Peixe, um dos vilões inúteis e bobos do desenho.
O Máskara é um quadrinho de caráter anárquico, possui uma arte deslumbrante e uma história simples, mas que apresenta belas discussões. Pode ser apreciado de maneira rápida e superficial mas também causa reflexões. A edição brasileira é primorosa, com um formato que ajuda a maximizar todos seus pontos positivos. É uma leitura divertida, um bom exemplar dos bons quadrinhos dos anos noventa, para muito além do boom da Image Comics e de sua cópias dos heróis populares, resultando num personagem rico e bem explorado na época em que foi lançado, sofrendo um belo e necessário resgate do ostracismo.
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