Crítica | Carne de Cão
Segundo longa-metragem dirigido por Fernando Guzzoni, realizador do documentário chileno La Colorina junto a Werner Giesen, Carne de Perro narra a história de Alejandro, um ex-servidor militar de passado obscuro, ligado de forma indefinida ao regime de Pinochet e que segue sua vida de forma conturbada, sem muitos recursos e afastado daqueles que ama e que jurou cuidar – sua esposa e filha.
Alejandro Goic, que interpreta o protagonista homônimo empresta muita veracidade ao drama presente na história, encarnando uma alma confusa e furiosa que tem muita força e agressividade para transmitir, mas não sabe como catalisar toda essa fúria. Em momento nenhum fica claro quais eram as motivações do passado de Alejandro, e isso até contribui para a construção da personalidade caótica dele. No primeiro momento em que é posto em cena, o protagonista tem um ataque de raiva ao receber um telefonema, quebra o aparelho e esmurra a parede quase pondo-a abaixo. Após isso ele lava sua mão ensanguentada enquanto a câmera foca o seu punho deformado e inchado graças as batidas, demonstrando com imagens a selvageria a que o personagem estava acostumado a viver.
O motivo do rompante de ódio era a notícia do falecimento de um de seus antigos companheiros. No velório, Alejandro puxa o filho do defunto de lado e profere palavras de ordem com o dedo em riste, da forma mais convincente que conseguiria expressar: “Seja um bom chileno, como o seu pai foi!” – ao ouvir isso, o rapaz se desfaz em lágrimas. Mais tarde, a ordem dos fatos mostra que o motivo da morte foi um suicídio, algo que apavora demais a psiquê já combalida do personagem principal.
Ele se sente abandonado também por seus companheiros do grupo de apoio a ex-combatentes, pois estes são incapazes até mesmo de providenciar para si auxílio médico. Ao finalmente conseguir uma consulta, é passado para a ala psiquiátrica, onde ouve a contragosto que o mal pelo qual passa são crises mistas, movidas por ansiedade e angústia. Apesar da obscurescência de seu passado, dá para traçar um paralelo com a situação dos mariners estadunidenses após a Guerra do Vietnã, pois neste retrato os dramas são muito parecidos: mentes perturbadas pelas atrocidades cometidas no passado, mas sem a compreensão nem por parte de seus iguais, representados pelos militares aposentados, e nem pela opinião pública, representada pela ex-mulher que faz questão de manter distância do antigo cônjuge.
O carro quebrado, táxi em que Alejandro trabalha, simboliza a vida destroçada que ele insiste em manter, impedido até de conseguir o seu sustento de forma digna. Demonstra vulnerabilidade nas cenas em que deita-se no colo da menina, possivelmente buscando nela o amor que não tem na filha e na mulher. Nas cenas no chuveiro, através da água que escorre por seu rosto, permite-se chorar, seus sentimentos mais íntimos só afloram nas cenas em que a limpeza é o foco dos atos.
A cena em que agride o seu cachorro, único ser remanescente de sua antiga rotina, demonstra todo o descontrole emocional pela qual ele passa, além de explicitar a sua vontade de não existir mais, o fato de cuidar das feridas do animal pode ser encarado como uma última tentativa de viver, que desemboca na sua mudança de atitude com relação a figura religiosa. A forma como Alejandro se agarra nisso demonstra sua vontade de viver, usando a crença no divino como avatar da mudança de atitude e de amor à própria vida. O roteiro de Guzzoni prioriza muito a mensagem pelo visual e acerta nessa escolha de uma forma delicada e pontual.