Resenha | O Homem de Areia – Lars Kepler
“Está sempre escuro quando ele vem.”
Não é de se estranhar que o autor Lars Kepler, o pseudônimo do casal Alexandra e Alexander Ahndoril, ganhou uma solene notoriedade com esse O Homem de Areia. Já lemos ou certamente assistimos inúmeras histórias sobre psicopatas e seus desaparecidos, numa aldeia global de pessoas trancafiadas na liberdade dos seus condomínios. Lidando com o fim dessa privacidade e da segurança, e metaforizando nossa alienação midiática por meio da ação de um assassino que se comporta como uma entidade que ninguém consegue ver, ou muito menos capturar, a publicação da editora Alfaguara não deixa dúvidas sobre a influência narrativa que ela pode exercer em outras obras do gênero policial, e suspense. Em Estocolmo, Suécia, pessoas começam a sumir feito pegadas na neve, e o mapa do país inteiro começa a ser marcado pelo DNIC (Departamento Nacional de Investigação Criminal) como se a ameaça fosse tão real, quanto onipresente.
Mas não há espaço para monstros de fantasia, na vida real: nós somos os nossos próprios monstros. O que há, portanto, é um risco e uma ousadia a serem consideradas, aqui: descrever um cenário formado e influenciado constantemente por enigmas e segredos não desvendados, em um mundo contemporâneo (e quase que distópico) em que somos sempre vigiados pelas instituições públicas e/ou grandes corporações, já é um feito nobre por si só. Se é possível realmente passar despercebido numa realidade de mil olhos sempre abertos, pergunte ao serial killer Jurek Walter, então. Um homem quieto e reservado e fora de qualquer suspeita, o talento de Jurek era ser invisível, além de fazer suas vítimas de sequestro serem irrastreáveis por anos a fio – até ser finalmente pego, e sob a luz de severas investigações profissionais, continuar a ser um mistério desencadeando muitos outros ainda a acontecer, e motivos inimagináveis para velhos teoremas perturbadores que nunca iriam ganhar solução, sem a sua captura.
O Homem de Areia, o apelido estranhamente infantil de uma das vítimas sobreviventes ao seu tenebroso sequestrador, que joga um pó nas suas caras e as faz adormecer de imediato, é um suspense calcado não apenas no compromisso hipnótico e bem-sucedido aqui de se criar um ótimo thriller policial hiper-realista, onde nada nem ninguém é o que parece ser, mas na complexidade dos nossos tempos em que as coisas não parecem fazer sentido, e muitos andam no escuro de uma ignorância resistente, mesmo na era da internet, ou seja, da informação. Da mesma forma em que é impossível rastrear todos os crimes e a psicologia por trás deles de um psicopata estratégico e inteligente (indo muito além dele, na trama), não se entende com exatidão os defensores da teoria da Terra plana, ou a empatia majoritária de uma população por políticos que reúnem os piores valores que um ser humano, como representante de seu povo, pode expressar contra ele, e seu bem-estar individual, e coletivo.
A questão de quem coloca areia nos nossos olhos salta das páginas, se questionarmos a verossimilhança de uma história brilhantemente bem costurada sobre a corrida contra o tempo de Joona e Samuel, dois jovens polícias suecos, montando um quebra-cabeça surpreendente sobre as motivações e os efeitos do terror urbano que vem das sombras. E não adianta fechar os olhos, porque quando ele quer, nós adormecemos. Quando o horror vem de quem não existe, e ao mesmo tempo, espreita as janelas acessas de uma casa, de madrugada, nosso instinto de sobrevivência não se aquieta até descobrirmos a fonte da nossa insegurança, mas mantê-la presa não acabará com os pesadelos aqui de fora: eles nasceram aqui. Joona e Samuel sabem que estão lidando com uma mente calculista e que não merece ser subestimada, e para entendê-la, precisarão ser consumidos por suas horripilantes características. É preciso entender o inimigo a fim de combatê-lo, mesmo que o antagonista seja o motivo das suas próprias trevas.
Em rápidos capítulos feitos para prender nossa atenção no que, muito em breve, está para acontecer, Kepler mantém um controle absoluto sobre a tensão que pratica em nós, reféns de uma leitura ágil e muito intrigante sobre o princípio básico do suspense – o desconhecido e os seus símbolos bem articulados. Indo cada vez mais a fundo na lógica desumana das perversões que o homem é capaz de fazer com o outro, os envolvidos na teia de crimes de Jurek nunca mais serão os mesmos, em uma trama que vive de suas divertidas e dramáticas reviravoltas, ainda que trabalhadas com precisão através do forte senso de atração que toda imprevisibilidade oferece as boas narrativas que dependem dela – como, de fato, é o caso com essa obra. Numa era que deveria ser de luz e uma maior segurança aos cidadãos vigiados, o simples vislumbre da escuridão e o que ela representa já nos deixa arrepiados. O mal desdenha a iluminação, a demoniza, mas nem por isso ele é imune a ela. Um grande livro.
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