Resenha | Paperboy – Pete Dexter
Deus escreve certo por linhas tortas. O pobre homem, seguindo o mesmo esquema tortuoso, já não é assim tão assertivo. Isso porque, para nós, tudo que começa por nossas mãos de forma errada, e assim continua, provavelmente irá terminar de forma pior ainda, e não interessa o quão boas sejam as intenções que guiam o erro. Ao reproduzir de forma deliciosamente alegórica essa falta de juízo que existe em nos envolver com situações imprevisíveis, através aqui de uma narrativa irrefreável de causas, e consequências, o livro Paperboy virou um best–seller americano acerca da nossa total e completa responsabilidade em guiar as nossas próprias vidas, estruturando nosso destino de acordo igualitário entre a razão, e a emoção. Um fardo grande demais para a maioria das pessoas que se apoiam em suas próprias relações catastróficas para tornar essa tarefa um pouco mais leve – ocupadas em morrer, como diria Bob Dylan. E assim, seguimos, comprando problemas maiores que a nossa capacidade de resolvê-los, sequer decifrá-los, enquanto Deus observa tudo e ri da nossa cara.
Eis um conto notoriamente americano e com mensagens de proporções universais, ainda que contextuais ao interior abafado, pantanoso e parado no tempo do sul dos Estados Unidos, onde a força da ignorância do povo e dos mistérios regionais resistem contra os avanços de boa parte do resto do país, e o próprio desenvolvimento industrial, cultural e educacional que não chega naquelas bandas. Através da história frenética de dois jornalistas de um periódico de Miami, Ward James e Yardley Acheman, atraídos para a Flórida a fim de investigar se Hillary Van Metter, um zé ninguém no meio do nada e que foi acusado sem provas de ter assassinado um xerife racista do estado sulista, realmente é culpado pelo crime a ele atribuído, presenciamos em rápidas trezentas páginas o enorme custo aqui romantizado que se paga por viver uma vida desequilibrada, em todos os sentidos, sem um pingo de integridade ou mesmo a justiça que tanto se procura, e controlada pelas nossas paixões e obsessões tão cegas e infundadas que, vez ou outra, fazemos questão de criar para nos auto sabotar.
Tal como a obsessão avassaladora do irmão de Ward, o jovem e observador Jack James, pela noiva de Van Metter, a tempestuosa Charlote Bless, o que faz com que Jack se intrometa, e sem ninguém esperar por isso, num caso aparentemente sem esperança de revogação na sentença judicial – e que os dois homens da mídia tanto reviram seus fatos para provar a injustiça contra o condenado, e assim, alcançarem o prestígio de um prêmio Pulitzer quando voltarem a Miami – se voltarem, é claro. Fora dessa ganância, mas a par de mil segredos por trás do crime, tal uma presença onipresente nas tentativas de se obter a verdade alegada por Charlotte que Van Metter é, de fato, inocente, Jack, como um adolescente imortal e sem nada a perder, passa a entrar ainda mais fundo que a dupla de jornalistas profissionais em uma rede de intrigas locais, graças a sua paixão incontrolável por Charlotte. Enquanto um dos irmãos quer ascensão social, o outro quer o que a calcinha rosa e encardida dela tanto esconde. Um acaba ajudando o outro, e, juntos, descobrem o preço da verdade – uns pagam na pele, e outros são cobrados no coração, e dizem que o último dói muito mais.
É que Charlotte sabe bem do que os homens de todas as raças e idades são feitos: instinto, e nada mais. Assim, usa e abusa de sua sensualidade e astúcia para conquistar o apoio de Ward e Yardley e ter de volta aquele que a faz feliz – e a prende num terrível destino que ela, desde o começo, sabe ser impossível de escapar. O autor Pete Dexter faz dessa publicação da editora Novo Conceito, no Brasil, um típico romance de encruzilhadas, repleto de reviravoltas e sem capítulos, promovendo aqui numa prosa bem ritmada e em primeira pessoa (de acordo com os relatos de Jack) a sensação de perambularmos, junto dessas personagens caóticas e confusas por natureza, em um trem desgovernando entrando num crescente e sufocante breu. O que parece ser mais um romance criminal a partir da primeira entrevista na prisão com Van Metter, o mais banal dos caipiras americanos e longe de qualquer estereótipo de sociopatia, desdobra-se num estudo conturbado e ultra realista sobre o papel do jornalismo na sociedade dos anos 60 e 70 em que a história acontece, com ecos ainda percebidos hoje em dia, e acerca do limite das relações humanas quando são pautadas no caos, no obscurantismo, e na violência.
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