Crítica | As 24 Horas de Le Mans
O começo de As 24 Horas de Le Mans é silencioso em verborragia. O que se percebe são barulhos mecânicos, com o de um Porsche rasgando o ar por pacatas ruas francesas, logo depois predominam algumas luzes fortes no escuro, atrapalhando a nitidez, em uma representação básica da falta de visão do piloto que ocorre no circuito de corrida quando a noite chega. Esse breu é interrompido uma batida, que faz com que o fogo suba, iluminando assim a visão dos que assistem e disputa
O silêncio impera nos primeiros minutos do filme de Lee H. Katzin, mesmo as vozes que se ouvem não são de personagens diretos, e sim de alto falantes, informando o estado de saúde de Michael Delaney, personagem do astro Steve McQueen. Quando alguém fala diretamente, também é difícil de entender por conta de dois motivos, que são o idioma estrangeiro e o estado ébrio de um dos personagens, atônito com a batida que ocorreu.
Exige-se bastante de McQueen, até por conta da atuação praticamente muda do mesmo. Não admira que o filme não tenha tido uma recepção tão calorosa do público, pois ele é quase ensaístico na (pouco mais de) meia hora inicial, já que deixa a movimentação dos automóveis sobressair, seja os populares, nas estradas, ou os esportivos, nos circuitos. O trabalho de Harry Kleiner no roteiro também não foi fácil, pois ele teve que bolar situações que ocorrem em tela e que são registrados por Lee que falem mais do os diálogos expositivos que normalmente permeiam o cinema comercial mundial.
Apesar de não ser muito apegado ao didatismo, o filme explana bem as regras da prova de resistência, salienta as pausas de pelo menos uma hora dos pilotos, e que ninguém pode correr mais de 4 horas consecutivas durante esse que seria o 38º prêmio de Le Mans. A largada é dada com atraso entre as ações, quase como se o vídeo travasse, movido pela expectativa do início das disputas e também referenciando a mecânica de arranque dos carros que passearão pela pista.
O primeiro diálogo de McQueen se dá com Elga Andersen que faz Lisa Belgetti, o interesse romântico do mesmo, personagem essa que tem ligação com um antigo piloto que morreu em um acidente supostamente causado por Delaney. Para quem não conhece toda a historia do filme, não há percepção real de quem ela é, até porque a vida pessoal do motorista não parece importar tanto, só seu desempenho na escuderia é que vale, então esse nível de detalhamento não ocorre, tampouco há uma maior explanação ou exposição via diálogo. Os diálogos subsequentes também giram em torno do modo de correr e de construir carros potentes e velozes, já que o foco narrativo é esse.
As derrapagens nas curvas com o asfalto molhado são mostrados de uma maneira curiosa. Há bagunça, preocupação em tirar veículos e equipe para que não sejam atingidos, isso com a corrida em andamento. A paixão pelo esporte e competição passa por cima até de muitas normas de segurança. Os acidentes e incidentes são viscerais, repletos de sangue, suor e desespero, receio de perder a vida, sentimentos conflitantes que andam juntos, harmonicamente ou não e que causam apreensão não só no que toca continuar trabalhando com a paixão pela velocidade ou não.
A anestesia nas atitudes de Michael fazem perguntar quais seriam suas prioridades, mas ele é um homem calado, do tipo que se exigia do comportamento de macho alfa inabalável das décadas passadas a 1971, ano de lançamento da obra de Katzin. As 24 Horas de Le Mans é uma obra intimista em boa parte de sua abordagem, trata de paixões ligadas ao automobilismo mas sem fazer concessões ao estilo de arte comercial, sendo uma obra forte, sentimental e violenta na tradução dos impulsos básicos que envolvem as corridas e a resistência.