Crítica | O Pianista
A trama de O Pianista começa lúdica, no ano de 1939, Wladyslaw Szpilman tem sua música povoando as imagens polonesas em preto e branco antes mesmo de seu interprete Adrien Brody aparecer em Warsaw, destilando seu talento musical em um restaurante chique que abriga não só judeus como toda a aristocracia gentia. Entre os acordes que faz, a realidade não demora a aparecer, com bombas ocorrendo por todo o território do país inclusive perto da onde ele trabalha, enquanto o musicista recebe visitas de fãs, que compõem para si uma doce ilusão de normalidade e prestígio, em um país que é cada vez mais severamente atacado por extremistas de direita.
Seu núcleo familiar começa unido e feliz, mesmo com os ataques ocorrendo e com os rumores da perseguição aos judeus também nesse país. A trama aqui é tão otimista que faz lembrar os bons núcleos de novelas globais, eles comemoram o apoio francês aquela época, fato que para o espectador soa engraçado, no sentido da curiosidade e do infortúnio que em breve recairá sobre os Spilzman e demais membros da comunidade hebraica polonesa.
Apesar da atmosfera ser construída aos poucos, e do idioma ser majoritariamente em inglês é impossível não emergir neste drama, seja pelas atuações do elenco que cerca Brody – com Emilia Fox, Frank Finlay, Michael Zebrowski – ou pela clara decepção do protagonista, que vê proibições de entrar em bares e cafés, rareando cada vez mais as oportunidades de trabalho. Para ele não é surpresa a humilhação que em breve sua família e o mesmo passarão, mas a câmera de Polanski não poupa o espectador mesmo com a previsibilidade do destino, pois todos os membros do clã são enquadrados, esmurrados, perseguidos e humilhados.
Em pouco mais de 15 minutos, todo o otimismo de Wladek de que as prisões demorariam pouco e de que a família ficaria bem desaparecem, como a água que invariavelmente escorre pelo buraco da pia. Os muros em volta dos campos são levantados muito rapidamente (ao menos essa é a sensação do protagonista), as ruas e calçadas tomadas de lama, os tons das roupas passam a ser predominantemente cinza, remetendo a miséria existencial dos concentrados. Ainda neste contexto, existe alguma aristocracia hebraica, gente que conseguiu manter seus tostões e que ainda tem algum luxo mesmo nesse cenário, e Wladek trabalha nesses guetos, produzindo alguma boa musica para os mais abastados.
A proibição de lazer, cultura e os roubos as economias dos judeus conversam bem com a atualidade, onde a economia mesmo quase um século envelhecida segue segregando os mais pobres, roubando-lhes o pouco que tem. Por mais que os governo autoritário de direita não tenho o mesmo poderio e inteligência que Hitler e os seus tinham na Alemanha dos anos 30 e 40, percebe-se a mesma intenção de desmonte e de terror. No filme, há um belo cuidado em mostrar sinais pequenos, como as luzes das casas onde o horror vai predominar se acendendo, poeticamente tratando do fim da vida de alguns com cenas cruéis de exterminio, que representam bem a barbárie e maldade desses, que insistem em tentar retomar seu poder na onda conservadora que invade países pelo mundo, entre eles, o Brasil.
O retrato da situação judia que o diretor propõe em seu roteiro passeia por boa parte das instâncias de sofrimento que os filhos de Israel passaram, mesmo os que não se envolviam politicamente com a resistência aos nazistas. Os soldados opositores eram implacáveis com os que estavam no lado “adversário”, e esses só eram assim vistos por conta de uma condição de nascença, por terem sido eleitos por intolerantes como alvos de perseguição. Olhando pelo ponto de vista dos segregados, soa quase impossível um sujeito como Hitler ter tanta adesão popular e tantos apoiadores, e a maquina de propaganda de Joseph Goebbels ajuda a explicar a aderência ao discurso nazi fascista. Para quem sofre do outro lado, é bem fácil notar as fragilidades dos comerciais e dos discursos, mas para quem está no contexto dos privilegiados de fato, é sedutor ter seu ego afagado e suas vontades cumpridas, além de incentivos aos preconceitos que eram obviamente compartilhados pelo povo, sendo assinados pelos poderosos. De fato é preciso que a educação liberte o povo de seus grilhões movidos pelo pensamento, para que este povo perceba que também é explorado e que não faz sentido a perseguição ao diferente, mas tanto nos anos 30 e 40 do século XX quanto na atualidade, é difícil desconstruir essa mentalidade.
A fotografia de Pawel Edelman ajuda demais a compor esse cenário de calamidade, assim como a total entrega de Brody, que passa por fases físicas severamente diferentes no período em que é perseguido, a forma como o filme trata o nível de desespero dele e de outros homens impressiona, um artista, com intenção de brilhar é reduzido a somente um homem que busca sobreviver, que se esgueira por casas pequenas, caçando migalhas e pedaços de pão, farelos e sobras de refeições passadas, que encontra antigos amores agora com outros pares e que não sabe se viverá mais um dia ou se encontrará de novo os seus. Todo esse desespero é facilmente traduzido a quem assiste, e o destino de Wladek parece ser mesmo o de sofrer. A guerra de fato só chega nos quarenta minutos finais, e ele é invadido pelo desespero, tendo o pouco refúgio que tinha sendo bombardeado.
Mesmo quando o drama soa fantasioso ou sentimental, há um pé na realidade visceral que a guerra proporciona muito forte. A proximidade do conflito o faz regredir ao estágio mais básico da vida, incapaz de falar ou de fazer qualquer coisa que não seja buscar suprimentos. Ele interrompe essa existência quase neandertal quando tem um encontro com um oficial da Gestapo, em um dos momentos mais tensos da historia. Quando ele pode tocar piano, o faz com afinco, como se sua vida dependesse disso e de certa forma, depende mesmo. Esse oficial é um dos mais intrigantes personagens, pois apesar de ser nazista ele é humanizado, simpático, quase benevolente, convencendo a si mesmo de que faz o bem, ainda que seja só um oportunista, percebendo que seu fim chegará. Por mais que O Pianista trate o exercito soviético como uma cópia dos nazistas – em um paralelo raso e breve, aliás – seu intuito de valorizar a historia de Spilzman é absurdamente exitosa, compondo esse uma obra prima de Roman Polanski, em alguns momentos superando até a obra de sua filmografia como um todo, facilmente entrando no panteão de O Inquilino, O Bebê de Rosemary e Repulsa ao Sexo, as obras máximas do cineasta, sendo um filme repleto de camadas e significados.
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