Resenha | Rosario Tijeras – Jorge Franco
“Rosário gosta de mim”, a mentira final. Antonio se engana porque precisa disso. Eis o auto engano que um amante silencioso conta, para si mesmo, o tempo todo, dentro ou fora do hospital, ao lado e na frente da garota veneno que ele nunca aprendeu a desamar, como deveria. Se a América Latina ferve e é pura paixão, e instinto (muitas vezes carnal, e tempestuoso), vibrando e resistindo com sua identidade diante das mudanças do tempo, o notório escritor Jorge Franco nos brinda nesta novíssima literatura colombiana com uma relação nada romântica entre dois opostos que a vida atraiu, justamente para que, juntos, achem forças para enfrentá-la nos seus momentos mais difíceis. Rosario Tijeras, marco latino e de gigantesca vivacidade de 1999, começa no maior desafio que os dois já tiveram de passar, sobrevivendo entre o submundo da violenta cidade de Medellín, e a alta sociedade colombiana.
Ela, cravejada de balas na emergência de um hospital; e ele, torcendo para que ela acorde para, enfim, revelar seu amor pelo mulherão que nunca pôde ser menina. O que existe entre Rosario e seu fiel amigo, um misto de dependência e resistência, é a separação do romantismo com o amor, bastante comum no cético século XXI, numa realidade dura demais para o primeiro existir e se dar bem. Na verdade, nada é bem-sucedido para quem dança com a morte, a fim de ter o que comer no dia seguinte, como se não houvesse outra coisa a se fazer – e muitas vezes, não há. Mas Rosario, aquela que adorava botar medo nos homens só pela fama perigosa do seu nome, ela ria na cara do perigo, e agora, semimorta, pagou um preço muito bem pago por isso. Franco, hábil escritor, reserva para Rosario Tijeras um estudo de ambiente a partir dos seus personagens, servindo ainda como um belo e delicioso estudo de antropologia e sociologia do comportamento de jovens homens e mulheres das periferias mais violentas, do terceiro mundo.
Rosario, a mais impiedosa e bronzeada das femme fatale cor-de-canela, andava no limiar dos abismos como se estes fossem parentes próximos. Neles, circulava com os mais diversos machos, cujo beijo de um incluiu uma bala certeira à queima-roupa, para dar fim a seu reinado de loucuras, e inconsequências não tão eternas, assim. O narrador, seu tristonho Don Juan que nos detalha a vida dessa Capitu, ainda mais (muito mais) dissimulada que a de Machado, sabe que ela é uma assassina capaz de tudo. Mas um coração de amores platônicos, como bem nos lembra e nos comprova este romance, não se rege pela razão, como se Antonio já tivesse comprado, há muito, o papel oficial de anjo da guarda dessa perfídia matadora. Franco usa de sua irresistível prosa para nos levar por uma viagem de sensações, aqui, com um efeito tridimensional capaz de envolver o mais sisudo dos leitores a um embate entre vida e morte, nessa Colômbia imprevisível e carnavalesca em todos os sentidos – como todo país latino-americano, que se preze.
Letal até no nome (Tijeras, não por acaso, é tesoura em espanhol), Rosario gosta dele, mas Antonio a ama, e esse sentimento é bom e grande demais para Rosario. Quão trágico é esse dilema tão banal, nos quatro cantos do mundo, mas que em Medellín toma proporções mais dramáticas que a mais cruel das separações. Uma cidade impiedosa para gente mais ainda, afinal, Rosario não tem medo da morte, nem de homens perigosos e vingativos. Ela seduz a todos, ganhando assim um pouco mais de tempo para tentar ser feliz – sempre com Antonio, irmão que a vida lhe deu. Ah, a friendzone… a vida é cheia de coisas mal resolvidas, e grandes obras como essa, publicada no Brasil pela editora Alfaguara, numa boa tradução ao português, tentando organizar e ampliar os sentidos daquilo que nunca vem à tona, e junto de alguns que se vão, fica enterrado para sempre quando a brincadeira termina. Rosario era esperta, mas há sempre um peixe maior.
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