Resenha | O Exército de um Homem Só – Moacyr Scliar
Todo escritor guarda certos aspirações – algo totalmente defensável, em primeiro lugar. Se possível, querem ter em sua autoria seu próprio O Senhor dos Anéis, ou um Madame Bovary, um Cem Anos de Solidão, um Dom Casmurro, ou um Ulysses para chamar de seu, claro. Acontece que a criação máxima de Miguel de Cervantes, Dom Quixote, também entra para o amplo e ainda assim seleto hall de desejos e vaidades que toda mente literária, consciente ou não, carrega em si. Moacyr Scliar, escritor gaúcho ainda pouco reconhecido no Brasil (a sina dos artistas brasileiros que não aparecem na vitrine publicitária chamada de Domingão do Faustão), podia-se dar ao luxo – ímpar – de ter conseguido criar uma versão própria do épico conto do cavaleiro de La Mancha, seu escudeiro, e um mundo que por sua audácia, cega e infantil, ousou decifrar.
Longe de ser um conto de cavaleiros, damas e moinhos de ventos, publicado nacionalmente pela editora L&PM, Moacyr imprime aqui a essência do heroísmo puro, das diligências utópicas dos grandes homens e mulheres do mundo, e ao mesmo tempo destaca a figura que, de tão destemida e sonhadora, quase sucumbe perante a realidade esmagadora dos fatos. Estamos falando não mais de Quixote, mas do seu primo de terceiro grau, o ótimo personagem Capitão Birobidjan, trinta e cinco anos, cujas virtudes são atemporais. Tipicamente judeu, e amante dos animais, Mayer Guinzburg (como prefere ser chamado) é também o típico personagem impossível de não se interessar, seja por seus feitos, quanto por seus defeitos adoráveis. Seja ainda por sua moral incorruptível, seus pensamentos, ou até mesmo por sua extrema confiança em si mesmo, e que pode vir a inspirar, em muitos aspectos, os muitos leitores deste ótimo e divertido O Exército de Um Homem Só.
Ciente da ameaça nazista, em plena começo da década de 40, e cada vez mais alarmado pela ameaça que gradualmente arrebata a Europa, no auge das notícias preocupantes que assolavam o globo (ainda não globalizado) sobre a Segunda Guerra Mundial, Mayer um belo dia resolveu botar em prática o impensável, tamanho foi seu desespero: iniciar uma nova sociedade, no topo de um morro em Porto Alegre onde chega até a hastear uma bandeira junto dos animais que o observam, incrédulos com a loucura humanista de um homem. O fundador da Nova Birobidjan, como ele mesmo apelidou o local onde, neste novo empreendimento em que descobre não estar sozinho, a ameaça externa nazista não teria vez de jeito nenhum. Munido de uma narrativa ágil, compondo em capítulos curtos e ágeis uma dramaticidade satírica deliciosa de se acompanhar, eis o cavaleiro errante que não se aventurou pelo mundo, mas nos seus próprios desejos utópicos.
Inconcebível como o sol da meia-noite, na sua odisseia o capitão enfrenta todo tipo de desafio rumo a uma vitória ilusória, na qual seus inimigos não são Hitler e seu exército “tão distante”, mas quatro homens que são atraídos pela sandice do pobre coitado que (sobre)vive numa barraca, junto de três fiéis Sanchos Panças (um porco, uma cabra, e uma galinha que ele não gostava, por achá-la reacionária) para quem discursava seus planos e triunfos, todos oriundos dos seus desejos mais profundos. Um belo dia, seus sonhos são interrompidos por forças além de seus ideais fabulosos, e a realidade o assola, impiedosa como sempre, mas incapaz de tornar essa rápida experiência de fundar sua própria sociedade, a quimérica Nova Birobidjan, desimportante em sua vida, quando volta a ser ‘apenas’ um homem de família. O que fazer, agora, seria sua verdadeira empreitada, e com contornos bem mais épicos do que ele poderia supor.
“Uma vez desorientado quanto as circunstâncias de se obter e levar uma vida plena, um homem alimentado apenas por seus sonhos pode tornar-se um perigo para o que depende dele, para as pessoas ao seu redor, e para si mesmo.” Em momento algum o autor julga seu personagem, dedicando meia história para sua pequena grande jornada, e a outra metade para seu retorno ao cotidiano em sociedade – a verdadeira sociedade na qual sempre pertenceu. Em meras 150 páginas, ficamos cientes da construção e desconstrução das virtudes de um sonhador nato, quixotesco até o talo, e até que ponto elas não são mais conciliatórias e benéficas ao bem-estar de uma pessoa, enquanto animal social como todos nós somos, naturalmente. O Exército de Um Homem Só é uma das peças de ficção mais importantes da literatura brasileira dos anos 70, sendo esta talvez a obra pela qual Scliar, falecido em 2011, sempre será lembrado e consagrado – no mundo e, se possível, até mesmo no seu pais natal.
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