Crítica | A Gangue
Na herança primitiva do homem, animal cuja natureza o permite ser também cultural, nela encontra-se a base para a explicação, e não a solução dos problemas de hoje em dia. Problemas que sempre existiram, afinal ainda estamos evoluindo (talvez a Terra nos sirva para isso, uma grande escola deteriorada por seu alunos), sendo que não há nada de novo debaixo do sol, já disse o poeta (não me pergunte qual, algum gênio que morreu de fome, provavelmente). Nem mesmo a reciclagem do costume mais básico de uma sociedade, que seja de um indivíduo como você, leitor, é natural: Tudo nos foi ensinado. Casar, se comunicar, estudar ou enriquecer, tradições enraizadas no nosso ontem coletivo, um passado cultural; fonte do presente, pista do enigma.
O próprio Cinema para os irmãos Lumière foi a América para Colombo – o trem que ia sair da tela assustando quem nunca viu uma projeção de movimentos. Pro animal natural que ficou cultural, o preconceito é a defesa dessa cultura defronte ao alienígena, ao extrafamiliar, o diferente, com o silêncio ou a revolta no papel de defesas naturais diante do desconhecido; nós não somos igualitários (You can’t sit with us!), nunca fomos generosos, mas nossa cultura nos obriga a ser para viver melhor em bando. É o jeito. Dos Lumiére até hoje, o silêncio no Cinema se tornou expressão sem uso de trilha-sonora muito cedo, mas só foi refinado numa soma de valores por Ingmar Bergman, deus sueco, em testamentos estilo Persona, tipo A Hora do Lobo, aonde palavras são mera verborragia e um close da boca fechada de Liv Ullman, ou a mudez profunda entre os poucos diálogos de Luz de Inverno falam e expressam mais que Ulysses inteiro.
O silêncio como salvação, meditação, a favor dos verbos que não passam na goela de quem tem tudo a dizer, e por isso diz quase nada. O silêncio como redenção, como liberdade de expressão, pois quem cala consente na vida como ela é, com ou sem defesa para encará-la de frente, sem medo. Tal silêncio como encarnação da linguagem distante dos jovens dos anos 2000, e o que de primitivo habita essa quietude moderna, essa falta de comunicação tão estudada por Michelangelo Antonioni, noutra geração e cultura que obviamente reflete na atualidade, são a base para A Gangue, que rouba do silêncio sinais e emoções maiores que a dialética e o poder da palavra, a fim de compor uma linguagem secreta e um intercâmbio de valores compartilhados por uma juventude inteira.
O filme ucraniano é uma espiral de causas e decorrências numa velocidade “piscou-perdeu”, tão ágil em narrativa quanto os gestos de um grupo de estudantes mudos, o que quase não são, tanto é que as cenas na sala de aula são pouquíssimas, e o filme nunca se prejudica pela exclusão do que fez o Cinema de Quentin Tarantino e cia. ser tão celebrado: o blábláblá falado em quantidade nuclear. Alternativas para a linguagem de A Gangue ser tão flexível, versátil e plástica ao nosso entendimento são tão naturais quanto o cantar da aves, tamanha a fluidez exemplar da história nas mãos de Miroslav Slaboshpitsky, um cineasta consciente do que faz as pessoas serem o que são: A forma como nós expressamos nossos valores, e não os valores em si.
O quanto isso lembra o poder audiovisual do Cinema tampouco pode ser medido em verbetes. A comunicação e o que brota dela, sejam valores ou a desconstrução deles, é o que interessa a Miroslav na investigação do comunicar, no limite de uma forma de linguagem que jamais pode ser subestimada pela voz de quem emite o que se pensa, ou sente, pela boca. Talvez usamos mensagens de texto ou emoticons para sentir como é estar do outro lado, sentir nos dedos essa ironia; a experiência do diferente. Os personagens de A Gangue jamais são tratados assim, com diferença e exclusão (a direção de atores é soberba), num universo de cores frias e semelhante ao nosso, cheio de equívocos e segundas intenções, numa cultura de dependência social que esmaga a preferência pessoal, expressando o que nos torna humanos num contexto brutal e primitivo, para o bem ou para o mal. A ética do filme é apenas se expressar da melhor maneira possível, e a tradução de seus sinais não poderia ser melhor traduzida ao público, em ações na história que, realmente, falam mais que mil palavras. A todo momento, os membros da gangue de jovens criminosos (e revoltados) assumem seus papéis de fantasmas, grupo de incompreendidos que só se comunicam entre si, mas que também querem amar, explorar o mundo, ser entendidos e ter um futuro como qualquer juventude, criando em bando recursos para se manterem ativos num mundo que os exclui, e os instiga a excluir o próximo. O bicho preso sempre canta mais que o liberto.
O clima num filme mudo é fundamental, aqui algo cru e direto para ilustrar as intenções do artista. Por isso, o filme explora o mistério do instinto nas suas bestas de gaiolas, gaiolas de função coletiva. Se esses personagens falassem, falariam o quê? O que um mudo falaria depois de uma vida em silêncio? Teria preconceito com a própria voz, ou se acostumaria com a palavra? Chaplin e Keaton nunca precisaram delas, mas entraram na onda quando o diálogo já era uma necessidade. Os cineastas Dreyer e Fritz Lang, mestres do preto-e-branco, só optaram pela cor pra continuar relevantes nesse mundo novo, pois nunca precisaram nem de som, nem de matizes. Manipuladores desse silêncio que tornou seus filmes diamantes no garimpo histórico dos filmes.
Mas talvez o que falta aos jovens de A Gangue não são palavras, ou outro sentido, e sim o diálogo, na língua deles, na realidade deles, na maneira deles. Sem isso, os conflitos do filme se tornam inevitáveis, como a emergência que só cresce nesses jovens perdidos, à margem da sociedade por suas condições. A ausência de cordas vocais implica no caos que existe no mundo desses adolescentes, que com certeza reflete no adulto do amanhã. A narrativa de hábitos e costumes os consome e nutre o meio-ambiente onde se violentam e transam, em desespero, rumo a um clímax que homenageia e condiz com o clássico Elefante, de Gus Van Sant. Retratos da geração das mil linguagens, e que por isso mesmo volta à estaca zero: O silêncio, na forma mais primitiva de se contar uma história. Se Godard disse Adeus à Linguagem, Miroslav faz saudação.