Crítica | Uma Nova Amiga
O diretor François Ozon usa a sua experiência em contar dramas graves para, já na primeira cena de seu novo filme, Uma Nova Amiga, referenciar duas instituições tradicionais: o matrimônio e o sepultamento religioso. Usando os mesmos avatares de beleza adolescente e da depressão vistas em seu último filme Jovem e Bela (ainda que o espírito e caráter deste sejam absolutamente diversos), o roteiro adaptado do romance de Ruth Rendell utiliza a trajetória rumo à vida adulta como palco para a miscelânea de sentimentos contraditórios inerentes à existência feminina, brincando com os sonhos quanto ao enlace matrimonial e, claro, com os laços eternos que uma amizade pode ter.
O resumo de toda a trajetória de Claire (Anaïs Demoustier) e Laura (Isild Le Besco) é feito de modo curto, direto e carregado de sentimentos, desde o começo do companheirismo nos tempos de escola até o nascimento do bebê de Laura. O falecimento precoce da recém mãe faz Claire mergulhar em uma profunda depressão, se apegando a qualquer ilusão visual que se assemelhasse meramente à lembrança de sua antiga amiga, que deixou filho e marido David (Romain Duris) órfãos de amor e atenção.
Em uma visita ao viúvo, Claire tem uma surpresa que, à primeira vista é assustadora, já que o pai da pequena Lucy estava trajado de modo incomum, com as vestes da falecida mãe. Aos poucos, a historieta se desenrola, mostrando de modo bem didático o assumir de um novo ego, e as dificuldades recorrentes dessa “nova” postura, que revelam a preocupação com o bebê, que sente falta da figura materna, bem como abre a discussão sobre a identidade de gênero de alguém que nega a verdade a si mesmo, preocupado entre outros fatores com a opinião dos que o cercam, cujo avatar é a postura de Claire, que evolui aos poucos rumo à aceitação do novo paradigma.
O choque do conservadorismo está presente nos olhares julgadores que a protagonista antiga lança sobre a “nova”, servindo de diálogo profundo com a plateia, não excluindo os que prioritariamente são contra alguns segmentos de orientação sexual diferente da imbecil pecha de “heteronormatividade”, mas que em outro momento podem aprender a dialogar fora do senso comum misógino e homofóbico.
O desejo de revelar-se envolve a persona masculina que quer ser outra, e com o tempo ela toma coragem para enfim se lançar ao mundo externo. Cada passo de cima do salto alto é mais aventuresco que o anterior, revelando o tesão pela descoberta em cada detalhe. O envolvimento de David e Claire tem seus laços estreitados, maravilhosamente filmado por Ozon, que faz questão de mostrar a distinção de ambos nos enquadramentos, seja em cenas reais, com viagens de carro, onde ambos estão separados pelos assentos, bem como em sonhos filmados, onde dividem a mesma cama, compartilhando também alguns escondidos desejos.
A brincadeira emocional que ocorre com as identidades de David e Virginia mexe evidentemente com a pulsão e ideário sexual de Claire, que passa a ter delírios em relação a possíveis enlaces amorosos, seja consigo ou com os que a cercam. Os suspiros de Demoustier definem bem a dúvida que ela sente em dar ou não vazão ao carnal, às vontades ocultas.
Após recusas e insensibilidades, trocadas mutuamente de certa forma, as almas desoladas finalmente têm um encerramento emocional e sentimental, condizente com a típica feminilidade de ambas, cedendo finalmente à real identidade de ambas mulheres, tornando vivos os aspectos que antes estavam ligados à mortandade, revivendo novos romances, novos destinos. Sem preocupação de amarrar o desfecho de modo conservador ou palatável para as plateias anacrônicas. A direção e texto de François Ozon mais uma vez destacam a atualidade, apresentando um drama complexo, denso e repleto de sentimentos inexoráveis à existência humana, inevitáveis como os naturais desejos carnais, sexuais e, claro, os de serem aceitos.