Crítica | Keoma
Entre os mais conhecidos filmes de Western Spaghetti, Keoma possivelmente é um dos mais diferentes em forma e conteúdo. Dirigido por Enzo G. Castellari, a abordagem começa silenciosa, com mãos velhas e desesperadas tentando limpar um artefato metálico em uma vila tomada pela morte, enquanto o herói vivido por Franco Nero chega de cavalo. O sujeito, que tenta parecer impassível e incapaz de sentir qualquer coisa relembra seu passado trágico, olhando para o local devastado e vendo sua própria aldeia indígena tomada pelo fogo e pelos cadáveres dos índios em lembranças, claro. Esse é um filme do velho oeste repleto de fantasmas.
É fato que Nero não se parece em nada com um nativo americano (mesmo que seja mestiço) afinal tem olhos claros, cabelos lisos e castanhos e pele branca, disfarçada por um bronzeado estranho e que não se sustenta durante as inúmeras cenas em que ele encontra sua contra parte infantil. Sua rotina consiste em vagar pelos desertos tentando fazer justiça com as próprias mãos, onde reencontra o passado, lidando também com traumas que pareciam estar resolvidos onde suas memórias e presente se confundem bastante.
A atmosfera do filme não é de pura ação. O retorno de Keoma a sua terra traz também o caos e o combate a sua antiga família. Entre encontrar seu pai – um homem branco, que determina sua natureza mestiça – e encontrar velhos amigos, como o negro George, feito por Woody Strode, ele percebe que há uma peste no lugar, que é administrado pela mão de ferro de um vilão, cujos capangas são seus meio irmãos. Não há muitas explicações, ou variações para o humor, o filme é essencialmente dramático, apesar de ter toda a estética exagerada dos Bang Bang à Italiana, como os corpos dos que levam tiros voando.
Talvez o filme seja mais conhecido por sua música característica, conduzida por Guido e Maurizio de Angelis, um canto acompanhado de cordas, com uma voz bem aguda narrando a jornada do herói. De certa forma a canção dá o tom do que aparecerá em tela, da desconstrução do bom mocismo no oeste, em inúmeras frentes. Além da obvia questão racial de George, o filme também trata de temas mais modernos, como paternidade mal resolvida, não exatamente por Keoma, e sim por seus irmãos, que cobram do pai uma postura mais enérgica com o rebento rebelde. Além disso, há também um sub texto homo erótico, envolvendo praticamente todos os personagens, incluindo o patriarca Shannon. Castellari coloca a câmera em lugares estranhos, favorecendo ângulos que tornam o personagem de William Berger um ser semi divino, a partir da perspectiva dos filhos que veem o progenitor como alguém acima do bem e do mal.
Há uma tentativa de replicar a historia de Jesus Cristo na presença e vida de Keoma, não só pelos cabelos longos do heroi, como pela chegada súbita em busca de justiça, além do papel do pai como alvo máximo da justiça portanto sendo Deus Pai, com seus irmãos representando os anjos que seguiram Lúcifer para fora do Paraíso. Ao menos essa aliteração não é obvia.
Para plateias mais novas, alguns momentos de Keoma podem parecer constrangedores. Há um exagero no uso da câmera lenta, numa clara referencia de Castellari a Sam Peckinpah, e nas expressões de Nero ao perceber o infortúnio chegando aos seus. O clima dramático tem um tom exagerado, mas o modo como o filme trata seu tempo e o pós Guerra Civil revela uma visão agridoce sobre o início da organização dos Estados Unidos como país, e ainda o faz abrindo possibilidades de leitura para uma historia que trata até Complexo de Édipo, seja na já citada questão de homossexualidade enrustida não só pela pouca presença de elenco feminino, como nos olhares entre os meio irmãos, que tem claro saudosismo e apelo aos laços sanguíneos e possivelmente, desejos incestuosos escondidos. Exageros à parte Castellari apresenta uma abordagem diferenciada até dentro de seu gênero, resultando em um bom fim simbólico aos filmes de faroeste italianos.
https://www.youtube.com/watch?v=qpy7pwuUkrE