Tag: Documentário

  • Crítica | Meia Hora e as Manchetes que Viram Manchete

    Crítica | Meia Hora e as Manchetes que Viram Manchete

    Fazendo da piada a sua maior pauta, tentando alcançar o público popular: este é o resumo da linha editorial do jornal Meia Hora, o tabloide do grupo comunicacional O Dia. Encabeçado por Angelo Defanti, o documentário resgata as origens da publicação desde a proposta de resgatar o cunho de populacho que a antiga publicação tinha.

    Por vezes, a editora do Meia Hora foi acusada de não ter sensibilidade. O caso da briga de Dado Dolabella e Luana Piovanni foi por este viés, com uma brincadeira de trocadilho típica do jornal. Segundo Humberto Tziolas – atual editor-chefe – e Henrique Freitas, antigo editor da publicação, são “ossos do ofício, uma vez que o chamariz era valioso. O diferencial que capturava a atenção do leitor logo de cara teria de ser inédito, e não meia-boca.

    Para o teórico Muniz Sodre, o jornal popular pode fazer troça com a notícia, pois usar uma parte engraçada para evidenciar a verdade faz parte do comunicar, ainda que isso fuja um bocado do ideal, como é o caso dos noticiários populares.

    O folhetim ficou famoso por suas notórias homenagens póstumas e obituários. O gosto, ou desgosto, pelo artifício diverge de pessoa a pessoa, e o fato disto ser polêmico faz parte do modus operandi do Meia Hora. A trajetória do O Dia variou muito: de jornal conhecido pela máxima “se espremer, sai sangue” à rival do O Globo, a gazeta praticamente se tornou o único jornalzão após a queda do Jornal do Brasil. Com a adição de O Extra, que desbancou grande parte dos órfãos leitores do O Dia, o grupo encabeçado por Gigi Carvalho resolve recontratar Eucimar de Oliveira, antigo editor-chefe do jornal e criador dos formatos de O Extra.

    Pensando em algo de baixíssimo preço e voltado para o boy, para o cozinheiro, para o garçom e para toda a classe C, nascia o Meia Hora. Apesar da máxima parecer preconceituosa, o público abraçou a publicação, com as vendas caracterizando o maior diferencial para desbancar o argumento de que o leitor é subestimado.

    A base da discussão para as capas prima por fofoca, ação policial, os quatro times grandes do Rio, prestação de serviços, como anúncios de oportunidades de emprego e, claro, fofocas de famosos; a desgraça dos famosos faz o luxo do leitor.

    Outro estratagema é o tratamento dado à morte de bandidos, em que se confunde jocoso com comemoração das mortes dos culpados pela lei. A acusação de fascismo, inclusive, é, às vezes, justificada pelos editores logo depois da edição ser publicada. O tripé “Sangue, Sexo e Futebol” garante ibope; a ética é de difícil fusão. A lógica simplista é complicada, por vezes fazendo com que o jornal assumidamente abra mão da piada. Para os editores, as capas mais importantes são as provocativas, que cobram uma postura veemente das autoridades, especialmente das polícias. Esta é a parte séria.

    A autoria da ideia por trás do Meia Hora não é assumida por parte dos comunicadores. Enquanto a ex-dona do grupo, Gigi de Carvalho diz que foi ela a responsável, Eucimar prefere deixar para os outros depoentes falarem a seu respeito. Os méritos a respeito da paternidade da matéria são valorizados pelos números das vendas do jornal.

    Segundo a teoria da comunicação, não há uma abordagem menos ou mais ética, ao menos do ponto de vista da linguagem. O que pode ocorrer é o juízo de valor vazio ou desonestamente parcial, acusação na qual a publicação não é comumente enquadrada. O modo como o tabloide se popularizou pode ser encarado de duas formas: a primeira é mais crítica, abordando a tentativa de expressar o pensamento das classes econômicas menos favorecidas de maneira fútil e sensacionalista, o que gera um pensamento preconceituoso, de fobia ao pobre. Outra alternativa é enxergar a questão como mais uma manifestação dos marginalizados, que finalmente têm um material para ler que realmente os represente, não os tratando como estranhos, tampouco ditando a eles o que pensar.  Defanti faz toda a investigação que precisa via câmera. A abordagem ainda permite ao espectador tomar partido de acordo com o próprio repertório, salientando que o coitadismo com que a maioria do público do folhetim vê é indevido, já que não é ele digno de pena ou comiseração.

  • Crítica | Que Bom Te Ver Viva

    Crítica | Que Bom Te Ver Viva

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    Com uma inicial trilha de piano, prevendo a tristeza e o azedume nos fatos terríveis que seriam mostrados em tela,  Lúcia Murat utiliza-se de sua experiência pessoal para contar, através de suas personagens, o porquê e como aquelas mulheres sobreviveram aos desmandos dos governantes militares após a instituição do Ato Institucional nº 5 e a prática da livre tortura contra quem se opunha ao tal regime.

    A personagem anônima vivida por Irene Ravache recebe inúmeros telefonemas, graças a uma entrevista, retirada de outra publicação, sobre tortura sexual. Ela nega que tenha dado qualquer depoimento e diz que o jornalista em questão sequer perguntou a ela sobre esta exposição. A dramaturgia da hoje veterana atriz serve para inserir o público no mundo denunciativo, aos casos deflagrados que revelam o corpo feminino como um objeto de tortura.

    O artifício da quebra da quarta parede exerce a função de tomar a atenção pública daqueles que costumam consumir as telenovelas, e alertá-los para a flagrante realidade dos anos de chumbo, que, apesar do tempo decorrido, ainda ecoam de modo cruel nas almas daquelas moças violentadas pelo DOI-CODI e por seus semelhantes. A narradora, e única personagem representada, tem a função de pôr o dedo na ferida, uma vez que, no início, a maior parte das entrevistadas está demasiadamente emocionada, e a maioria chega a chorar ao relembrar o que a acometeu.

    Ravache beira a tragicomédia em alguns momentos, quando, por exemplo, surge a lembrança de que seu parceiro sexual deixará de “trepar” com ela por este descobrir, pela imprensa, que ela é uma mártir, fazendo-se perguntar se mártires têm necessidades humanas básicas, assim como os torturadores, demonstrando ao espectador que a “inconveniente história” das moças precisava ser lembrada e passada à posteridade, já que a conveniência está ao lado dos que trouxeram o mal à existência daquelas damas. O equilíbrio entre esquecer e conviver com as lembranças que não podem ser esquecidas, para que não sejam repetidas, e para que atrocidades como a dos torturadores serem chamados por suas profissões liberais, ao contrário dos torturados, intitulados apenas como terroristas, sequer contemplava qualquer mudança de comportamento, utilizando-se do prefixo “ex” antes de tais adjetivações. A mídia era deveras conivente nos idos dos anos 80.

    Os depoimentos dos maridos das torturadas também são interessantes por mostrarem como é a observação daquelas que tiveram marcados seus corpos, almas e mentes por parte de terceiros, porém íntimos das vítimas. O descontrole de algumas delas perante questões que relembram aqueles traumas invariavelmente as fazia bloquearem sua psiquê. Para muitas que tinham problemas como a epilepsia, era complicadíssimo dar vazão aos ataques, mesmo que fossem completamente incontroláveis na maior parte das vezes.

    Por parte das moças, alguns sentimentos “errados” sobrepunham-se ao prazer de viver mesmo após o término das torturas, como, por exemplo, a banalização daqueles que as cercavam, dado o tratamento aos presos anos depois, e a culpa por estarem vivas e tantos outros, parentes, companheiros e afins que não tiveram a mesma sorte que elas, ou mortos ou desaparecidos. O desaparecimento é também uma grande arma dos ditadores, já que pressiona sentimental e psicologicamente aqueles que esperam as notícias de entes queridos, cujo luto não pôde ser sentido, tampouco estava viva a esperança de encontrarem os desaparecidos.

    O esquecimento é a omissão daqueles que a consideram conveniente. A gravidade é ampliada quando “esqueceram” de lembrar a essas moças que elas não podem mais sentir dor, ou rememorar todas as catástrofes que aconteceram naqueles ralos metros cúbicos, imundos, repletos de baratas, lagartixas e aranhas, animais que até aquele momento continuavam assustando e causando fobia nas mulheres.

    A tecla tocada de modo mais agressivo – e necessário – é a da sexualização, da necessidade da mulher em transar, em se saciar, mesmo que sua vida pretérita fosse incomum. A vida das mulheres precisava ser comum novamente, ou o mais próximo disso possível. O prazer faz parte das necessidades básicas humanas; as dores e as marcas nos seus corpos não eram fáceis de serem arrancados, mas negar uma faceta tão presente em suas vidas seria declarar derrota, dar razão àqueles que praticaram o mal em seus corpos e em seus espíritos, e este revés não é algo que nem as mulheres, nem as companheiras e nem as ativistas políticas gostariam, afinal a luta delas e de Murat não foi em vão. Elas não fizeram parte deste acordo de silêncio e certas estão com esta atitude.  Esquecer seria trair a luta e, principalmente, seria trair a si mesma, a memória dos muitos amigos e amigas e a memória delas. A tortura fez e faz parte das vidas. O comentário final é arredio, denunciativo e inconformista, mas, ainda assim, delicado e feminino, tanto na figura de Irene Ravache como no roteiro de Lúcia Murat.

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  • Crítica | Riocorrente

    Crítica | Riocorrente

    A cidade disforme de São Paulo é o quarto e onipresente personagem de Riocorrente. Representa um ambiente hostil acompanhando as desventuras de um triângulo amoroso na metrópole. A primeira obra ficcional de Paulo Sacramento, realizador do excelente documentário O Prisioneiro da Grade de Ferro, produz exageradas representações contemplativas em uma história que vai além do tradicional.

    Em cena, três pilares estão interligados por uma relação carnal de amor e ódio. Marcelo (Roberto Audio), colunista de um famoso jornal de grande circulação; Carlos (Lee Taylor), lutando para sobreviver de maneira honesta sem recorrer ao crime; e o elemento que conecta ambos de maneira oculta: a relação com Renata (Simone Iliescu), uma mulher que se sente confortável na relação dupla, sem preocupação monogâmica. A narrativa apresenta personagens em condições diferentes, como uma análise sociológica das disparidades encontradas na cidade. Marcelo representa o homem bem-sucedido, morador de um modesto apartamento, e Carlos, o sobrevivente diário da agressividade das ruas.

    Acompanhando Carlos, há uma criança chamada Exu (Vinícius dos Anjos). Sua história não é revelada, mas é inferido que o garoto órfão é tutelado informalmente por Carlos. O menino transita descalço pela cidade, caracterizando o exemplo mais evidente do simbolismo da produção. Presente em poucos momentos, mas em diversos locais, Exu é como uma divindade observadora de um universo caduco. Uma criança que deveria ser inocente, mas que conheceu o lado brutal da vida.

    As cenas contemplativas apontam a cidade como uma personagem maldita. E, de maneira tímida, insere-se na trama um elemento fantástico que se amplia até o final da produção. A realidade da capital paulista abre espaço para cenas que projetam o sentimento das personagens. Marcelo, em uma madrugada vazia, permanece parado em um semáforo que nunca abre, um alerta de estagnação direcionado a si mesmo. A cabeça de Carlos entra em combustão, como se este fosse um homem raivoso vivendo um momento que não considera adequado. Representado em uma cena, há também um cartaz onde o rio Tietê aparece em chamas. Todas são personagens símbolo de uma cidade que não parece progredir. Papéis simbolísticos que se traduzem em cenas poéticas de reflexão às vezes exagerada, como aquela em que Exu encontra um Leão engaiolado. Uma metáfora de um animal selvagem preso e que parece desnecessária diante da conduta da personagem e do roteiro.

    A estética escolhida por Sacramento é um experimentalismo cênico situado entre o realismo e o fantástico, resultando em uma história lenta e metafórica, que depende de parte do público compreender as suposições que deseja em seu roteiro. Fosse uma trama mais realista, que expusesse os conflitos das personagens, talvez alcançasse um significado maior. Sendo um objeto simbólico, a obra permanece inacabada, e cada espectador deve interpretar Riocorrente para si, à procura da total compreensão narrativa.

  • Crítica | Uma Longa Viagem (2011)

    Crítica | Uma Longa Viagem (2011)

    O grito de liberdade se confunde com as fotos de família, saudosos retratos de tempos bem mais simples que aqueles em ebulição em meio aos anos 60. Foi a preocupação do clã que levou os responsáveis pelo jovem (de nome incógnito no começo da fita) a enviar o caçula para uma viagem a Londres, com a intenção de livrar o rapaz de se infiltrar nos grupos revolucionários, já que a sua irmã, Lúcia Murat, estava presa. A mulher encarcerada cresceria, se tornaria cineasta e faria do assunto de sua especialidade – a Ditadura Militar no Brasil – o pano de fundo para contar sua história.

    O jovem, vivido por Caio Blat, relembra em suas cartas o motivo de estar nesse exílio, conduzido de modo eufemístico, em que os diplomas que conseguiria em solo britânico de nada valeriam para si, nem mesmo na condução de uma nova profissão. Os depoimentos do “próprio” revelam suas amizades na Inglaterra, russos infiltrados naquela sociedade capitalista e que foram deportados para “jogar futebol com os gatos”. Ele prossegue fazendo uso contínuo de drogas, já que em solo brasileiro não tinha acesso a elas.

    A exposição da intimidade dos irmãos é corajosa e muito sensível. O irmão narra suas vivências em Cannes, no festival da Palma de Oro, que serve de pano de fundo para Murat contar sua experiência libertadora com o cinema e como sua carreira a ajudou a superar seus traumas. É somente neste momento que a narradora e realizadora pronuncia o nome de seu irmão que vivia em outra paisagem: Heitor.

    O documentário dá lugar ao drama em diversos momentos da exibição, convivendo na mesma tela as duas abordagens de modo amalgamado. Entre a busca de novas bad trips e de mais dinheiro para investir em haxixe, são feitas viagens para lugares ermos nos quais se louva especialmente o subdesenvolvimento do Afeganistão e Paquistão, onde a não chegada da civilização moderna contrasta com a realidade da Inglaterra e do Brasil. A estadia dos meninos era quase todo na rua, onde dormiam com homens santos, cercados de animais silvestres, pavões, macacos e outros animais silvestres, claro, tudo regado aos entorpecentes que eles tanto buscavam e que deixaram sequelas, fruto daquela porralouquice.

    A figura de Heitor é assustadoramente carismática e aclamada, já que sua vida foi talhada pelas vivências transgressoras e das desventuras além oceano Atlântico, ao redor de um globo explorado de modo dionisíaco, metade Gonzo metade Kerouac, sem qualquer compromisso com a normalidade ou com o método apolíneo de viver.

    As distâncias longitudinais e o torpor que Heitor tinha com seu amado haxixe não o livraram de ter notícias dos seus familiares e entes queridos. Por quase não ter uma estalagem fixa, complicava-se a situação de conseguir receber as correspondências de seus pais e irmãos. As cartas que recebia dos seus queridos demonstram o quão importante é aquele meio de comunicação, tanto para a vida comum de Heitor quanto para a narrativa da fita, uma vez que é através delas que se contam e se narram as múltiplas tramas poéticas da história.

    A volúpia por estar entorpecido começou pelo ócio, pela vontade de ocupar seu tempo e pela ausência de trabalho, mas talvez seja explicado, na vida de Heitor, pela saudade que tinha dos seus. Certamente, havia em seu comportamento uma vontade de transgredir, o que faz teorizar que o viés revolucionário estivesse impresso no DNA daquela geração familiar. No entanto, a internação tornou-se inevitável.

    A magreza de Caio Blat nos últimos momentos em tela emula a fragilidade corporal de Heitor naqueles tempos. Em 1978, ele seria capturado na Índia, na embaixada brasileira, fora de controle. Heitor teve a sorte de quem iria até lá (sua mãe) para buscá-lo, ao contrário dos muitos outros que cercavam a embaixada norte-americana à espera de certa compaixão da civilização ocidental não tão pobre ou paupérrima como a que ele estava.

    O cuidado da diretora em não subestimar a sociedade indiana – ou qualquer outra das que foram mostradas em tela – é atroz, já que a injustiça com tais povos denegriria seu emocionado relato e a história de seus parentes. Uma Longa Viagem é mais uma mostra da total maturidade de Lúcia Murat enquanto cineasta e contadora de histórias e que reporta múltiplas realidades.

  • Crítica | Setenta

    Crítica | Setenta

    Emilia Silveira é a responsável pela curadoria das entrevistas que permeiam o filme Setenta. O início, com a câmera junto ao carro pelas estradas da praiana cidade carioca, tenta remeter à simplicidade da vida cotidiana, ainda que os dias nos anos 1970 não fossem “normais”. A perseguição aos homens era um massacre, próximo de um comportamento padrão daqueles que faziam política e que impediam qualquer outro que não fosse conveniente fazê-lo pensar.

    O roteiro de Sandra Moreyra retrata o modus operandi dos 70 presos políticos que seriam exilados no Chile em troca da vida do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Os que estavam encarcerados eram encarados como guerrilheiros, apesar da maioria dos manifestantes sequer saber atirar, isso se estes estivessem armados.

    Alguns dos presos políticos também são mostrados no documentário lançado na época, e filmado no Chile, Brasil: Um Relato de Tortura. A maioria dos quase idosos militantes tem de segurar as lágrimas ao escavar os momentos emocionais pelos quais passou. O compartilhar dos ideais prossegue na vida da maioria deles, mas a dor da lembrança inevitavelmente faz relembrá-la. Famílias eram separadas, humilhações impingidas tanto fisicamente, pela tortura, como também por meio do emocional dos manifestantes e dos seus companheiros. A distância entre os encarcerados e suas famílias é escrutinada no documentário, assim como é detalhado o cerco aos subversivos.

    O nível de pessoalidade é grande não só pelos testemunhos, mas pela movimentação da câmera que mostra os exilados na intimidade de seus lares, no lugar e país onde muitos achavam que não voltariam a pisar. A correria dos que planejavam as ações ofensivas visava contra-atacar todo o desrespeito que sofriam os que se opunham ao regime. Apesar da multiplicidade de ideais dos que estavam ao lado oposto dos poderosos, a truculência com que eram tratados era o ponto em comum.

    O argumento básico da luta dos entrevistados era pela liberdade. O esforço da maioria era realizado para atingir este ideal, dedicando-se cem por cento de suas vidas à briga pela livre expressão de pensamento, por vezes até deixando, pela falta de tempo, de cuidar dos familiares e daqueles que os cercavam, especialmente em tempos em que a clandestinidade era algo comum ao cotidiano dos militantes.

    A baixa bilheteria do filme, quando em cartaz, é um mistério, pois, apesar de tratar de um assunto antigo, tem em seu caráter uma estética moderna, aprofundando o tema que documentários já haviam iniciado, mostrando os ecos de um tempo opressor, elemento que evidencia o quanto o país deixou de evoluir e se deseducou graças a isso. Setenta vale ser visto especialmente pelo resgate de histórias que convenientemente são esquecidas, quando deveriam ser frequentemente marteladas na mente dos brasileiros para que os erros pretéritos não mais nos assombrem.

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  • Crítica | 12 de Junho de 93: O Dia da Paixão Palmeirense

    Crítica | 12 de Junho de 93: O Dia da Paixão Palmeirense

    O filme de Jaime Queiroz e Mauro Beting resgata as tristes memórias dos torcedores palestrinos, que amargaram uma seca de quase dezessete anos sem títulos, quebrada finalmente em 1993 através de uma geração de jogadores fenomenais. O gol de Evair liberou um grito há muito enterrado na garganta: a vontade de gritar “campeão” que teimava em não sair da boca de nenhum dos alviverdes paulistas.

    Os depoimentos de torcedores ilustres revelam a ânsia dos fanáticos pela Sociedade Esportiva Palmeiras, que teve após a geração de Ademir da Guia um período de entressafra. O desmonte ocorrido após o ano de 1975 foi o prenúncio da tragédia, com as transferências internacionais de Leivinha e Luís Pereira, com poucos remanescentes, tendo Ademir e Jorge Mendonça como os principais nomes. Uma lesão faria Da Guia não ser mais o mesmo. Mal fisicamente, ele não conseguiria repetir os momentos de sucesso, sendo o Paulista de 1976 o último dos títulos por muito tempo.

    Declarações do próprio Beting e de outros jornalistas, como Roberto Avallone, Paulo Vinícius Coelho (PVC) e de outras pessoas ilustres, como Paulo Nobre (atual presidente do clube), e membros das comissões técnicas, além de antigos jogadores, afirmam e reafirmam todo o sofrimento que fora aquela seca. Dentre os momentos mais melancólicos estavam a disputa contra o Corinthians, na semi-final do Paulistão de 83, o dito jogo mais roubado da história, e, claro, a final de 1986, completando uma década de jejum vencido pelo XV de Novembro de Jaú.

    Pelos idos de 1991, a história começaria a ser mudada. Evair seria contratado, com o medo de ser este um jogador bichado. O atacante foi afastado por deficiência técnica, mais retornaria um tempo depois. Em 1993, viria a parceria com a Parmalat, considerada pelas narrações como a maior das parecerias esportivas da história brasileira, sob a tutela de José Carlos Brunoro. Com a contratação de grandes jogadores, como Mazinho, Edilson, Roberto Carlos, Antonio Carlos Zago, Edmundo Zinho, o elenco passaria a enriquecer-se, tendo na chegada de Vanderlei Luxemburgo um divisor de águas, já que o promissor e moderno técnico deixou reinar a democracia pelos quatro cantos do Parque Antártica.

    A história trataria de mostrar que a parceria com a Parmalat não seria um mar de rosas, mas o viés do filme era muito mais de memória afetiva que de discussão econômica, ou algo que o valesse. O caráter era de absoluta festa, até aplacarem nos torcedores dos tempos atuais as sensações de vergonha ocorridas pelo revés atual, do rebaixamento à série B, duplamente repetido.

    O choro de Edmundo ao ouvir a torcida gritando “Au, au, au, Edmundo é Animal!” faz relembrar os tempos áureos do auge de sua carreira e a forma com que foi abraçado por uma torcida de um estado e cidade que o adotou como se fosse um conterrâneo. O amor do atacante seria provado em outros momentos de sua carreira, até renasceria no Palestra, após os anos 2000.

    A provocação de Viola, no primeiro jogo da decisão de 1993 ecoava pela lembrança dos torcedores, jogadores e comissão técnica. A angústia causada por aquele simples gesto de imitação de um porco, após o gol, marcou a alma do palmeirense: Era como mexer com a família, como ofender de modo pessoal e íntimo. A decisão de Luxemburgo e Brunoro foi de isolar o grupo em Atibaia, para isolar o grupo dos dezesseis anos de fila, tentando eximi-los de qualquer culpa ou pressão externa.

    O revide começaria com uma união muito estreita, encabeçada pelo treinador – segundo o próprio craque do time, Edmundo – passando confiança aos seus legionários, inserindo uma pilha enorme neles, elevando seu nível de concentração como se estivessem indo à guerra, sendo o estádio o grande campo de batalha, e, como leões famintos, entrariam no gramado. Evair diria que, de um jeito ou de outro, eles sairiam do Morumbi carregados.

    O modo como Evair e Brunoro descrevem a finalíssima é muito emocionado: percebe-se um embargo na voz, mesmo passadas duas décadas do ocorrido. O gol de Zinho foi uma catarse, como se a zona entre o possível e o impossível fosse transposta. A emoção era tamanha que os arquibaldos mal acreditavam.

    A expulsão do corintiano Henrique pioraria a situação e aumentaria as especulações em torno do “esquema Parmalat”, que seria para a manipulação do resultado, supostamente pela compra do árbitro José Aparecido, muito por conta do placar elástico que somente evidenciava a diferença da qualidade dos dois elencos.

    Os versos do batedor de pênalti pareciam ser corridos a partir de 1976 para somente converterem-se em gol em 1993. Emocionado, Evair retira o peso das costas, de si e de toda a massa verde. O grande símbolo daquela época, saindo da mediocridade para finalmente ser reconhecido como um dos melhores centroavantes da história do futebol nacional. A sensação era a de que nenhum título superaria aquela festa, com a maldição encerrada contra o seu principal rival.

    As últimas cenas mostram a reunião em 2011 do time campeão, encerrada com uma partida que tencionava repetir os momentos emocionantes daquele jogo, com um saudosismo que tomou cada um dos integrantes daquele mágico time, que mudou o astral e o destino de 16 milhões de pessoas. A verve de toda a torcida e dos apaixonados pelo Palmeiras é registrado de modo emotivo e comovente.

  • Crítica | Castanha

    Crítica | Castanha

    Despertando uma narrativa que desdenha da linearidade, mas que necessita dela para ser compreendida, Castanha conta um epitáfio, exibindo a história do clã que dá nome ao filme sob a ótica de um tripé: Através da matriarca, seu neto e de um dos filhos. O espécime mais contemplado pela câmera de Davi Pretto é João Castanha, um já combalido showman que se apresenta na noite gay, mas que durante o dia faz ás vezes de filho exemplar, cuidadoso com a casa e com sua mãe.

    O viés escolhido pelo guião é de extensa depressão e decadência, independente do objeto analisado. Enquanto a já idosa Celina visita seus ex-amores, em condições mais insalubres que as suas, ainda convive com o vício de Marcelo (Gabriel Nunes) em crack, que consome o dinheiro e as forças da idosa, fazendo com que ela sinta-se eternamente cansada, o que interfere na vida e saúde de Castanha também.

    Na cena de prólogo há uma referência do que será mostrado em tela, com um homem nu, ensanguentado, que corre pelas ruas gaúchas como se fosse perseguido por um rolo compressor, prestes a ser esmagado pela modernidade e pela urbanização, contando os maus de tempos mais frios e secos como opressores da alma humana, convenientemente interrompendo a intimidade inerente as relações pessoais.

    No entanto, as escolhas do roteiro arrotam um desnecessário arremedo linguístico, exibindo clichês típicos de filmes independentes que são notórios pelo formato pouco usual, mas que no caso de Castanha, escondem uma história que seria profunda, prometendo isto, mas que não cumpre esse papel mínimo. Nem a metalinguagem de misturar cenas ensaísticas e teatrais garantem maior subsistência, tampouco garantem algo além do ordinário.

    As cenas extensas buscam mergulhar na intimidade familiar, além de passear pelos corredores das atividades noturnas do personagem título, e no entanto também não acrescentam muito, nem mesmo ao exibir a fé em que João se agarra, mostrada em poucos e escassos momentos, uma representação da pouco esperança que o protagonista tem em qualquer mudança ou evolução de quadro. A inevitável velhice que o acomete faz lembrar a mediocridade a que está inexoravelmente preso, tendo somente em sua mãe – um ser simples e moralista – o porto seguro, um dos únicos momentos em que é livre de críticas e reprimendas. Tal é a influência da senhora em seu caráter, que mesmo com a vida que leva, Castanha guarda uma personalidade realista, repleta de julgamentos e preconceitos semelhante aos de cristãos fundamentalistas, até se culpando (em partes) pela trajetória trôpega sua e de seu problemático sobrinho.

    A contemplação do ócio e da morte lenta provoca enfado em Castanha, e também no público graças aos excessos narrativos, quase sempre vazios de conteúdo. A obsolescência e compleição física do personagem o faz sentir um homem morto, que esqueceram de enterrar; um dinossauro que vaga pela Terra sem encontrar seu lugar ou caminho, exercendo seus últimos dias desmedidamente, sem saber qual identidade tomar.

  • Crítica | Crítico

    Crítica | Crítico

    Crítico 1

    Trabalhando com o equilíbrio entre a análise fílmica e a superestimação da opinião própria e alheia, Kléber Mendonça Filho – crítico e cineasta – usa argumentos metafóricos, imagens essencialmente pautadas no estudo da visão, para fomentar as falas dos depoimentos colhidos, entre estrangeiros e brasileiros. Escrutinar o apreço à arte e ao mensuramento da qualidade dos objetos analisados é uma árdua tarefa, além de ter em seu exercício a tendência de supervalorização, tanto do trabalho do realizador cinematográfico quanto da relevância que uma resenha tem, sendo associada comumente – e quase sempre erradamente – à prática de uma arte por si só.

    A busca por isolar o gosto ou expectativas da experiência em assistir a um filme é custosa: quase sempre esbarra em falas que podem ser interpretadas como azedas, amargas ou ressentidas, mas que, a priori, somente buscam elucubrar sobre algo óbvio aos olhos analíticos. Numa das entrevistas, João Moreira Salles argumenta que o papel do crítico é refém dos filmes por ele analisado, e que se o cenário artístico for completo somente por espécimes medíocres, de nada adiantaria todos os seus esforços.

    Por mais que teoricamente o papel do resenhista seja o de se eximir de seus próprios gostos pessoais, o ofício do julgamento é volátil, pois a quantidade de conhecimento que se adquire com o decorrer de seus dias muda constantemente o seu ideário e repertório. Pode-se, no ato de atribuir notas à obra analisada, cometer injustiças, já que, em pouco tempo, tudo poderia mudar, especialmente em quantas estrelas a película poderia merecer.

    Cláudio Assis, diretor de Amarelo Manga destaca que, uma vez o filme lançado, é preciso ter noção de que o produto será analisado e sofrerá ameaças à qualidade da produção, e que é preciso ter elegância para aceitar as falas ruins, pois isto faz parte do jogo. Já Bianchi não tem uma certeza sobre qual o ideal na crítica, se é somente informar as pessoas ou também reinterpretar artisticamente a obra avalizada.

    O modo como Mendonça conduz a câmera visa mostrar a dualidade, não só entre a necessidade e  a supervalorização da “crítica”, mas também a importância do diálogo entre o cineasta e o crítico. A fala de Walter Salles sobre isso é pródiga, destacando a Carrieri du Cinema, onde dois escritores teorizavam sobre o que deveria ser a Novelle Vague e dali começaram a praticar o que seria um movimento imortal do cinema, além de incitar dois dos realizadores mais marcantes da indústria e da arte – Truffaut e Godard. Os ecos disso seguem até hoje, com relatos de cineastas contemporâneos, como Bertrand Bonello e tantos outros.

    Os depoimentos dos artistas do cinema também são interessantes por exibirem uma passionalidade ímpar, desde os diretores que não conseguem ler todo o texto – como com Babenco – até os obsessivos, que não conseguem parar de ler, mesmo quando lhes dói, a exemplo de Bruno Barreto. Há também uma parcela de astros que execram alguns dos estilos, como a erudição desmedida e uma subjetividade que não é necessária.

    Outro argumento rebatido – especialmente por Daniel Burman e Fernando Meirelles – é o do “filme ideal”, onde o analisador, munido de seu conhecimento prévio e de uma expectativa preconcebida do que deveria ser a fita exibida, começa a apontar os momentos que deveriam mudar, as sequências de quadro e montagem editorial do produto, para que tornasse, dessa forma, uma obra perfeita. A frivolidade de tencionar que algo siga a escola preferida do observador somente revela uma pretensão de proporções dantescas.

    Crítico faz justiça também ao exibir os reclames dos comunicólogos, que não aceitam de bom grado algumas das demandas da indústria. Luiz Zanim destaca uma experiência que teve em Cannes, ao cobrir o evento para um jornal. Ao chegar em terras francesas, ele teria uma bateria de entrevistas com diretores e produtores e as quais jamais havia marcado. Ao retornar ao Brasil, recebeu uma correspondência pedindo que ele redigisse uma carta bilíngue com as desculpas por não ter feito todo o conteúdo programado pela representante dos filmes que não a da pauta do jornal. Zanim obviamente não o fez, fortalecendo a fala de que, para a indústria, o ideal é que o crítico se torne um assessor de seus filmes, que somente propague releases e informações, como se fizesse parte do seu jogo comercial.

    A reflexão causada pelo roteiro passa por diversos trabalhadores da indústria e pelos olhos e falas de artistas cooptados nos oito anos usados para que o filme de Mendonça fosse rodado. O estudo trata basicamente de sentimentos e sensações, conseguindo inserir muita informação num período de tempo curtíssimo  pouco mais de uma hora , e que, ao mesmo tempo que exaure seu receptor com as variações de fala e com a câmera tão próxima de seus entrevistados, exibe, a partir desse viés, uma forçada intimidade, quase desnudando os que depõem, obrigando a quem termina de assistir a Crítico a ter uma reflexão, especialmente sobre a adjetivação de obras pertencentes ao público.

  • Crítica | Rio Ano Zero

    Crítica | Rio Ano Zero

    O filme da francesa Aude Chevalier-Beaumel começa com uma narração em inglês. O narrador, em seu carro, observa a Cidade Maravilhosa e diz querer estar próximo da ação e do povo, e não do poder, porque esta interação é bonita, a melhor coisa que poderia ocorrer com a cidade. Rio Ano Zero varia entre os momentos em que a violência do Rio de Janeiro é exposta – seja pelas armas que os seguranças precisam carregar em seu ofício, seja pelos morros, paramentados com toda sorte de arsenal pesado – como uma das alternativas políticas, diferente demais das figuras de poder presentes na tradição governamental da antiga capital do país.

    Marcelo Freixo não é afagado pela imprensa. Logo no início, é filmado em um estúdio da CBN tendo de responder se evadiria o país novamente, uma vez que estava sendo ameaçado de morte por milicianos, cujo cerco havia se apertado graças a CPI das Milícias. Os funcionários que estavam armados serviam a si mesmos, numa exposição clara de como funciona a rotina do Rio de Janeiro e como age o poder paralelo quando encontra um desafeto.

    A intimidade do professor de história, e intenso combatente deputado estadual, é mostrada não só em seu discurso extenso contra a corrupção, mas escrutinada até em seu cotidiano, em sua casa, com a câmera passeando entre sala e escritórios, capturando cenas onde ele está inclusive trajando pijamas. O foco é obviamente as denúncias do candidato do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) contra a criminalidade crescente no Estado do Rio, provocada por organizações de cunho mafioso, que vivem tranquilamente, habitando a mesma cidade que abrigaria a Copa do Mundo, Olimpíadas e a Jornada Mundial da Juventude. A conivência do prefeito e candidato à reeleição da eleição de 2012, Eduardo Paes, com uma chancela de vinte partidos, visava evitar o segundo turno e qualquer debate direto.

    A diferença de tempo disponibilizado no horário eleitoral era de pouco mais de um minuto para Marcelo, enquanto Paes dispunha de 16, em virtude do número de parlamentares na câmara municipal. As acusações ao mandatário da cidade prosseguem fortes e cada vez mais intensas, assim como a intensa corrida eleitoral.

    Freixo usa sua boa fala para destacar alguns pontos “a favor” da milícia, lembrando a boa aceitação desta com a opinião pública – a exemplo das falas de políticos antigos, como Cesar Maia, que afirmavam que esse sistema era a autodefesa da sociedade. Até a população geral a abraçava, graças ao modus operandi típico das organizações mafiosas pelo mundo, que apresentam um braço assistencialista e outro de terror, equilibrando caos e uma falsa atenção aos necessitados, em práticas puramente demagógicas.

    Toda a mudança na arquitetura da cidade é registrada pelas lentes, com a poluição visual e física causada pelos estandartes e santinhos, especialmente nas áreas periféricas da Zona Norte e Oeste. Como é destacado pelo próprio biografado, há um monopólio de informação, já que só há um jornalzão carioca, O Globo, do grupo de Roberto Marinho, que obviamente privilegia uma fatia de candidatos que estão na posição à direita. É neste ponto que mora o maior problema do filme, o qual repete um dos inconvenientes da esquerda, que secularmente fala a favor dos pobres e incautos, mas que não consegue ser plenamente entendida por estes, já que a sua fala é pomposa, não nem um pouco popular, emulando o traquejo de Freixo.

    As formas de comunicação utilizadas pela campanha do PSOL foram, em sua maioria, via internet, já que a massa começou a consumir o conteúdo digital. A tentativa do partido em ser pioneiro se deu não só em método político, mas também em divulgação, por meio de colaboração não comissionada. Se a ingenuidade prevalece em grande parte dos colaboradores de Marcelo, há uma estreita vontade de mudança, uma não consensual mudança, uma mudança que não prevê apoio daqueles que torturaram a máquina pública e o seu povo, que opta por revidar as injustiças que sofre há muito tempo, não com ódio, mas sim com uma tenaz esperança, que ganha corpo com a candidatura ética do deputado.

    A câmera passeia por vias laterais, mostra um lado de Freixo um pouco diferente do exibido na campanha, mas que guarda muito mais semelhanças entre rotina e discurso do que a maior parte dos políticos brasileiros, já que as causas e bandeiras populares presentes na fala do então candidato se refletem na sua privacidade, mesmo na banalidade do seu dia a dia.

    A sensação após o resultado final do primeiro turno, que sinalizava a não realização de um segundo certame, não foi abraçada pelo combatente e por seus partidários como um revés, já que a mudança da postura do povo parecia algo maior, assim como a postura da parcela mais jovem da população. As limitações e precariedades da campanha ajudaram a unir os que participaram da campanha. Abraçados pelo povo, por aqueles que se sentiram parte daquela jornada, não só por votarem naquela legenda, mas também por espalharem a mensagem de que nenhum adversário deveria ser tão respeitado e que não pudesse ser derrotado. A direção de Chevalier-Beaumel, apesar de fugir bastante do escopo fundamental ao escolher um viés um bocado utópico do pensar político, ao menos prima por um belo sentimento, focado na transparência do postulante revolucionário, que, nas últimas eleições, foi o mais votado de seu segmento no Rio de Janeiro, e que parece crescer em popularidade para uma possível candidatura à prefeitura da cidade em 2016.

  • Crítica | Vlado: 30 Anos Depois

    Crítica | Vlado: 30 Anos Depois

    vlado - 30 anos depois

    O filme de João Batista de Andrade usa a memória do dia 25 de outubro de 1975 para aplacar o sentimento da perda de um amigo e exemplificar qual seria o primeiro passo do declínio da Ditadura Militar no Brasil, apesar de não mostrar as imagens do medo, dos militares e dos aparelhos usados para reprimir seus inimigos. A narração dá um toque de perfeita pessoalidade, acompanhada do montante de fotos que ajudam a pintar a figura de Vladimir Herzog para uma geração que possivelmente não conhece a sua história.

    Os depoimentos dos entrevistados mostram uma figura fina, educada e muito cara a todos que o envolviam. Sua boa escrita ajudou não somente a falar sobre o Brasil e abordar a ética, mas também tinha a função de informar os amigos que estavam fora do país no período de recrudescimento da ditadura.

    Mais aviltante ainda é a fala do povo, que não percebe a história e currículo de Vlado, não sabendo quase nada sobre sua existência e menos ainda sobre a ditadura, ainda que alguns, munidos desse mesmo desconhecimento, hoje afirmem seu desejo de retornar a este governo. O infortúnio de Herzog seria ironicamente ligado à entropia de viajar de volta ao seu país poucos dias após a instituição do AI-5, fazendo dele uma figura bastante visada.

    A câmera passa por momentos emotivos de Vladimir, como seu casamento e seu ingresso a TV Cultura e à revista Visão. Obviamente, o foco maior é o começo dos eventos prisionais, que exibiam toda a crueldade dos militares com os seus “convidados” especiais. Num dos relatos, destaca-se o fato de que a vestimenta dos encarcerados não incluíam cadarços, linhas ou cintos, nada que pudesse produzir amarra, o que claramente desmentiria o suicídio do jornalista, em cuja foto estaria a “prova” do crime.

    A sensação de desmoronamento emocional é constante na vida dos que foram torturados; não foram percepções que permaneceram somente durante as horas em que os militantes eram maltratados. As marcas ficaram, as almas tocadas jamais foram as mesmas. Os métodos utilizados na Alemanha Nazista e no Estado Novo eram reprisados como um modo de atacar o emocional dos divergentes, numa tática nefasta e mecânica, calculada para abater sistematicamente mas que, analisada sob a visão atual, só demonstra a vergonha de quem acometeu o país e que ainda segue impune.

    Os registros do corpo de Vladimir nu, preso ao pau de arara, só não eram mais chocantes do que as falas dos torturadores aos jornalistas e amigos do militante, que saberiam, naquele momento, da morte do sujeito. A desculpa era de que Herzog atuava como agente da KGB, o que, obviamente, era uma mentira descabida.

    Um dos fatores preponderantes para a abertura do Regime foi a morte de Herzog e toda a falácia a respeito do encerramento de sua vida e do suposto suicídio, tanto para o realizador do documentário como para cada um dos mostrados pela câmera. Esse seria o principal motivo para que a morte de Vlado não fosse em vão. O Rabino Henry Sobel até decidiu localizar o túmulo do jornalista fora da área destinada aos suicidas, no Cemiterio Israelita do Butantã, ainda em 1975. No ano seguinte, inquéritos foram exigidos por meio de documentos assinados por membros do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, numa mostra de que a classe e o povo estavam ao lado de Vlado e de sua memória.

  • Crítica | Barra 68: Sem Perder a Ternura

    Crítica | Barra 68: Sem Perder a Ternura

    Visando resgatar o ideal do cineasta Darcy Ribeiro, que tencionava formar em seu público um ideário mais crítico que o censo comum, com a fundação da Universidade de Brasília, mas que teve seu trabalho interrompido no ano de 1964, graças ao apogeu da Ditadura Militar no Brasil, Barra 68 conta um pouco sobre esses dias tão temerosos.

    A escolha do subtítulo, executada por seu diretor, Vladimir Carvalho, visa ironizar através da máxima guevarista o que ocorreu naqueles anos de chumbo, como se o dizer do lema fosse também um grito revoltoso, pelas ações holocáusticas que os docentes e funcionários da instituição de ensino sofreram com o Regime. Logo nos primeiros depoimentos do documentário, se traça como funcionava a formação do panorama cultural da capital do país, quase toda proveniente do ideário carioca, mas que aos poucos formava a sua própria identidade.

    Não demora muito para o foco ir para o viés combativo, onde alguns professores da época contam como foi uma invasão a universidade, sem qualquer aviso prévio e com uma truculência típica de uma guerra. A procura era por professores que supostamente passavam o ideal comunista aos alunos, numa mostra de como funcionava o pensamento paranoico dos militares que acabaram de assumir o poder, em 1964.

    É curioso como se fala a respeito de alguns membros das fileiras dos alistados, que declaravam a plenos pulmões que, se fosse aquela uma revolução socialista, eles estariam ao lado do governo, exemplificando que nem todos estavam lá pela ideologia, e sim porque era conveniente. No entanto, medidas por parte da direção da faculdade tiveram que ser realizadas, com demissões em massa. A UNB sofria com a pressão dos que estavam no poder.

    Os que restaram dentro da faculdade sofreram ações de conflitos, como as mostradas em filmes de guerra, cujas imagens executadas por estudantes foram resgatadas e reunidas no acervo do filme. Ex-alunos e professores veteranos contam o terror que sofreram ao longo daqueles anos enquanto a invasão acontecia dentro da faculdade, reportando ações dos repressores e de simpatizantes civis.

    O revanchismo entre os repressores e Darcy era tão grande e de cunho tão pessoal que alguns órgãos de imprensa, pressionados pelo governo, não citavam mais qualquer nota a respeito da universidade, visando jogá-la na vala do esquecimento, tornando-a irrelevante culturalmente. As dores da perseguição tocaram o emocional de todos os envolvidos, que têm em seu final, uma justa homenagem, dada a Ribeiro em 1995, quando já estava perto de falecer, onde o próprio discursa belamente, dizendo que quase chorara ao ouvir o hino nacional naquelas dependências, um lugar tão sofrido e que guarda uma parcela considerável da história do país. Vladimir Carvalho exibe mais um belo retrato de sua amada Brasília, narrando um conto agridoce, que varia entre o choro pelas perdas na luta e o orgulho de ter travado um bom combate.

  • Crítica | Muito Além do Cidadão Kane

    Crítica | Muito Além do Cidadão Kane

    Contestatório desde o início, com falas de algumas personalidades conhecidas do grande público, a narração sensacionalista do filme foca na vivência e poderio de Roberto Marinho, idealizador do grupo Globo de Comunicação que tem na sua rede de televisão homônima o seu maior expoente. Produzido pelo Channel Four britânico, Muito Além do Cidadão Kane teve sua exibição proibida dentro do Brasil, mesmo que seu lançamento tenha sido originalmente em 1993, após a abertura política da democracia.

    O foco narrativo do início da fita centra-se na disparidade social e na quantidade exorbitante de analfabetos do país. Quase tão gritante quanto a distância financeira entre os ricos e pobres é a diferença de televisores ligados quase exclusivamente na Vênus Platinada, que até então, eram de 78% da totalidade das casas brasileiros, atingindo o grande público com anúncios publicitários luxuosos extremamente diferentes da realidade econômica dos típicos brasileiros. O consumo era apenas das imagens, já que apenas um terço dos espectadores poderiam comprar qualquer dos produtos mostrados em tela. Apesar disso, o conteúdo ideológico por trás de toda mensagem veiculada é sempre compartilhado.

    As concessões das redes de canais são denunciadas, inclusive aventando-se até a possibilidade de políticos terem poder de controlar uma empresa comunicacional no Brasil, o que obviamente vai ao encontro da maior rede televisiva. O destaque dado ao Fantástico é quase tão execrada quanto as polêmicas aquisições de filiais, criticando o otimismo exacerbado e total falta de conteúdo relevante, que encontra paralelos com a pauta atual do programa.

    A trajetória de Roberto Marinho é reconstruída, desde a fundação do jornal O Globo, feito por seu pai. Uma vez no poder, o grupo se expandiu, primeiro para o rádio e depois para a TV, ganhando concessões dos presidente Juscelino Kubitschek (apoiado por Marinho) e João Goulart (político que seria deposto antes de assumir a presidência, tendo a sua “renúncia” apoiada pelo empresário/jornalista). As falas de Armando Falcão vão muito ao encontro do pensamento do documentarista, que acreditava ser escusos os meios de obter seus licenciamentos mil.

    Em paralelo à transmissão da Copa de 70, aconteceu um boom econômico que permitia ao povo comprar televisores por meio de crédito, um artigo caríssimo, o que obviamente facilitou muito a propagação do canal da família Marinho. A audiência se dividia entre o futebol e os festivais de música, sendo o primeiro algo que fomentava a calada do regime militar, onde não se pronunciava nada sobre política, enquanto o segundo, exibido na Rede Record, mostrava a nata artística brasileira, que tentava, através de suas mensagens subliminares, falar do holocausto político que ocorria.

    Os detalhes da derrocada da Rede Excelsior e da TV Tupi são abordados. Os principais rivais pela audiência, chegando ao ponto dae causar o fim da concessão do primeiro canal, único que havia manifestado descontentamento em o assumir do Regime Militar. Mesmo os que apoiaram a Ditadura eram proibidos de noticiar qualquer situação que causasse a menor possibilidade de frisson nos que dominavam o poder e, segundo alguns dos entrevistados, a emissora ratificava a censura e perseguição a artistas supostamente condenáveis.

    Outro fator focado era a ascensão das novelas desde Selva de Pedra, que foi a primeira novela com 100% de audiência, até Gabriela, que exibia as curvas de Sônia Braga numa reimaginação do conto de Jorge Amado. A influência era tamanha que ditava moda até para aspectos comportamentais, como o advento de discotecas em cidades minúsculas, que sequer tinham tradição no consumo de música disco, mas que, por influência de Dancing Days, precisavam montar espaços assim em sua extensão territorial. Para muitos, o poder do canal se igualava ao de um Estado dentro do Estado.

    Apesar de mostrar o quão promíscuas são as inter-relações da Globo com os governos, até de interdependência dos políticos com os comunicólogos, o roteiro não toma partido de modo resoluto, nem mesmo ao exibir o modo raso como o Jornal Nacional tenciona emitir a comunicação para o Brasil inteiro, dando curtos segundos para notícias políticas, enquanto minutos preciosos são dedicados a parte de exibição de celebridades, sem qualquer cunho informativo maior.

    O cúmulo da manipulação da informação se daria nos episódios com Luiz Inácio Lula da Silva, desde a época de seus serviços com metalúrgicos e líderes sindicais, com negação de muitos dos argumentos das classes até sonegação dos mais básicos, em que se escondia até a quantidade correta de adeptos, sob a alegação de que a ordem viria de cima, da presidência militar. Semelhante a isso foi a não comunicação da eleição de Leonel Brizola, que acabava de voltar ao país e que ganharia a cadeira máxima do estado do Rio. Mais flagrante ainda seria a edição do resumo do debate de seis minutos, entre Fernando Collor e Lula, três dias antes do segundo turno, favorecendo o governador de Alagoas, onde a manipulação que se assemelhava a um informe publicitário causou um furor até dentro da rede, cuja reclamação ocorreu até de membros muito antigos da central de jornalismo como de Armando Nogueira e Wianey Pinheiro, que seriam aposentado e exonerado, respectivamente.

    Os últimos momentos do filme são pautados em mais reclames que discutem o valor da imprensa na formação da opinião pública e na moralidade de uma nação, especialmente em um órgão com tanto alcance como é com a Rede Globo, condizente com a realidade do início de suas transmissões até os anos noventa, com destaque até para o seriado Anos Rebeldes, onde se falaria sobre o hediondo regime, excluindo o papel do canal na legitimação dos anos de chumbo. A mensagem final questiona se o povo deveria se libertar dessa influência, ou ao menos contestá-la, com a trilha de Televisão, dos Titãs, que remete à burrice proveniente de quem assiste ao aparelho de vídeo. A imagem de Marinho é tomada por baratas, na expressão simbólica mais explícita da rejeição da figura do magnata das telecomunicações, por parte dos realizadores do filme.

  • Crítica | Democracia em Preto e Branco

    Crítica | Democracia em Preto e Branco

    Democracia em P e B

    Cuidadosamente focado em sua introdução sem cores – em preto e branco -, o filme de Pedro Asbeg emula a barra pesada da época, com a repressão do Regime Militar ainda sem as “novidades europeias” do futebol, e da democracia. O medo tomava conta da vida dos cidadãos, os mandantes não tinham qualquer pudor em demonstrar o seu poderio, humilhando as pessoas comuns, que não tinham acesso aos mesmos direitos dos que impunham fardas. O contra-ataque precisava acontecer em alguma instância, e sob o som de Núcleo Base do IRA!. uma destas facetas é mostrada, sob os campos de São Paulo; uma outra luta, ligada a igualdade, ao esporte e a música.

    A narração de Rita Lee grafa o quanto havia um não-desejo pela alternância no poder, tanto dos presidentes nacionais militares, quanto no certame do Corinthians, com Vicente Matheus no posto mais alto. A realidade aviltante que ocorria no quadro político brasileiro gritava mais do que qualquer receio “clubístico”, uma vez que a insegurança que tomava os não-poderosos, por sua vez era motivada pela “segurança” dos governantes.

    A derrocada do Brasil fez com que os integrantes da nova chapa do poder no Sport Club Corinthians Paulista se interessassem por um maior progressismo não condizente com os outros tempos, os de Matheus especialmente. Com o tempo, o laranja do antigo presidente, Waldemar Pires. O catalisador desta mudança viria primeiro pela figura de Sócrates, um jogador elegante, inteligente, letrado e inconformado, mas ainda sem um norte, sem uma direção para lutar. Este paradigma mudaria com o acréscimo do lateral Wladimir. O rapaz de pele negra acompanhava as greves no ABC Paulista, se via então como um operário da bola. Dali começava uma discussão mais profunda a respeito dos direitos civis, ainda no elenco de um time de futebol. O último fator para que o grito fosse completo viria com a juventude, com Walter Casagrande Júnior, o centro-avante de apenas 19 anos, que trazia a polêmica do Rock’n Roll na postura, cabelos e na pele para dentro de campo, paro algo além do simples “tatibitate” do futebol.

    Os jogadores passaram a ganhar voz, se valendo até da queda de divisão do time, uma vez que eles disputavam a Taça de Prata. A inflação piorava, o medo de faltar alimento na mesa do pobre aumentava, enquanto o modo de reger via repressão parecia cada vez mais tacanho, com uma trilha sonora que começava a falar mais abertamente sobre a hipocrisia da lei. Viriam Edgard Scandurra com o seu IRA!, a letra de Selvagem dos Paralamas, que louvava o monstro que somente crescia, e claro, o disco de Paulo Miklos e seus Titãs Cabeça Dinossauro, que não mais via o amor como a via para caminhar o povo, e sim mostrava através dos riffs de guitarra como era truculenta a realidade do país. O rock de Frejat, Cazuza, Renato Russo, Ultraje e outras turmas mostravam o que era o pensamento do jovem, como ele via as direções sociais que a nação tomava.

    Sob a tutela do administrador técnico – e também sociólogo – Adilson Monteiro Alves e de Sócrates, começava o que Juca Kfouri e o publicitário Washington Olivetto nomeariam como Democracia Corintiana, onde todos tinham o mesmo poder de voto e peso. Jogadores como Zenon, Wladimir e Casão eram politizados, e ajudariam a quebrar os paradigmas de concentração pré-jogo e do bom-mocismo como método de tratar o esporte. A civilização do time de Parque São Jorge não era obrigatoriamente moralista, ao contrário: Era evoluída, madura, sabendo bem o que se queria.

    Para Sócrates, foi o movimento político dos jogadores que manteve o time bem dentro das quatro linhas. Esta era a base do bom futebol deles, além claro do acesso aos shows de músicos amigos, Blitz, Rita Lee, Maria Bethânia entre outros. A relação dos esportistas com os músicos era bastante intrínseca e íntima, de modo que era quase indistinguível a identidade de um e de outro. A busca pela liberdade de expressão era comum aos dois segmentos, a música era o canal para a liberação, o que não ocorria desde 1968, com o jovem falando para o jovem.

    O pensamento evolui, como dito na narração por Lula, e o advento da Democracia Corintiana passaria a falar também do voto do povo, do voto direto que finalmente ocorreria. A campanha mudaria para DIA 15 VOTE, grafada acima dos números dos jogadores de futebol, o que visava quebrar a deseducação política do torcedor comum, desde os geraldinos e arquibaldos até aos já conscientes de que era preciso modificar o quadro político, e mobilizar a opinião pública.

    Os comícios para as Diretas Já começaram bastante tímidos, com poucas pessoas. E aos poucos o movimento aumentaria, até desembocar no comício da Praça da Sé, de um caráter suprapartidário, com discursos de Ulysses Guimarães, Brizola, Lula, Fernando Henrique, em uma união completamente impensável atualmente, unidos pela quebra da tutelagem do povo brasileiro, para que a população pudesse enfim andar sozinha, reconquistando sua democracia. A rejeição da emenda em 1984 foi um duro golpe na população brasileira; o sentimento de comoção logo deu lugar a sensação de que foram iludidos, inclusive Sócrates, que aceitaria a proposta de venda para a Fiorentina, da Itália.

    Os integrantes daquele time preferem encarar todo aquele tempo com um saudosismo tocante, de que o país voltaria a sorrir, e que havia começado ali a redemocratização do Brasil. No entanto, a sensação de que o pior da ditadura ainda permanecia não poderia ser ignorado, uma vez que o modus operandi policial prossegue semelhante ao do Regime. Até pela última música executada – Até Quando Esperar, da Plebe Rude -, a sensação de Democracia em Preto e Branco não é de otimismo, e sim de uma amálgama entre a melancolia e a objeção, de um país que apesar de um pequeno progresso, ainda tem muito a evoluir; muito esforço a ser executado para que se torne uma república minimamente digna, sendo esse viés o que faz da fita ser algo muito a frente dos documentários contemporâneos.

  • Crítica | O Mundo Segundo Lula

    Crítica | O Mundo Segundo Lula

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    Ao iniciar seu filme com um passeio por Brasília, German Gutierrez demonstra um pouco do que seria a incerteza da subida ao poder por Luiz Inácio Lula da Silva rumo ao palanque máximo do país brasileiro. A cerimônia de passagem de faixa de Fernando Henrique Cardoso, claramente contrariado, simboliza um pouco do que a narradora diz, os resquícios do que a burguesia pensava ao assistir a ascensão de um membro do proletário ao poder.

    Para Lula, sua vitória após tanto tempo é a mostra de uma evolução do pensamento do povo brasileiro, finalmente rompendo com a mentalidade de país colonial e colonizável, sempre subordinando-se às economias de países mais ricos e claramente exploradores. O começo da carreira do político foi feito em plena ditadura militar, em meio a um regime opressor que esmagava o homem.

    De família pobre, demorou a se alfabetizar, o que claramente se reflete nas suas falas tacanhas e repletas de vícios linguísticos, como a supressão do plural. Este defeito serviu bem para ele, ao menos num segundo momento eleitoral, uma vez que o aproximava do povo com quem ele tencionava falar. Aos trinta anos, tornara-se líder sindicalista, apoiando as eleições diretas, ao invés do regime ditatorial, como “único modo do povo se manifestar”. A partir daí, se explora o começo da trajetória do metalúrgico enquanto um governante.

    O horizonte mostrava o povo como um parceiro do político, feliz com o seu modo de tratar as relações exteriores, alguns até surpresos pelas origens humildes de sindicalista, mas as críticas também são devidamente documentadas, ainda que o cunho destas seja deveras tímida e comedida.

    A feitoria do filme foi logo após a reeleição de Lula, e não menciona em nenhum momento os escândalos políticos de seu partido, como o Mensalão, ainda que haja uma pequena menção nos letreiros ao final, claro, destacando-se o crescimento do país em um cenário mundial. A sensação de O Mundo Segundo Lula é um filme institucional é enorme, ao analisar-se seu caráter chapa-branca, mas é importante de ser analisado na contemporaneidade, especialmente pela avalanche de desinformação que corre a rede mundial em relação aos avanços do país nos anos em que Luiz Inácio foi presidente da República Federativa do Brasil, e a respeito de quem tem ou não lutado ao lado do proletariado brasileiro. Nisto, o filme de Gutierrez traça um bom prospecto, obviamente atentando para o bom mocismo do político.

  • Crítica | Jango

    Crítica | Jango

    Reunindo pedaços de informes oficiais da época em que o biografado era um político ativo, Jango começa com a viagem do então vice-presidente a China, que ficaria famosa por ter sido tão “longa”, que não permitiria a João Goulart assumir seu posto como o mandante máximo do país. O medo vermelho, o mesmo que predominava no gigante asiático. O filme de Silvio Tendler não tem qualquer pudor em escolher lados, assim como os que subiriam ao poder e que seriam criticados pela fita.

    Jânio Quadros, até então presidente, circulava com toda a sua ebriedade ao lado das “forças ocultas” (fala do próprio roteiro), junto aos militares, levantando uma série de teorias a respeito das origens do golpe. Enquanto corre a trilha de Wagner Tiso e Milton Nascimento, é mostrado um registro fotográfico saudosista, que remetia ao período histórico menos conturbado antes da tomada de poder e claro, a intimidade de Jango.

    A narração de José Wilker busca dar ainda mais importância a biografia do político, um homem, segundo os altos, sempre comprometido com as causas sociais. A ascensão dele é flagrada, desde o começo da carreira, muito próximo ao segundo governo de Getúlio Vargas, como também seus serviços de parlamentar, as corridas eleitorais ganhas e perdidas e claro, a assessoria que prestava a Juscelino Kubitschek. Jango seria o primeiro político mandante sul-americano a ter autorização de pisar em solo soviético, o que claramente pesaria contra ele anos depois.

    A ascensão de Jânio Quadros é destacada, especialmente os seus modos ultra-moralistas, que incluíam a proibição da veiculação de biquínis na televisão. Era um delegado no poder, alinhado com os interesses da classe média, a mesma que foi denunciada por Arnaldo Jabor em Opinião Pública. No entanto, a posta de Jânio era tão curiosa que ele condecorou Ernesto Guevara, conhecidamente ligado à esquerda vermelha, o que demonstrava o desequilíbrio das suas aspirações e comportamento político. Enquanto Goulart estava na China, fazendo o mesmo que fazia em Moscou, Jânio Quadros renunciaria, deixando Ranieri Mazzilli no poder provisório.

    O medo de que o Brasil se tornasse uma nova Tchecoslováquia seria o principal motivo do motim organizado pelas forças armadas. Mesmo com as atitudes contrárias de famosos políticos, como Leonel Brizola, era tarde, já que os governadores de grandes estados como os de Rio e São Paulo deflagaram a repressão imediatamente.

    A preocupação da direita brasileira com relação a Jango ocorria, claro, pelos contatos do presidenciável, mas foi muito agravada pela opinião declarada de John Kennedy. Além de tencionar conter a dívida externa brasileira, procurava também interferir em alguns dos seus planos econômicos, pois aos seus olhos, estes eram muito semelhantes ao ideal socialista, obviamente, quando analisados pela perspectiva do mandante da nação que era a principal inimiga da URSS.

    A narrativa varia entre os momentos contemporâneos de 1984 e a pregressa vida de Jango quando ainda não era vice, até a tomada de poder por parte dos militares. O período em que Goulart foi presidente, mas com muito menos poder do que deveria, uma vez que se implantou uma política parlamentarista que curiosamente acabou com o término de seu mandato, foi curto, para logo depois ser “convidado” ao exílio, no Uruguai.

    Já com o Regime instaurado no Brasil, e longe de sua pátria, João Goulart via as outras pátrias do Cone Sul serem dominadas por ditaduras de direita, tendo na deposição do chileno Salvador Allende o seu tiro de misericórdia. Segundo familiares, o ex-político sonhava em retornar a sua pátria, mas impossibilitado por sua débil saúde, morreu no exílio, em 1976, sabendo que poderia ser um dos alvos da Operação Condor, que estreitava as relações entre os governos latinos tirânicos e que “coincidentemente” teve muitos dos seus opositores encerrados em mortes misteriosas.

    O jornalista Carlos Castello Branco declarou em nota que Jangomorreu como um peão perdido à procura do seu galpão“, em virtude de não poder voltar ao seu lugar de origem. Somente seu cadáver voltaria a sua cidade natal, a gaúcha São Borja. O filme de Silvio Tendler acaba contando uma parte importante da história brasileira, ainda que sua ótica seja parcial, claro, sendo jamais injusta, uma vez que essa voz nunca havia sido garantida ao político, tampouco aos seus adeptos.

  • Crítica | Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho

    Crítica | Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho

    Vencedor do Grande Prêmio do Júri e Urso de Prata em Berlim 2013, a composição quase documental de Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro, de Danis Tanović (Terra de Ninguém), é a escolha correta para contar uma história que deseja ser um retrato fiel da realidade delicada da Bósnia e Herzegovina.

    Dentro de um cenário desolado, vivendo em um bairro periférico, Nazif (Nazif Mujić) é o patriarca de uma família composta por sua esposa e duas filhas pequenas. Homem trabalhador, ganha seu dinheiro por meio da venda de ferro-velho. Pequenas quantias suficientes para subsistir entre as contas essenciais e o alimento. Diante desde equilíbrio precário, a vida da família se transforma em martírio quando a esposa, Senana (Senada Alimanović), adoece.

    Diante desta dificuldade, Nazif leva a esposa até o hospital, que, embora faça um procedimento paliativo, não pode realizar a cirurgia necessária para evitar a morte  da mulher devido à ausência de registro e plano de saúde. O catador segue uma via crucis pela cidade à procura de quem possa ajudá-lo na cirurgia da esposa.

    E eis a invisibilidade de um cidadão comum e com baixa renda para encontrar o apoio do governo que deveria ampará-lo. Dentro de suas engrenagens, a morte da esposa seria uma baixa qualquer, um número estatístico do país. A família não só vive à margem da sociedade como também foi marginalizada por esta. Um dos diversos problemas que a Bósnia enfrenta há muito tempo. Desde a década de 90, o país vive um sério problema de pobreza, e o mês de dezembro e notícias recentes informam que a crise atual é uma das mais severas do país.

    Nazif e a família são um retrato vivo da desolação local e de como um governo não ampara seus cidadãos. Um exemplo que se ajusta em qualquer situação mundial que não fornece os benefícios básicos para o cidadão viver. À procura de ajuda para a esposa, o catador encontra médicos especialistas particulares e organizações sem fins lucrativos, mas sempre esbarra ou na falta de dinheiro ou em empecilhos burocráticos que impedem a ajuda imediata.

    A resiliência da personagem dá um rosto a uma multidão que vive em carência crônica e precisa sobreviver com unhas e dentes para manter-se vivo diante desta realidade agressiva. Ampliando a intenção de uma realidade documentada, os personagens trazem o mesmo nome dos atores, e o desfecho encontrado para a problemática não poderia ser mais próximo do improviso cotidiano: diante de um governo omisso que não fornece o básico à população, o que restam é encontrar maneiras de burlar as engrenagens e entortar a burocracia para que se tenha o mínimo para sobreviver.

    O filme evoca a triste realidade que nos cerca, feita da maneira mais fiel possível para parecer um retrato fotocopiado de uma história invisível. Sem arroubos cinematográficos, nem exageros cênicos. Feito de carne, osso, fé, desolação e miséria.

     

  • Crítica | Junho: O Mês que Abalou o Brasil

    Crítica | Junho: O Mês que Abalou o Brasil

    Há muito não se via um registro de cunho esquerdista explícito no Brasil. Há muito. A maioria utiliza-se de metáforas e manobras de marketing pra tapar o sol com a peneira. A famosa produtora O2 Filmes e o jornal Folha de São Paulo de posse de tais circunstâncias uniram fatos e relatos ao útil e agradável, dando voz ao povo, falando em tom publicitário e jornalístico o que o povo quer e fez ouvir, captando o devido caráter subversivo (para um tabloide que apoiou a ditadura e parece se redimir a quem não esquece disso). O efeito multidão, o resgate da repreensão policial (encontrada todos os dias nas periferias), a cobertura sacrificante dos tipos de imprensa dentro da unidade informativa: tudo em Junho representa, da forma mais clara e direta possível, o sentimento e a comoção pela representatividade almejada entre os semestres de 2013. Os responsáveis e as razões são levados tão a sério quanto a credibilidade que a maior produtora e o segundo maior jornal do país conseguem assegurar e manter durante a narrativa com fôlego de cobertura ao vivo.

    Em ordem cronológica, Junho se mantém, se expande e aumenta a carga de denúncia e reconstituição na proporção que as manifestações tomaram: um rastro de pólvora, indo muito além dos grandes centros, incluindo dentro do congresso de Niemeyer; a reputação do hino nacional e a reverberação acadêmica que não resistiram ao levante; a ira que profetizou Bob Dylan e fez roubar o destaque da dita “Copa de Todo Mundo” – sério? – e atrair a atenção do mais alto nível do judiciário brasileiro; do quarto poder celebrado nesta expressão em 1955,  usada pela primeira vez pelo teórico de comunicação norte-americano James Carey. Utilizando a avaliação de vários outros mediadores da opinião pública e do senso comum geral, percebe-se que:

    1. O documentário é um programa político de um canal de televisão disposto a atrair o cidadão que clama por mudanças civis;

    2. A investigação das motivações sociais e dos parlamentares, talvez anárquicas em ambos os casos, e próximas em suas afetações complementares, depende única e exclusivamente do espírito crítico de quem assiste e sente esta produção, só assim respondendo suas perguntas, tecendo o mérito da obra;

    3. É interessante, porém incompleto, o modo com que causa e efeito são redigidas, constatadas ao longo do material, do eco dos gritos, da contradição de um torneio mundial de futebol ser realizado num país exausto pela falsa confraternização esportiva, como se o paralelo das agruras entre a festa nos estádios vitoriosos e uma saúde/educação/segurança/previdência/população carcerária fracassadas ganhassem síntese pela panorâmica de um drone sobrevoando os protestos e movimentos. Senão pela ideia a partir do poder da imagem, o espectador é mais uma vez submetido à qualidade das informações que recebeu e recebe;

    4. Esse viés democrático também se contradiz por não dedicar um minuto à versão da Polícia Militar, por pior ou melhor que esta seja.

    Tamanha a certeira injustiça com os méritos das imprensas locais, o documentário e a Folha acertam por não irem além do foco ocorrido em São Paulo. Mas sugerem que em diversos estados e municípios brasileiros, com sensibilidade e prudência exaltadas, revelaram a mesma alma revolucionária que em 2014 não morreu, sobrevivendo por todo o território ainda marcado nas entrelinhas pela ditadura de anteontem. E o que começa como peça publicitária se revela, entre testemunhos e a relevância social de cada um deles, uma aquisição incansável e honesta até o último minuto, mas com forte gosto de vinagre à quem acha que tá tudo bem. Tá tudo tranquilo.

    Atualizado: Esta crítica foi escrita um dia antes das eleições de 2014, quando o Brasil ainda acreditava em mudanças estruturais no sistema civil que parece representar, sim, a maior parte do povo. Hoje, 06 de outubro, um dia após o resultado eleitoral, tudo continua igual, e Junho se torna, a partir de então, o manifesto de uma revolução que nunca aconteceu.

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  • Crítica | Doméstica

    Crítica | Doméstica

    A partir de imagens capturadas por adolescentes que registraram as ações de suas empregadas domésticas, o diretor Gabriel Mascaro produziu o documentário Doméstica. O formato de apropriação e edição de imagens alheias é comum no cinema de Pernambuco, onde a mão do realizador se exibe através da edição e, igualmente, na condução da emoção.

    A perspectiva dos jovens que gravam suas incursões é engraçada. Eles exibem uma visão além do cotidiano conhecido e têm um poder imenso de fazer qualquer pergunta e conduzir a narrativa como quiserem, claro, sob a supervisão de um cineasta.

    A improvisação das lentes garante momentos de excentricidade, revelando episódios cômicos ao mesmo tempo em que produz carga dramática. O caráter agridoce permeia a maioria dos registros com depoimentos de vidas marcadas por momentos traumáticos ligados à infidelidades conjugais ou dramas familiares e uso de entorpecentes, um público que, na maioria das vezes, só encontra retorno emocional no repertório romântico executado pelos artistas bregas.

    Os dramas das moças variam entre amores complicados e nem sempre correspondidos – acompanhados de sinceras lágrimas – e dos maus tratos dos primeiros patrões. Em comum, há questões de casamentos infelizes, um padrão que abre a discussão para inúmeras teorias sobre o caso.

    O flagrante exibe o óbvio analisado sob a ótica fugaz de Mascaro. A costumeira rotina dessas profissionais centraliza-se no cuidado de famílias, mas quase nunca de si mesmas.  Uma das entrevistadas, que trabalha desde os 11 anos de idade, reflete sobre o tempo que passou mais em casas alheias do que com a mãe. Em alguns momentos, a casa dos patrões é um refúgio para a grave realidade de violência familiar que sofrem. Notável e até assustador perceber que a casa dos outros é um refúgio do inferno caótico da própria rotina pós-trabalho.

    Outro fator comum nestas histórias é a perda de filhos em eventos trágicos, seja por assassinato – cujas origens não são reveladas, talvez por vergonha – ou por maus tratos de cônjuges. Espancamentos são comuns, assim como a vilania do homem, justificada pelos atos atrozes de alguns deles.

    A origem do preconceito com estes trabalhadores é um dos fatores de maior estranhamento. Um desprezo que vai além dos patrões e se faz presente até mesmo nos familiares. Em um dos casos, um senhor trabalha cuidando de uma garota de 16 anos devido a uma triste separação com sua família e a ausência de condições financeiras para bancá-los. O desprezo é a tônica de sua vida.

    O desfecho documental deixa uma sensação distante de qualquer discurso panfletário ou demonização de indivíduos. As personagens mostradas ou citadas são críveis e condizentes com a realidade que atravessa a existência do brasileiro, fazendo deste Doméstica mais do que um espécime cinematográfico. Um retrato de uma faceta comum do povo brasileiro.

  • Crítica | Brasil: Um Relato de Tortura

    Crítica | Brasil: Um Relato de Tortura

    Produzido como um documentário acadêmico, que seria exibido nas televisões de San Francisco, o média-metragem começa com um apelo sincero, provindo de um dos exilados brasileiros no Chile. Sem qualquer ressalva, ele fala da realidade daqueles que não tiveram a mesma “sorte” que ele. Curiosamente, o pedido vai em direção a uma das nações que olhavam com olhos que apoiavam o período de regime ditatorial impingido pelos militares no Brasil.

    Após o anúncio dos créditos iniciais da fita, a câmera registra os sobreviventes que reproduzem suas lembranças através de um teatro improvisado, lembrando as queimaduras de cigarro na epiderme e emulando a arquitetura do pau de arara. As legendas em inglês demonstram a que povo esse produto é destinado.

    Uma jovem de vinte e cinco anos começa seu discurso em espanhol, falando em detalhes das torturas que sofreu e que também outras amigas também sofreram, relatando agouros que envolviam até violações sexuais, onde introjetavam objetos mil nas vaginas das moças. Apesar da voz embargada e dos muitos suspiros ao falar da agressividade com que era tratada, não é possível ofuscar o motivo que a fez praticar os atos marginais que a levaram a ser presa. O tempo todo ela destaca que sua luta é pelo povo.

    Após mostrar as marcas de bala em uma mulher vítima dos truculentos atos policiais, o Padre Tito declara como foi tratado na prisão, provando que mesmo uma figura do clero sofria tais situações de aflição, sendo torturado com choques elétricos e outros padecimentos, que o forçavam a fazer suas necessidades em plena roupa, impedindo-o até de se limpar após toda a crueldade dos atos. Esse tratamento era destinado a todos indiscriminadamente, segundo o sacerdote.

    Os torturadores não ignoram fatos como o roubo de carros e outros objetos por meio da expropriação, mas também permitem aos guerrilheiros improvisados explicar os motivos que os fizeram tomar aquelas atitudes. Aos olhos dos “companheiros”, a mentalidade de como o Governo trata seu povo é algo maligno. Destacando-se uma fala de um dos militares, que diz que “é necessário que cada cidadão brasileiro passe pelo pau de arara, para saber quem é patriota ou não”, enquanto a juventude engajada era humilhada por eles e pela mídia, que se dobrou ante os interesses governamentais como terroristas e subversivos.

    O documentário ganhou uma importância grande, não somente por seu conteúdo, mas por carregar nas suas fileiras de produtores o nome de Haskell Wexler, ganhador do Oscar de Fotografia por Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966) e Esta Terra é Minha Terra (1976). Sua notoriedade em terras estrangeiras garantiu uma voz que o “grupo dos 70” jamais teve em sua terra-natal. O filme, exibido pela primeira vez em 1971, jamais foi liberado oficialmente no Brasil, exceto, é claro, pela presença do produto na íntegra no acervo digital de sites de compartilhamento de vídeos na internet.

    Os últimos vinte minutos do programa se dedica, quase que exclusivamente, aos relatos de torturados que viram seus filhos, crianças que obviamente não se envolveram em nenhuma questão política, sofrerem os mesmos maus tratos, ora suavizados, por serem infantes, ora sendo violentadas no mesmo nível de agressividade. Vê-se que a tortura não conhece limites, e a prisão e exílio conseguem separar os tais revolucionários, mantendo famílias distantes entre si, graças à perseguição ainda muito presente no começo de década de setenta.

    Perto do desfecho, um dos membro do grupo diz o quanto é complicado ter de reviver todas as cenas de tortura, reencenadas para demonstrar visualmente quais eram as dores do povo brasileiro. Essa era a ponta do iceberg da completa falta de democracia do país, o que, em última análise, representa a situação mundial, relembrando o conflito no Vietnã e outros semelhantes. O manifesto dos rebeldes era o único modo que enxergavam de revidar o sofrimento que viveram. Uma visão romantizada do que seria a justiça e do que seria o modo correto e digno de viver em meio a uma sociedade tão subdesenvolvida quanto a brasileira, que ainda enxergava na repressão um bom modo de controlar o povo, fazendo-o refém do medo e do pavor aos que detém o poder. Para Não Dizer Que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, termina a trilha e a película, numa imaginação bem mais otimista que todo o conteúdo dos relatos apresentado no vídeo.

  • Crítica | Arquitetura da Destruição

    Crítica | Arquitetura da Destruição

    De todos os temas da história, o Nazismo provavelmente é o mais conhecido e comentado pelas pessoas em geral, tanto por causa da dimensão do grotesco causado pelos nazistas quanto pela propaganda americana realizada por meio de seus filmes, que reforçam ser este o momento em que os EUA salvaram a humanidade deste mal. Portanto, fazer uma análise sóbria do que foi o fenômeno da ascensão e consolidação do poder nazista na Alemanha não é tarefa fácil.

    Felizmente, o documentarista sueco Peter Cohen consegue desvendar em grande parte o que está por trás de toda a psicologia do Nazismo em seu filme de 1992, Arquitetura da Destruição. A obra deixa de lado grande parte das análises superficiais e sensacionalistas feitas até então sobre Hitler e parte para tentar compreender os fatos enquanto fenômeno da própria humanidade, que é o que todos temos medo, de nos enxergar como iguais aos autores de tais atos.

    Narrado por Bruno Ganz (que ironicamente iria interpretar Hitler em A Queda, de 2004), o documentário tem três eixos principais. O primeiro, em que Hitler e grande parte da cúpula nazista eram artistas e por isso davam tanto valor à estética do III Reich, baseada principalmente na arte clássica greco-romana, quanto à perseguição à chamada “arte degenerada”; o segundo mostra que os nazistas viam na ciência e na Medicina uma forma de aumentar a expectativa de vida da “raça superior”, ao mesmo tempo em que os médicos alemães também estavam por trás da “solução final”; e finalmente o terceiro, em que aventa a tentativa quase desesperada de patologizar o “judeu” na sociedade alemã, investindo pesado em propaganda associando-os a insetos e ratos e outras pragas que contaminavam o “corpo alemão”.

    A visão artística do III Reich era influenciada principalmente pelo romantismo alemão, movimento que vinha de uma forte herança nacionalista prussiana e antissemita e personificado na figura do compositor Richard Wagner, um dos ícones de Hitler. Também havia uma forte sensação de que o III Reich era o responsável por manter a linhagem da cultura greco-romana na era moderna, com foco especial em Esparta, sociedade considerada “ideal” por Hitler. As ruínas da Grécia exerciam forte fascínio sobre o Führer, tanto que ele e seu arquiteto, Albert Speer, projetaram vários prédios para a reconstrução de várias cidades alemãs, as quais imitavam a arquitetura grega para, no futuro, os povos olharem as ruínas dos nazistas com a mesma admiração com que, hoje, vemos as ruínas gregas. Por isso ele também proíbe expressamente o bombardeio de Atenas durante a invasão nazista a Grécia.

    Portanto, é fácil entender a importância que a arte tinha para os nazistas. Tanto que os artistas considerados “degenerados” foram perseguidos ferozmente e tiveram suas obras confiscadas e muitas vezes, destruídas. Para Hitler, a arte degenerada era a arte moderna, judaica e bolchevique, ou seja, sem traços definidos, o que para eles representava sinais de doença mental de seus autores, enquanto a arte considerada correta era aquela romântica, de paisagens campestres e bucólicas, sem nenhum tipo de conflito.

    O componente médico/científico do nazismo é também muito forte. Somos apresentados a dados impressionantes (como o de que quase metade dos médicos alemães aderiram à ideologia) e que reforçam ainda mais a tese de que o Nacional-Socialismo era muito mais um fenômeno de elite do que popular. Enquanto havia campanhas públicas para o alemão fazer exames e evitar a tuberculose e o câncer (tudo centrado na figura do “médico salvador de vidas”), os mesmos médicos estavam por trás dos primeiros passos do programa de extermínio dos “indesejáveis”, mostrando claramente que o uso dos campos de concentração era o passo final de um projeto que começa bem antes, sempre com o auxílio de vídeos feitos pelo governo. Um muito interessante mostra várias imagens de deficientes mentais vinculando-os a informações alarmantes (e falsas) de que, caso nada fosse feito, essa população iria ultrapassar a população alemã “saudável”, mostrando um indicativo de qual caminho os nazistas pensavam em seguir.

    Tendo em mãos relatórios, cartas e documentos da época, Cohen remonta em detalhes todo o plano de execução destes “indesejáveis” e a preocupação dos nazistas em esconder este fato, o que mostra que, mesmo no poder, suas ações não eram 100% aceitas ou inquestionáveis. Os primeiros modelos de execução, muito precários, eram em caçambas de veículos com o escapamento acoplado, o que causava a asfixia das vítimas por monóxido de carbono, enquanto os fornos incineravam os corpos em regiões próximas à cidade. Relatos de funcionários das tabernas, o cheiro forte e pedaços de cabelo nas ruas geravam um clima tenso. Foi quando os nazistas decidiram que migrar para longe das cidades seria melhor.

    Cohen também defende a tese de que a ação final contra os judeus acontece na parte final da Segunda Guerra Mundial, por conta da demora do conflito. Então Hitler decide acelerar os planos e passa a agir utilizando meios de comunicação em massa, especialmente o Cinema, para convencer a população alemã de que o judeu era uma praga que parasitava o estado e o povo alemão, portanto deveria ser exterminado. São categóricas as imagens de alemães dedetizando casas cheias de ratos e cupins com o mesmo gás que seria utilizado nas câmaras dos campos de concentração, o Zyklon B.

    Em resumo, Arquitetura da Destruição se mostra um filme indispensável a qualquer um que tenha a mínima pretensão de entender a fundo o que foi o Nazismo. Muito bem construído e documentado, é daquelas obras que se eternizam no tempo por sua qualidade e profundidade, pois, em um tema tão complexo, é fácil deslizarmos para o senso comum. Segundo o próprio filme, não é chamando Hitler de artista frustrado (ou monstro) que iremos entender tal fenômeno. Tampouco achando que foi uma obra feita por meia dúzia de alucinados ou, tão errado quanto, pela totalidade dos alemães do período. O Nazismo cresceu e virou o que virou porque foi fruto de pessoas de sua época, de contradições de sua época, da anuência do Ocidente com uma ideologia militarista e extremista; mas, acima de tudo, foi um fenômeno totalmente humano. E isso é o que mais nos assusta.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Sem Pena

    Crítica | Sem Pena

    Variando entre a triste e duríssima realidade do sistema judiciário brasileiro e o trabalho com uma linguagem pouco comum ao documentário brasileiro, Sem Pena representa um modo pouco usual de contar uma história em documentário, já que não é refém de fórmulas manjadas ou de uma abordagem mainstream de um assunto já deveras discutido.

    Realização de Eugênio Puppo, o longa-metragem começa com a fala de um sujeito que foi injustamente acusado por estupro e, por isso, encarcerado, unicamente por se vestir igual ao agressor de uma moça, embora fosse levado em conta o seu testemunho. Casos como esses são muito mais numerosos do que se imagina e do que as autoridades gostariam de admitir.

    Um dos diferenciais do filme é mostrado logo de cara, já que os primeiros depoentes dão entrevista, mas não revelam suas faces, buscando priorizar o discurso numa bem sucedida tentativa de universalizar as palavras ditas pelas personagens que se apresentam.

    Com o decorrer do filme, outros maneirismos são exibidos, como a filmagem a partir da perspectiva da carabina de um dos guardas de segurança, que fica nas torres vigiando os arredores de um presídio de São Paulo. Mais flagrante ainda são as cenas dentro das repartições públicas, com pilhas e pilhas de cadernos, onde estão nomes e casos de pessoas que foram julgadas, sem qualquer perspectiva de liberdade ou de reabilitação, mesmo aquelas que já cumpriram suas penas.

    Das falas mais assustadoras, há uma de um ex-policial militar que assume que há uma quantidade mínima de prisões que ele deve efetuar por período de tempo. Ele afirma que só conseguiu refletir e perceber o quanto isso é péssimo para ele e para a sociedade, quando esteve preso também, após uma difusa investigação de homicídio fora do seu tempo enquanto fardado. A denúncia surge não só para demonstrar a miopia do sistema, que prefere punir a corrigir o erro comunitário, mas também evidencia como pensam os agentes da lei, os braços armados que deveriam servir e proteger o povo, mas que aceitam extorquir e denunciar qualquer um, desde que seja conveniente ao Estado.

    A questão de que todo indivíduo é inocente até que se prove o contrário é sumariamente ignorado segundo as investigações de Puppo e de sua produção, ligada ao IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa – que tenciona discutir e consertar essas mazelas e erros de cálculo relativos ao julgamento de réus e do tratamento do preso enquanto parte do coletivo carcerário.

    Ao final, a tônica de não ter rostos é quebrada, mostrando a sessão de julgamento de uma senhora, acusada por tráfico de drogas. A cena é tão prodigiosa em sua feitoria, edição e captação de imagens, que a desassociação desses momentos com a ficção tornam-se quase impossíveis, uma vez que toda a verossimilhança é preservada, tendo uma enorme teatralidade impressa em seus esforços. Sem Pena é um produto que carrega em si um cunho de civilidade atroz e que têm o trânsito perfeito entre a informação pura e simples para o público incauto, além da sutileza ligada à arte de contar uma história.