Tag: Política

  • Crítica | Arquitetura da Destruição

    Crítica | Arquitetura da Destruição

    De todos os temas da história, o Nazismo provavelmente é o mais conhecido e comentado pelas pessoas em geral, tanto por causa da dimensão do grotesco causado pelos nazistas quanto pela propaganda americana realizada por meio de seus filmes, que reforçam ser este o momento em que os EUA salvaram a humanidade deste mal. Portanto, fazer uma análise sóbria do que foi o fenômeno da ascensão e consolidação do poder nazista na Alemanha não é tarefa fácil.

    Felizmente, o documentarista sueco Peter Cohen consegue desvendar em grande parte o que está por trás de toda a psicologia do Nazismo em seu filme de 1992, Arquitetura da Destruição. A obra deixa de lado grande parte das análises superficiais e sensacionalistas feitas até então sobre Hitler e parte para tentar compreender os fatos enquanto fenômeno da própria humanidade, que é o que todos temos medo, de nos enxergar como iguais aos autores de tais atos.

    Narrado por Bruno Ganz (que ironicamente iria interpretar Hitler em A Queda, de 2004), o documentário tem três eixos principais. O primeiro, em que Hitler e grande parte da cúpula nazista eram artistas e por isso davam tanto valor à estética do III Reich, baseada principalmente na arte clássica greco-romana, quanto à perseguição à chamada “arte degenerada”; o segundo mostra que os nazistas viam na ciência e na Medicina uma forma de aumentar a expectativa de vida da “raça superior”, ao mesmo tempo em que os médicos alemães também estavam por trás da “solução final”; e finalmente o terceiro, em que aventa a tentativa quase desesperada de patologizar o “judeu” na sociedade alemã, investindo pesado em propaganda associando-os a insetos e ratos e outras pragas que contaminavam o “corpo alemão”.

    A visão artística do III Reich era influenciada principalmente pelo romantismo alemão, movimento que vinha de uma forte herança nacionalista prussiana e antissemita e personificado na figura do compositor Richard Wagner, um dos ícones de Hitler. Também havia uma forte sensação de que o III Reich era o responsável por manter a linhagem da cultura greco-romana na era moderna, com foco especial em Esparta, sociedade considerada “ideal” por Hitler. As ruínas da Grécia exerciam forte fascínio sobre o Führer, tanto que ele e seu arquiteto, Albert Speer, projetaram vários prédios para a reconstrução de várias cidades alemãs, as quais imitavam a arquitetura grega para, no futuro, os povos olharem as ruínas dos nazistas com a mesma admiração com que, hoje, vemos as ruínas gregas. Por isso ele também proíbe expressamente o bombardeio de Atenas durante a invasão nazista a Grécia.

    Portanto, é fácil entender a importância que a arte tinha para os nazistas. Tanto que os artistas considerados “degenerados” foram perseguidos ferozmente e tiveram suas obras confiscadas e muitas vezes, destruídas. Para Hitler, a arte degenerada era a arte moderna, judaica e bolchevique, ou seja, sem traços definidos, o que para eles representava sinais de doença mental de seus autores, enquanto a arte considerada correta era aquela romântica, de paisagens campestres e bucólicas, sem nenhum tipo de conflito.

    O componente médico/científico do nazismo é também muito forte. Somos apresentados a dados impressionantes (como o de que quase metade dos médicos alemães aderiram à ideologia) e que reforçam ainda mais a tese de que o Nacional-Socialismo era muito mais um fenômeno de elite do que popular. Enquanto havia campanhas públicas para o alemão fazer exames e evitar a tuberculose e o câncer (tudo centrado na figura do “médico salvador de vidas”), os mesmos médicos estavam por trás dos primeiros passos do programa de extermínio dos “indesejáveis”, mostrando claramente que o uso dos campos de concentração era o passo final de um projeto que começa bem antes, sempre com o auxílio de vídeos feitos pelo governo. Um muito interessante mostra várias imagens de deficientes mentais vinculando-os a informações alarmantes (e falsas) de que, caso nada fosse feito, essa população iria ultrapassar a população alemã “saudável”, mostrando um indicativo de qual caminho os nazistas pensavam em seguir.

    Tendo em mãos relatórios, cartas e documentos da época, Cohen remonta em detalhes todo o plano de execução destes “indesejáveis” e a preocupação dos nazistas em esconder este fato, o que mostra que, mesmo no poder, suas ações não eram 100% aceitas ou inquestionáveis. Os primeiros modelos de execução, muito precários, eram em caçambas de veículos com o escapamento acoplado, o que causava a asfixia das vítimas por monóxido de carbono, enquanto os fornos incineravam os corpos em regiões próximas à cidade. Relatos de funcionários das tabernas, o cheiro forte e pedaços de cabelo nas ruas geravam um clima tenso. Foi quando os nazistas decidiram que migrar para longe das cidades seria melhor.

    Cohen também defende a tese de que a ação final contra os judeus acontece na parte final da Segunda Guerra Mundial, por conta da demora do conflito. Então Hitler decide acelerar os planos e passa a agir utilizando meios de comunicação em massa, especialmente o Cinema, para convencer a população alemã de que o judeu era uma praga que parasitava o estado e o povo alemão, portanto deveria ser exterminado. São categóricas as imagens de alemães dedetizando casas cheias de ratos e cupins com o mesmo gás que seria utilizado nas câmaras dos campos de concentração, o Zyklon B.

    Em resumo, Arquitetura da Destruição se mostra um filme indispensável a qualquer um que tenha a mínima pretensão de entender a fundo o que foi o Nazismo. Muito bem construído e documentado, é daquelas obras que se eternizam no tempo por sua qualidade e profundidade, pois, em um tema tão complexo, é fácil deslizarmos para o senso comum. Segundo o próprio filme, não é chamando Hitler de artista frustrado (ou monstro) que iremos entender tal fenômeno. Tampouco achando que foi uma obra feita por meia dúzia de alucinados ou, tão errado quanto, pela totalidade dos alemães do período. O Nazismo cresceu e virou o que virou porque foi fruto de pessoas de sua época, de contradições de sua época, da anuência do Ocidente com uma ideologia militarista e extremista; mas, acima de tudo, foi um fenômeno totalmente humano. E isso é o que mais nos assusta.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Sem Pena

    Crítica | Sem Pena

    Variando entre a triste e duríssima realidade do sistema judiciário brasileiro e o trabalho com uma linguagem pouco comum ao documentário brasileiro, Sem Pena representa um modo pouco usual de contar uma história em documentário, já que não é refém de fórmulas manjadas ou de uma abordagem mainstream de um assunto já deveras discutido.

    Realização de Eugênio Puppo, o longa-metragem começa com a fala de um sujeito que foi injustamente acusado por estupro e, por isso, encarcerado, unicamente por se vestir igual ao agressor de uma moça, embora fosse levado em conta o seu testemunho. Casos como esses são muito mais numerosos do que se imagina e do que as autoridades gostariam de admitir.

    Um dos diferenciais do filme é mostrado logo de cara, já que os primeiros depoentes dão entrevista, mas não revelam suas faces, buscando priorizar o discurso numa bem sucedida tentativa de universalizar as palavras ditas pelas personagens que se apresentam.

    Com o decorrer do filme, outros maneirismos são exibidos, como a filmagem a partir da perspectiva da carabina de um dos guardas de segurança, que fica nas torres vigiando os arredores de um presídio de São Paulo. Mais flagrante ainda são as cenas dentro das repartições públicas, com pilhas e pilhas de cadernos, onde estão nomes e casos de pessoas que foram julgadas, sem qualquer perspectiva de liberdade ou de reabilitação, mesmo aquelas que já cumpriram suas penas.

    Das falas mais assustadoras, há uma de um ex-policial militar que assume que há uma quantidade mínima de prisões que ele deve efetuar por período de tempo. Ele afirma que só conseguiu refletir e perceber o quanto isso é péssimo para ele e para a sociedade, quando esteve preso também, após uma difusa investigação de homicídio fora do seu tempo enquanto fardado. A denúncia surge não só para demonstrar a miopia do sistema, que prefere punir a corrigir o erro comunitário, mas também evidencia como pensam os agentes da lei, os braços armados que deveriam servir e proteger o povo, mas que aceitam extorquir e denunciar qualquer um, desde que seja conveniente ao Estado.

    A questão de que todo indivíduo é inocente até que se prove o contrário é sumariamente ignorado segundo as investigações de Puppo e de sua produção, ligada ao IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa – que tenciona discutir e consertar essas mazelas e erros de cálculo relativos ao julgamento de réus e do tratamento do preso enquanto parte do coletivo carcerário.

    Ao final, a tônica de não ter rostos é quebrada, mostrando a sessão de julgamento de uma senhora, acusada por tráfico de drogas. A cena é tão prodigiosa em sua feitoria, edição e captação de imagens, que a desassociação desses momentos com a ficção tornam-se quase impossíveis, uma vez que toda a verossimilhança é preservada, tendo uma enorme teatralidade impressa em seus esforços. Sem Pena é um produto que carrega em si um cunho de civilidade atroz e que têm o trânsito perfeito entre a informação pura e simples para o público incauto, além da sutileza ligada à arte de contar uma história.

  • Crítica | Ação Entre Amigos

    Crítica | Ação Entre Amigos

    O método de edição escolhido por Mingo Gattozzi demonstra como Ação Entre Amigos é diferente dos seus pares, já que seus créditos iniciais são exibidos como se fossem parte do relatório de uma das autoridades militares que estavam no poder em 1971. O filme é construído como um episódio antigo, mas é abordado de uma forma vanguardista, ao contrário do resto da iconografia típica do cinema brasileiro dos anos 90.

    O presente mostrado em tela apresenta um grupo de amigos de meia-idade, já em uma fase decadente de suas vidas, relembrando momentos dos seus melhores dias, quando as ideologias eram muito mais presentes em suas ações, do que em suas idéias. A reunião é convocada por Miguel (Zé Carlos Machado), que teria descoberto um antigo torturador do seu grupo revolucionário, 25 anos após o aprisionamento dele e dos seus.

    Miguel tem seu grito abafado por seus amigos, que ou não acreditam no fato do sujeito ainda estar vivo, uma vez que os jornais noticiaram a sua morte, ou não querem remexer em todo o passado, arriscando-se mais uma vez, já que a o peso da idade e da maturidade os obriga a pensar de modo menos instintivo e mais racional. A revolta toma Miguel, que não consegue esquecer o que sofreu, nem se conformar com isso, possivelmente até cedendo à paranoia típica dos anos de chumbo.

    O extremismo dos ativistas é discutido no núcleo dos anos setenta. Lúcia (Melina Anthís) tenta convencer seu parceiro sexual de parar com a luta armada e resolve fugir com Miguel, ainda jovem (encenado por Rodrigo Brassalto), já que ela espera um bebê dele. O aborto para ela é um preço demasiadamente alto a pagar, mesmo com a luta e com a revolução que eles tencionavam instaurar a qualquer custo. Com alguns pontos semelhantes ao raciocínio sofista, os guerrilheiros normalmente não se envolviam com seus colegas exatamente para não cair na tentação de abrir mão da revolução.

    Em 1996, Miguel segue com as suas suspeitas e, em uma reunião com seus três amigos, mostra os dados que reuniu, sendo mais uma vez  demovido de suas ideias. Em uma pescaria, ele resolve parar um instante para verificar o túmulo do sujeito e de sua esposa. Os membros do grupo, já adultos, têm a calvície em comum, exceto – obviamente – Miguel, talvez em uma referência visual à rebeldia e juventude ainda presentes na vida do personagem, enquanto os outros se permitiram envelhecer, tentando apagar de suas identidades as marcas da dor e do cárcere a que foram submetidos.

    Como era de se esperar, o líder do grupo estava certo, descobrindo o paradeiro do ex-militar, que é pego em uma rinha de galo, um dos seus muitos pecados antigos. Os quatro encontram a propriedade do sujeito, um lugar enorme, fruto do sangue de muitos dos ativistas, onde vive com uma identidade nova. O revanchismo dentro do grupo era muito mais pessoal que político, movido pela emoção e com a mesma animosidade que os impedia de traçar um plano à prova de falhas.

    O quarteto se divide, e somente três vão atrás do objetivo. O acerto de contas com o aposentado senhor ocorre sob protestos do idoso soldado, que declarava que aqueles eram tempos de guerra. Essa era mesma fala dita nos anos setenta, quando suas atitudes eram extremas, o que, claramente, não justifica o que ele fez a Miguel e aos outros.

    O sentimento de vingança do protagonista o faz ficar cego e ir atrás do suposto delator. A sede de justiça passa dos limites, fazendo-o atentar contra o covarde que os deixou. O roteiro de Marçal Aquino, Brant e Renato Ciasca acaba trágico, validando até alguns dos pontos do acordo de anistia, que obviamente precisava ser revista, mas que tem pontos cruciais para as resoluções dos problemas do grupo. Beto Brant não tem qualquer receio em demonstrar suas influências estilísticas estrangeiras de Quentin Tarantino, Martin Scorsese e Michael Mann. Em seu drama, é aventando o ódio desmedido, tão perigoso quanto a omissão e a falta de coragem de abrir os inconvenientes segredos pecaminosos entre os ditos amigos. Um thriller repleto de ansiedade, cujo fôlego impressiona por não se perder em nenhum momento.

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  • Crítica | Guerras Sujas

    Crítica | Guerras Sujas

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    Não é novidade que os EUA são a maior máquina militar que a humanidade já produziu, além de ser um império que põe e tira governantes em países ao redor do globo a seu bel-prazer. Portanto, mexer no tema do militarismo americano sem cair no lugar comum se mostra atualmente uma tarefa relativamente complicada, mas que o documentário Guerras Sujas, baseado no livro homônimo de Jeremy Scahill, indicado ao Oscar em 2014, consegue fazer bem.

    Jeremy Scahill é um repórter investigativo da revista Nation, especializado em cobrir conflitos ao redor do planeta, passando por lugares como a Nigéria e o Kosovo. Seu livro anterior, sobre os mercenários da Blackwater, empresa militar que prestou serviços ao exército americano durante a guerra do Iraque, denunciou vários crimes cometidos por seus soldados dentro do país. Um verdadeiro escândalo seguiu a publicação do livro, com entrevistas de jornais e audiências no senado americano, onde o repórter tentou fazer com que os autores de tais crimes fossem condenados, mas não conseguiu, ao enfrentar o pesado establishment militar americano, com aliados poderosos na mídia. O máximo que conseguiu fazer foi a Blackwater trocar de nome, chamando agora Academi.

    Tamanha desilusão com o fruto de seu trabalho quase fez Scahill desistir de cobrir conflitos e voltar à sua pacata vida em Nova Iorque, mas logo ele estava de volta, cobrindo a guerra no Afeganistão. Lá se depara com o tema de sua nova produção, o novo modelo de guerra travada pelos EUA. O filme é dividido em quatro partes, contando diferentes formas de ação dos EUA pelo mundo: no Afeganistão, Iêmen, Somália, e um ataque de drones que resultou na morte de dois americanos.

    Ao entrevistar uma família que mora em Gardez, uma região do Afeganistão dominada pelo Taleban, Scahill se depara com evidências de que vários membros familiares, inclusive mulheres grávidas, foram executados por americanos em uma noite. Através de depoimentos e outras fontes alternativas, ele toma ciência de uma equipe tática chamada J-SOC (Joint Special Operations Command), que teria feito o ataque a essa família afegã. Ao se deparar com esse caso, Scahill tenta torná-lo público e denunciá-lo, mas novamente é barrado em todas as tentativas. Somente a exposição de um vídeo de celular, em que vozes americanas são ouvidas e é possível ver pessoas mexendo nos corpos da família executada, é que garante ao caso certa notoriedade.

    Após sair do Afeganistão, Scahill vai ao Iêmen investigar também um caso estranho de um suposto ataque americano a uma vila. Estranho, porque o Iêmen não se encontra em guerra com os EUA, ou tampouco consta em qualquer lista de países hostis. No entanto, ao chegar lá, ele se depara com evidências da destruição de uma vila inteira feita por um míssil Cruiser. Novamente, mulheres e crianças entre os feridos e os restos do míssil nem sequer haviam sido removidos.

    Na Somália, Scahill tem contato com verdadeiros “Senhores da Guerra” que, financiados e treinados pelos EUA, promovem o terror oficial na região em lutas intermináveis, responsáveis pela completa destruição do país. Trocando constantemente de lado, de acordo com o interesse da época, os EUA equilibram a balança ao, em cada hora, apoiar um comandante diferente, mantendo a instabilidade e o conflito eternos na região.

    A última parte do filme fala sobre Anwar Awlaki, um cidadão americano e muçulmano que foi mudando de posição com o passar dos tempos. De um moderado, condenando de forma enfática o terrorismo após o 11/9, a um incentivador do terrorismo nos dias atuais. Scahill investiga a fundo o que causou essa mudança em Anwar Awlaki e observa que a causa disso está na mesma razão pela qual o terrorismo não pode e nem será vencido com uma guerra. A cada ataque militar ou de drones com baixas civis, o ódio aos EUA aumenta e as fileiras das organizações terroristas crescem de voluntários. Após a morte de Bin Laden, Anwar Awlaki é alçado ao posto de novo inimigo público número 1, até ser morto por um ataque de drones em 2011. O que causa ainda mais espanto é a revelação de que o filho de 16 anos de Anwar Awlaki, também americano, Abdulrahman Anwar al-Awlaki é morto de maneira semelhante, para evitar uma possível retaliação do filho pela morte do pai, revelando a lógica doentia do militarismo americano. Aqui talvez resida a maior falha do filme, ao tentar tornar a morte de crianças algo ainda mais sensível do que já é, através de recursos, como câmera lenta e imagens de rostos em preto e branco.

    Por fim, ainda temos a revelação de que o uso de tais mecanismos, como de mercenários e drones, não só foi mantida, como incentivada pela administração Obama, mostrando que não há muita diferença entre republicanos e democratas no manejo da chamada Guerra ao Terror. Scahill inclusive faz uma contundente crítica a esse modelo privatista, desumano e especialmente contraproducente de guerra, pois esta se auto alimenta, sendo, portanto, sem fim. Gerando mais morte e destruição, fora e dentro dos EUA. Também há uma interessante crítica ao fato de os americanos terem comemorado a morte de Osama Bin Laden, como se ela representasse algo na política externa dos EUA, quando na verdade não alterou em nada o jogo. Também há uma crítica ao fato das J-SOC terem alcançado o status de popstars após terem executado o líder da Al Qaeda.

    Apesar de o filme não trazer muitas informações novas para quem acompanha o noticiário internacional, ele nos ajuda a amarrar algumas pontas soltas e relacionar conceitos que esclarecem a verdadeira intenção e ação dos EUA atualmente. Dessa forma, a crítica desta produção se direciona a esse novo modelo de guerra utilizado pelos EUA. Uma guerra total, onde o planeta Terra é um campo de batalha e todos os seus moradores são possíveis inimigos, e a menor suspeita, por mais fraca que seja, é o suficiente para alguém ser morto sem justificativa ou prestação de contas. É uma visão assustadora para o futuro, que ganha cada vez mais adeptos, onde qualquer pessoa é um potencial inimigo e isto lhes dá direito suficiente para tirar uma vida. Onde a tecnologia é usada não para a libertação humana, mas sim para promover o terror oficial, que por sua vez promove o terror de grupos fundamentalistas. Se retroalimentando ao custo das liberdades, e pior, vidas humanas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

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  • Crítica | O Dia que Durou 21 Anos

    Crítica | O Dia que Durou 21 Anos

    O Dia que Durou 21 Anos

    Atualmente o tema da ditadura civil-militar brasileira está sendo explorado por meios como cinema, especialmente em documentários, para se contar sobre este período sombrio da nossa história, em especial por causa das investigações da Comissão da Verdade, remexendo ainda em feridas que doem em muita gente, e também em interesses de quem que preferiria deixar esse passado para sempre quieto e intocado.

    Em meio a tudo isso, o cineasta Camilo Tavares decidiu contar a história de seu pai, o jornalista Flávio Tavares, que foi preso pelo regime e, posteriormente, trocado pelo embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. Porém, ao se deparar com uma vasta documentação liberada por arquivos nos EUA, Tavares muda o foco de seu filme para a participação dos EUA no preparo e efetivação do golpe de 1964.

    Começando com a renúncia de Jânio Quadros em 1961, o filme mostra como os EUA já participavam da política brasileira, porém, sem ainda a devida organização necessária para efetivar um golpe e impedir a posse do então vice João Goulart, também defendida por Leonel Brizola e sua rede da legalidade. Jango aceita a imposição do parlamentarismo, mas logo o país retorna ao presidencialismo e, com um discurso considerado radical de esquerda no auge da guerra fria, Jango assusta os setores mais conservadores do país e dos EUA, com medo de que uma nova China (por causa das dimensões continentais do Brasil) acontecesse.

    Um dos aspectos mais interessantes do filme é tirar do bom moço John Kennedy a imagem de democrata-quase-santo, pois é ele quem inicia os planos de remoção de Jango do poder, considerando inclinação do presidente em não se subordinar aos interesses americanos. Vários arquivos em áudio registram esse fato, com falas fortes de Kennedy “pedindo a cabeça” de Jango e dando o aval ao embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, para continuar com os planos conspiratórios, o que o vice-presidente Lyndon Johnson  mantém após o assassinato de Kennedy.

    Através da CIA e de organizações de fachada, como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), os EUA jorraram dinheiro dentro da política nacional, patrocinando políticos e veículos de imprensa contrários a Jango em uma enorme campanha de difamação, associando-o ao comunismo internacional, para criar um clima de medo na população. Tal tática também seria usada com sucesso para desestabilizar o governo de Salvador Allende, no Chile. Também fartamente documentada e mostrada no filme está a operação “Brother Sam”, na qual os EUA enviaram ajuda militar com navio de guerra, arma e munição para ajudar os golpistas no caso de uma resistência armada.

    Dessa forma, se mostra impossível negar a participação dos EUA no golpe brasileiro, o que já era consenso dentre os historiadores. Mas o que não havia sido divulgado até então era a extensão da influência americana na política brasileira, a ponto de o primeiro presidente militar, Castelo Branco, ter sido praticamente escolhido pelos norte-americanos por sua postura fiel aos “valores democráticos dos EUA”.

    Como retrato histórico o documentário é extremamente importante para desvendar e aprofundar esse período da história do Brasil. Porém, o lado negativo são algumas escolhas estéticas de Camilo Tavares, em especial no uso de trilhas sonoras desconexas com os momentos exibidos na tela. As montagens de Kennedy assistindo discursos de Jango também são de um didatismo exagerado, pois já sabemos daquelas informações. Com pouco tempo de duração (apenas 77 minutos), faltou também ao documentário encerrar melhor o filme, que acaba de forma abrupta, sem desenvolver muito bem a parte final, após a posse de Castelo Branco, a ascensão de Costa e Silva e o AI-5.

    Porém, mesmo esses problemas não tornam o filme menos importante. Suas informações são essenciais mesmo para os especialistas da área, devido às novidades trazidas por ele, graças ao acesso às fontes primárias, o que garante um frescor na análise histórica. Para os leigos, fica o impacto de até onde os EUA foram para manter seus interesses no Brasil, removendo do poder presidentes democraticamente eleitos em nome da democracia, mostrando sinais claros de que a tal democracia norte-americana já então sinalizava que o único modelo aceito era aquele que eles permitissem.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Brizola: Tempos de Luta

    Crítica | Brizola: Tempos de Luta

    brizola

    Tabajara Ruas é o responsável por contar o relato biográfico do político e ativista gaúcho Leonel Brizola. Desde a infância muito humilde, passando pela obsessão de sua mãe pela educação e instrução do filho, e também grafando o passado de lutas do povo gaúcho, Leonel também levantou-se como ativista. Sempre esteve muito presente em eventos de contestação, mas sem se descuidar do trabalho, visto que precisava dele para garantir o seu sustento. A narrativa é linear e muito parecida com a estética do cinema clássico americano, reunindo muitos depoimento do próprio Brizola e de muitos de seus colegas, como Antônio de Pádua, Flávio Tavares, Vieira de Cunha, etc.

    A reunião com estudantes interessados em política, já no Rio de Janeiro, mostrava o biografado como um dos mais atuantes nos grupos de discussão, além da fundação do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Ele foi eleito deputado estadual com quase quatro mil votos. Nesses grupos ativistas conheceu Neusa Duarte, a Dona Neusa, sua companheira para toda a vida e amada esposa e namorada, que segundo o próprio, apesar da aparente fraqueza, sempre foi muito forte.

    O viés político que influenciou Brizola era ligado a Vargas, com quem teve estreitas relações e dividia ideologias: o trabalhismo. Após a morte de Getúlio Vargas, haveria dois ilustres herdeiros, o próprio Leonel, que seria consagrado prefeito de Porto Alegre e conhecido por fortes investimentos em educação, e claro, João Goulart, vice-presidente dos tempos de Juscelino Kubitschek. Entre os feitos mais notáveis de Brizola era a apropriação e nacionalização da empresa de telefonia do Rio Grande do Sul, ação dita como de vanguarda contra o monopólio americano no Brasil pela ainda não presidente Dilma Rousseff.

    O debate político aumentou devido a Guerra Fria, a ocupação cubana de Fidel Castro e a corrida espacial. Mesmo que Brizola dissesse que entendia que a propriedade privada era importante para a nação, seu discurso era acusado de ser associado aos ideais de Karl Marx, muito graças ao seu alinhamento com o argentino Ernesto Che Guevara. A proximidade de Che com Jango traria consequências graves em um futuro próximo.

    A renúncia de Jânio Quadros surpreendeu o político gaúcho, por Jânio ser um presidente proativo e rápido. A possibilidade de João Goulart assumir causou o furdunço que se concretizou no maior exemplo de paranoia militar. O estado de perplexidade tomou o país e Leonel declarou que ficaria no país para lutar. Uma república parlamentarista seria articulada sem a presunção de ter Goulart dentro do país. Brizola queria o retorno de Jango ao poder, mas era uma voz solitária na resistência. A subida dos militares para o poder marcou o político gaúcho, que até tentou ficar no país, variando de lugar a lugar por um mês e meio, até que teve de ir em definitivo para o Uruguai. O exílio deixou-o muito triste, mas sua postura ainda era a de resistir, apoiando os ativistas para treinar os militantes no esquema de guerrilhas.

    Aos poucos, o nacionalismo do político seria acompanhado pelo socialismo. O retorno de Brizola ao país calharia com o rompimento com o PTB e fundação do PDT (Partido Democrático Trabalhista), além de sua reinvenção na política, candidatando-se a governador do estado do Rio de Janeiro e vencendo uma tentativa de fraude e manipulação de votos. Construiu os Cieps, que teria o intuito de alocar as crianças oito horas por dia na escola, focando a educação e fazendo essas obras sem o apoio financeiro e político do governo federal. Outro episódio interessante foi a construção do sambódromo e o imbróglio com a Rede Globo, que se recusou a transmitir o carnaval. A manobra do governador foi a de entrar em contato com Arnaldo Bloch, presidente da Manchete, que ultrapassou a Globo em audiência no período. A campanha de Diretas Já foi muito motivada por ele, assim como a primeira eleição direta, em 1989, na qual se candidatava ao cargo máximo do executivo, com discursos inflamados e muito bem construídos. Por muito pouco ele não passou para o segundo turno, mas manifestaria seu apoio a Lula no segundo, obviamente tendo perdido. No ano seguinte, seria reeleito governador do Rio, mostrando sua inabalável força política.

    Os entraves entre o político e a Rede Globo ganharam capítulos de intensa batalha, difamações e toda sorte de troca de farpas, inclusive ganhando um direito de resposta em rede nacional, no horário nobre, com narração de Cid Moreira no Jornal Nacional. O conteúdo do manifesto é deveras corajoso e não poupa seus declarados inimigos.

    Pouco antes do fim de sua vida, ele se lançou em mais uma eleição, como vice-presidente da chapa de Lula, muito mais como figura simbólica do que como candidato de fato. Sua despedida teve muito apelo popular e a presença maciça do povo. Brizola se despediria da vida ovacionado pelo eleitorado e pelo homem comum, e até por alguns de seus antigos rivais políticos. Seu discurso poderia não ser completamente compreendido pelo povo, mas seu trabalho foi reconhecido por seus iguais, pela população. O trabalho de Ruas e Sergio Gonzalez em homenagear o político é muito belo e afetuoso, e apesar de deixar de lado muitos dos defeitos do biografado, ainda é um bom retrato da figura do velho e sempre inconformado caudilho.

  • Crítica | A Opinião Pública

    Crítica | A Opinião Pública

    A Opinião Pública

    Logo nos primeiros minutos de tela, são mostrados letreiros que indicavam quais apoios foram utilizados para a realização da fita. Os agradecimentos vão para órgãos de imprensa, como o Jornal do Brasil (com a adjetivação de grande amigo do Cinema Novo) utilizando muitas cenas de Maioria Absoluta, de Leon Hirszman. A ideia de Arnaldo Jabor era refletir o típico, fugindo do pitoresco, e explicitar quais seriam as esperanças da juventude carioca e qual a perspectiva dos professores sobre como seria o futuro destes jovens — torcendo para que estes fiquem longe do estereótipo da Juventude Transviada.

    Segundo a narração, há um abismo enorme entre a realidade de adultos e dos jovens, como se estes vivessem em mundos distintos. O discurso dos homens novos é descompromissado e não é ligado a qualquer ideologia que não tenha a ver com preocupações banais, como ter dinheiro para o “mocinho poder sair com um broto”. Enquanto a fala dos pais preocupados preconiza a necessidade de achar a mulher certa, trabalhar para se sustentar e, claro, casar e valorizar a tradição, família e propriedade. Mais uma vez as realidades são muito díspares.

    As entrevistas com os indivíduos do sexo feminino têm em seu conteúdo alguns pontos muito curiosos, mostrando algumas meninas muito crentes na possibilidade de encontrar sua alma gêmea e nas vicissitudes dos sentimentos, das paixões e no acaso do casamento. Um ótimo argumento é o de uma das pessoas perguntadas sobre a carnalidade do sentimento da paixão, discutindo o quanto é importante dar vazão ao coração e ao romantismo, e o quanto pensar em um futuro relativo ao sustento e a infraestrutura de uma vida saudável, levantando a rivalidade entre a “malandragem” e o trabalhador que exerce seu ofício arduamente.

    Os baluartes da juventude direita são louvados como exemplos para os seus iguais em idade, fugindo do estereótipo da rebeldia contestadora e ligada às drogas. Os debates eram tratados como algo ruim, fétido e inconveniente, longe dos ideais de uma boa pessoa. O discurso se caracterizava como forma de enaltecer o apogeu econômico e a ascensão de classe, num pensamento tipicamente capitalista com ideário voltado a “subir na vida” e “tornar-se alguém”. O objetivo era mudar de classe e evoluir: a felicidade é uma forma de poder e não um prêmio para as virtudes.

    A ideia do diretor é reproduzir como é o pensamento do brasileiro médio, demonstrando o quão alienada pode ser a opinião pública, característica fomentada pelo alto nível de desinformação e pela influência das autoridades dentro das redações dos jornais. Porém, não ignora que a relação entre sociedade e governo é simbiótica, e que a multidão tem sim sua parcela de culpa no estado em que o país se encontrava. A narração mais uma vez inclui um argumento baseado na burguesia: “O homem da classe média sempre é propriedade de alguém” — enquanto isto é falado, são mostrados jovens se alistando no serviço militar, com a orgulhosa pecha de lutar pela pátria, reforçando a ideia de que quem está fora desse molde de contestação zero está errado e sem possibilidade de obter sequer algo tão lúdico e intangível quanto a felicidade. O objeto de análise passa por um viés até filosófico. As pessoas ligadas à classe média se vitimizam, pedindo compreensão por parte da população por sentirem-se as mais afetadas pelo atual momento do país, sempre temendo pelo seu sustento.

    Para os patrões, o brilhantismo intelectual é reservado às pessoas que ocupavam os altos cargos no empresariado. Os chefes sempre seriam os mais inteligentes e melhores preparados, enquanto aos operários sobrariam o voluntariado e a indispensável capacidade de se propor a quaisquer atividades que demandassem esforço físico e submissão absoluta. O cargo era o auge da vida do trabalhador: o povo teria de ser levado ao “pensamento de cordeiro”; a honradez era parte da uniformização populacional que obviamente escondia algo. Para o espectador com um pouco de discernimento, o conteúdo das falas dos “normativos” é muitíssimo mais subversivo que qualquer possibilidade (irreal e fantasiosa, evidentemente) de desapropriação de domicílio, e mesmo para os indivíduos mais conservadores, ao menos em uma pequena parcela, talvez cause a reflexão sobre o cunho de seu estilo de vida. A modernidade é vista como algo pejorativo e as outras corruptelas dão à película um ar de apologia à misantropia graças às mensagens nas entrelinhas das falas do sujeito comum. Claro, focando nos seus anseios fúteis e despreocupados com o contexto social, dando um significado especial à expressão “massa de manobra”.

    Para o narrador, a classe média é produto do meio, sem origem definida por suas próprias mãos e sem nada a perder, mesmo que pense em ter alguma propriedade. A negação da miséria que assola o país é notória e conveniente. Sua movimentação política só é realizada quando há alguma mudança que possa interferir nos seus interesses. A iniciativa jamais parte dela; seu papel é a de vanguarda inocente da sociedade moderna, defensora de valores que lhe foram passados e inculcados sem muita motivação lógica ou racional, manipulados para movimentar-se até contra si mesma. Até por parte das lideranças deste contingente populacional, não há uniformidade no discurso. Jabor escolhe criticar a conivência do povo com o Regime, usando uma ironia fina, mas bastante explícita, apelando para aqueles que queriam ouvir e estavam ávidos pela discussão, disfarçando essa contestação com uma capa de propaganda do modo moral e correto de vivência. A essência do combalido Cinema Novo estava em seu filme e em sua mensagem.

  • Crítica | Cidadão Boilesen

    Crítica | Cidadão Boilesen

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    O documentário começa usando a característica trilha de A Hora do Brasil, com imagens em preto e branco, que obviamente remetem ao passado, aos anos da época da “revolução” militar. O título do filme brinca com o clássico óbvio de Orson Welles, focando na persona do dinamarquês naturalizado brasileiro Henning Albert Boilesen. O início de sua trajetória é mostrado de forma lúdica, focando seus impressionantes feitos ainda na infância como ótimo aluno, esportista e futuro administrador. Ele veio morar no Brasil aos 22 anos, primeiro em São Paulo, depois no Rio de Janeiro.

    Boilesen era conhecido por apreciar a miscigenação e o estilo de vida do brasileiro. Sua adaptação ao país não foi difícil, pois ele sentia prazer em estar no Brasil e viver como um legítimo nativo. Era um homem do povo, apaixonado pela nação que adotou e gostava de caipirinha, futebol, ouvia Chico Buarque. Sua afeição pela população era muito grande.

    O filme se desenvolve destacando o medo que a população geral tinha de que João Goulart realizasse uma cubanização no Brasil, argumentado que é refutado por muitos dos entrevistados, entre eles o ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso. No entanto, a desinformação causava medo nos donos de grandes empresas, entre eles Boilesen. O maior medo do estrangeiro era de que o socialismo se instaurasse no país e atrapalhasse o seu próprio desenvolvimento, retirando o seu ganha pão. O episódio é pródigo em mostrar a ação civil na instauração do regime e as articulações desenvolvidas para as ações ditatoriais. Henning frequentava sessões de tortura e tinha cadeira cativa, como em um camarote de um espetáculo cênico, e ajudava a articular o grupo Ultra, o qual prestou muitos serviços ao governo autoritário.

    Há um esmero notório no roteiro que retrata a pessoa analisada, primeiro como uma figura simpática, para depois revelar toda sua participação dentro do órgão repressor. Um tempo demasiado é dedicado a explicar como o AI-5 mudou o cenário político, aumentando ainda mais a perseguição aos ditos subversivos, com destaque à criação da Operação Bandeirante (ou OBAN), que teria a função de ser o braço civil do exército brasileiro e operar como um centro de tortura. Para o jornalista Heitor Contreiras, a OBAN foi “a mais radical e mais cruel operação de repressão do regime militar brasileiro”. Seu poder incluía a possibilidade de prender, matar e torturar quem quisesse, e era composta por policiais militares e civis. Uma das lideranças do esquadrão era o Sargento Sergio Arantes Fleury, amigo pessoal de Boilesen. O modus operandi de Fleury incluía a caça de marginais e vagabundos, e ele levou tal modo de agir para a OBAN.

    Era preciso o apoio de pessoas importantes na vida pública brasileira, e alguns dos empresário se tornaram chamarizes para outros investidores, sendo a figura mais notória e que mantinha relações diretas com os mandantes da Operação Bandeirantes Henning Boilesen. O cabeça pensante dentro do DOI-CODI é muitíssimo discutido e controverso. Por parte dos ex-militantes, o discurso predominante era de que ele fez parte de inúmeras sessões de tortura, e seria criador de uma máquina de choque chamada Pianola Boliesen; a questão era de que ele tinha prazer de ver os comunistas sendo punidos, sua figura era demonizada. Já nos registros oficiais, foi negada toda a associação dele com o DOI-CODI, e afirmavam que o seu assassinato teria sido encabeçado por Carlos Lamarca. O assassinato em questão é descrito como algo brutal e realizado com muita satisfação por parte dos militantes que executaram o presidente da Ultra. O termo utilizado pelos grupos MRT e ALN para o assassinato de Boilesen era “justiçamento”, que remete ao óbvio sentimento de findar a sua vida.

    A impressão dos defensores do empresário era a de que ele foi um bode expiatório, segundo Henning Albert Júnior, filho do empresário. Ele sequer tinha ideologia o suficiente para exercer tal influência dentro da ditadura. A sensação que fica a posteriori é de predominância de figura nefasta de ajudante do regime. Em uma época em que os ânimos estavam tão aflorados, não havia como garantir neutralidade. A participação ou não de Henning não foi investigada a fundo, até porque a sua história contada poderia revelar o nome de tantos outros poderosos barões.

    O trabalho de Chaim Litewski escolhe um lado, mas não ignora os argumentos contrários. O intuito é tentar tirar tal história do esquecimento, não ignorando as duas vertentes de pensamento. O filme ajuda a fomentar a discussão e sua importância varia tanto como algo de caráter curioso/informativo quanto como fonte de esclarecimento de uma das importantes figuras históricas do Brasil.

  • Crítica | A Praça Tahrir

    Crítica | A Praça Tahrir

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    Karl Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, escreveu que a história se repete primeiro como tragédia e depois como farsa. Dentro deste espírito, a análise dos eventos históricos após a Revolução Francesa, marco da era contemporânea, sempre nos traz a elementos, conceitos e grupos políticos que tiveram origem nela e em suas ramificações, como a Revolução Russa de 1917. Portanto, não é a toa que a chamada Primavera Árabe (em referência a Primavera dos Povos, de 1848) ainda confunda tanta gente em relação a seus significados e grupos sociais na disputa pelo poder no Egito, Tunísia, Líbia, Síria, entre outros.

    Filmado in loco por participantes das manifestações que aconteceram em 2011 no Egito, A Praça Tahrir fornece raro material de análise da história enquanto acontece, semelhante ao que aconteceu com o livro de John ReedOs Dez Dias Que Abalaram o Mundo e o documentário venezuelano A Revolução Não Será Televisionada. Os protagonistas egípcios são Ahmed Hassan, Magdy Ashour, Khalid Abdalla, Ramy Essam, dentre outros.

    Tudo se inicia com uma manifestação contra o regime de Hosni Mubarak, ditador há 30 anos no comando do Egito, que instaurou uma sanguinária e violenta repressão a qualquer voz dissonante, com o apoio dos regimes ocidentais, como é comum na região. Formada basicamente por estudantes, jovens e demais camadas sociais sem ligação com partidos políticos ou experiência de luta política, os manifestantes se reuniram, aos milhões, na Praça Tahrir, exigindo a queda de Mubarak, o que aconteceu pouco tempo depois.

    Dali até então, o filme retrata de forma intensa e bem detalhada a sucessão de eventos e a instabilidade que tomou conta do Egito. Com a instauração de uma junta militar de pessoas ainda ligadas a Mubarak e que aumentaram a violência contra os manifestantes, até a aliança desses militares com a Irmandade Muçulmana, uma organização extremista que usa o Islã para obter ganhos políticos, onde juntos organizaram uma eleição de cartas marcadas, que garantiu a vitória do candidato da Irmandade, Mohamed Mursi, que se mostra também um ditador ao concentrar ainda mais poderes em si do que Mubarak havia feito. Mas a resiliência dos manifestantes garantiu também a sua queda.

    Porém, é importante citar também a grande consciência de vários manifestantes, em especial Ahmed, ao dizer que a revolução não estava pronta, e que não bastava a eles retirar presidentes, e sim propor algo para colocar no lugar, pois caso eles não o fizessem, alguém mais organizado o faria. Esse amadurecimento de ideias é raro de ver em embriões de revoluções.

    Todos os eventos descritos acima aconteceram em dois anos, que é o período retratado no filme. Nele, vemos o anseio de jovens empobrecidos que rejeitam a política tradicional, como Ahmed, ou jovens de classe média que estudaram fora, como Khalid, além de figuras ligadas ao extremismo da Irmandade Muçulmana, mas que ao mesmo tempo se divide ao concordar com os amigos independentes, como Magdy. Também vemos a distorção entre a cobertura da mídia oficial, pró-governo, sempre tentando desqualificar os manifestantes e justificar a brutal repressão que receberam, sendo inclusive alguns deles mortos por agentes do Estado. A relação entre Ahmed e Khalid com Magdy é, aliás, um dos pontos altos do filme, onde os dois primeiros, revolucionários independentes, criticam a Irmandade Muçulmana, do qual Magdy faz parte e tenta defender, mesmo quando o presidente era Mursi. Mais ou menos como os defensores do governo federal agem ao tentar defender a repressão aos manifestantes anti-Copa.

    Ao nos levar por toda a turbulência revolucionária do Egito, A Praça Tahrir nos ensina que nenhuma revolução é pronta, e que as mudanças são construídas na prática, disputando espaços, entendendo o contexto e buscando ações que saibam identificar o real inimigo e a melhor tática a ser usada a cada momento, pois um erro nesse cálculo pode favorecer a reação. E caso a força da revolução não seja grande, a reação vem em força geralmente maior que o regime anterior.

    Vendo o filme também dá para traçarmos um paralelo com as manifestações de junho no Brasil, que possui alguns elementos similares, como a desilusão com as instituições políticas tradicionais, a violência da repressão, o papel da mídia, etc. As diferenças vão no fervor revolucionário do povo egípcio, que não contaminou de forma eficiente a população brasileira.

    Obviamente que falta ao filme um trato profissional na qualidade da captação e na edição do filme. Porém, tudo isso fica reduzido perto da importância histórica de pessoas terem registrado esse evento naquele momento, e que provavelmente servirá, por muitos anos, para tentarmos entender toda a avalanche de eventos que ocorreram no Oriente Médio desde 2011. Ainda mais se quisermos entender daqui a alguns anos o que terá acontecido com esses países e esses jovens.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | 12 Anos de Escravidão

    Crítica | 12 Anos de Escravidão

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    A introdução que McQueen arquiteta é típica de sua filmografia, com nenhuma palavra por parte dos importantes personagens mas escancarando o conjunto de sensações que eles têm através das imagens. Solomon Northup (Chewtel Ejiofor) passa por formas diversas de escravidão, desde o simples plantio de cana até ganhar status e seguir o serviço de músico, como um negro livre das amarras que ainda prendiam seus irmãos. Solomon é obrigado a retornar ao estágio de cativo, perdendo o direito que conquistara para si legitimamente, e com isso, os conflitos que visavam o retorno a liberdade vieram, entre eles, a condescendência de alguns do escravizados. Um dos negros, Clemens, ao ser indagado sobre uma possível rebelião diz:

    “Somos negros, nascidos e criados escravos. Os negros não têm estômago para lutar.”

    A mercantilização das vidas é mostrada de forma emocional, com uma rasgante separação de uma mãe e suas duas crianças… Solomon toca seu violino na tentativa de desviar a atenção da separação, mais tarde recebe o nome de Platt, é comprado por Mister Ford (Benedict Cumberbatch) e volta gradativamente a resignar-se e aceitar o chicote. Ele próprio vê Platt como uma outra personalidade, a que aceita os maus tratos a fim de sobreviver mesmo sabendo o quanto isto é injusto.

    McQueen flagra as consequências da rebeldia, mostrando o personagem preso com uma corda no pescoço por longos momentos, após uma discussão com um dos mestres brancos. Mesmo estando “certo” ele é mantido suspenso, sofrendo por seu ato de desobediência, para aqueles que exploravam seus préstimos, sua vida prosseguia sendo inferior, mesmo para aqueles que este considerava benevolentes.

    Edwin Epps, o novo mestre de Platts é imprevisível, e atuação tresloucada de Michael Fassbender grifa ainda mais esse aspecto. A religiosidade, algumas vezes ligada a esperança de dias melhores, é muito presente na vida dos homens brancos, e os motiva de forma diferente, Ford prefere tratar a todos da forma mais suave possível enquanto a rigidez de Epps é dita como prevista nas páginas sagradas da Bíblia, o realizador utiliza a filosofia religiosa para demonstrar diferentes pontos de vista relativos ao convívio com o diferente.

    Patts, uma das escravas “preferidas” de Epps interpretada por Lupita Nyong’o, é mostrada com as costas inflamadas e sangrando graças a uma sessão de chibatadas de seu mestre: esta parte constitui em si uma cena forte e bastante chocante, não só pelo grafismo do sofrimento, mas também pelas injustas razões do castigo. O espanto para o público infelizmente não é o mesmo para os personagens, acostumados a atos selvagens como aquele. O escravocrata faz questão de humilhá-la e tortura Solomon mentalmente, tentando coagi-lo, por perceber que ele tem um pouco mais de liberdade de pensamento que os outros negros servis.

    Quando o golpe finalmente é resolvido, os cabelos de Solomon são grisalhos, suas feições mudaram, estão mais duras, ele está marcado como nunca, mas ao ver os seus novamente, sua reação é de desabar em lágrimas em frente àqueles que tanto buscava, e seus constantes pedidos de desculpas são prontamente recusados. Mais tarde, ele se tornaria um ativo crítico abolicionista, mesmo sem ter sucesso nos tribunais contra seus agressores. O roteiro adaptado de John Ridley é competente demais em mostrar os muitos momentos da trajetória de Northup, sem fazer concessões e sem saídas politicamente corretas, pois expõe uma realidade dura e cruel sem dar ao povo retratado um papel estereotipado de vítima. A direção de Steve McQueen é ainda mais madura do que a apresentada no ótimo Shame, o que demonstra uma ótima evolução por parte do diretor, especialmente em tocar em temas tão delicados quanto os abordados na sua ainda breve filmografia.

    Ouça nosso podcast sobre Steve McQueen.

  • Crítica | Hannah Arendt

    Crítica | Hannah Arendt

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    Uma das grandes discussões da humanidade é  a origem do “mal” como ato de um ser humano contra outro, e como as sociedades modernas conseguem se organizar tentando conciliar o comportamento nocivo dos homens em meio ao avanço material da civilização. Nesse contexto, o debate trazido pela intelectual alemã Hannah Arendt é mais do que importante para nos fazer pensar sobre o papel de cada um nos mecanismos de reprodução dessas desigualdades e violências cotidianas.

    O novo filme de Margarethe von Trotta traz Arendt (Barbara Sukowa) em sua vida radicada nos EUA, na década de 1960, como intelectual e professora respeitada dentro do círculo universitário norte-americano e reverenciada por amigos judeus fugidos do Holocausto. Quando o nazista foragido Adolf Eichmann é preso e mandado ilegalmente para ser julgado em Jerusalém, Arendt oferece-se para ser correspondente do julgamento para o jornal New York Times, o que é prontamente aceito.

    O que todos esperavam ansiosamente era uma condenação simples e veemente, uma análise da sordidez e da maldade nazista sob o posto de vista de uma fugitiva judia. Porém, é publicado um livro, dividido em várias partes no jornal, que assusta toda a comunidade internacional ao mostrar que Eichmann não era um gênio do crime, mas um funcionário público burocrata que cumpria ordens, e, a partir de uma divisão moral que criou em sua mente, carimbava e arquivava documentos que autorizavam o envio de pessoas aos campos de concentração. Além disso, Arendt ainda faz uma crítica ao colaboracionismo judeu nas áreas ocupadas pelos nazistas.

    Apesar de o filme tratar a história com relativa simplicidade e fazer uma defesa também simplista de Arendt, a brutal reação às suas ideias mostra como a autocrítica é praticamente inexistente na sociedade, e como poucas pessoas conseguem enxergar além do senso comum e da lógica maniqueísta de fenômenos políticos, sociais e psicológicos complexos, como o nazifascismo. Sua ideia de “banalização do mal” também é pouco retratada no longa, mas deixa claro que o problema da sociedade atual não é a existência do mal, mas como ele se tornou banal e sem importância. Banalização do mal elevada a escalas estratosféricas pelo nazismo, que racionalizou toda uma operação de morte de milhões de pessoas em escala industrial, cuja colaboração não foi realizada por um criminoso contra a humanidade, mas por um funcionário público como Eichmann, que seria punido caso não o fizesse, e aí reside o problema do “só estou fazendo meu trabalho”.

    Tal relação atualmente pode ser levada a presidentes de multinacionais que exploram mão de obra infantil e/ou escrava em várias partes do mundo, além de políticos e também policiais que, ao vestirem o uniforme da normalidade, brutalizam o cotidiano com pequenas ações, rompendo o tecido da civilização até que não sobre mais nada além da pura reprodução irracional da violência sem sentido.

    Ao tratar de tema tão complexo, falta ao filme de von Trotta justamente a capacidade de diluir tal dilema entre as discussões e conflitos, que por vezes parecem menores do que realmente são, tornando-o mais interessante àqueles com um conhecimento prévio da história. Conhecida pelo seu panfletarismo de esquerda (o filme “Rosa Luxemburgo”, de 1986, que conta novamente com Barbara Sukowa como protagonista, também é dela), a diretora utiliza recursos narrativos puramente expositivos com o viés de convencer a plateia da mensagem que ela está passando, sem propor um debate real e, assim, prejudicando o entendimento sobre o significado do legado de Arendt a um público menos informado.

    A atualidade dos temas trazidos por Arendt é capaz de superar a narrativa retilínea e causar um impacto no espectador sensível a esses assuntos, o que sempre foi o objetivo da intelectual e também da diretora; isso deve ser o mais importante em tempos de tamanha banalização do mal.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Todos os Homens do Presidente

    Crítica | Todos os Homens do Presidente

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    O filme começa como uma reportagem jornalística, recurso metalinguístico usado por Alan J. Pakula com narração em off, mostrando o presidente Richard Nixon diante do Congresso Nacional. O objetivo era mostrar ao público a boa condição do político antes do escândalo, intenção alcançada plenamente. Em seguida, vemos o assalto ao prédio do partido democrata e o temor do grupo em ser pego em flagrante.

    A busca de Robert Woodward (Robert Redford) pelo cerne da notícia não tem como expectativa nem a metade do tamanho e magnitude da repercussão que o caso daria em um último momento, e apesar de não explicitar tudo de uma vez, todo o trabalho de apuração é mostrado minuciosamente. No entanto, a escrita de Bob é crua e sem a substância necessária para a grandiosidade dos fatos, e Carl Bernstein (Dustin Hoffman), um repórter mais experiente e sem muitos desafios nos últimos tempos, chama sua atenção para pôr o nome de um personagem importante na matéria no 1° parágrafo, e não no 3°, em uma discussão clara ao lead (termo jornalístico que designa as primordiais informações de uma notícia ou texto de jornal). Woodward dá suas notas a Bernstein para que ele faça os retoques de forma correta, grafando que o importante era a matéria ficar boa – demonstrando um desprendimento incomum entre os geradores de conteúdo como um todo – e, para surpresa dos dois, é anunciado que ambos estavam responsáveis pelo caso.

    A cada passo dado nas investigações da dupla, há mais negações de testemunhos e mentiras escondidas vindos à tona, o que causa nos repórteres uma avidez ainda maior pela solução do mistério. A recusa da 1ª página em uma das prévias do “fato maior” é um balde de água fria sobre as pretensões dos dois, mas os jornalistas decidem mergulhar ainda mais fundo e os contatos com as fontes passam a ser realizados cada vez mais às escondidas.

    A produção e o trabalho interno nas redações são mostrados à exaustão; Pakula evidencia que o trabalho do comunicólogo é também o de apuração e discussão. Após receberem muitas portas fechadas, Bob e Carl finalmente encontram uma testemunha colaborativa, como uma agulha em um palheiro, mas logo ela se mostra um engano, fruto de uma confusão com os sobrenomes dos envolvidos. Os depoentes que têm relatos importantes para o caso são sempre retratados como pessoas inseguras e reticentes, dada a gravidade dos fatos explicitados.

    Garganta Profunda (Hal Halbrook), a testemunha chave, sempre aparece às sombras, e a câmera só consegue flagrar com exatidão os seus olhos. Ao mesmo tempo em que a escuridão predomina em suas cenas, é ele quem os traz à luz, diante dos “homens da imprensa”.

    Quando a confirmação chega através de uma fonte comprovadamente confiável, Woodward e Bernstein correm até o editor e a lente passeia triunfante junto com eles pela redação, como a volta olímpica de um time campeão. A situação toma proporções tão drásticas que Deep Throat diz que Bob e Carl correm perigo de vida, assim como os editores do Washington Post. Mesmo a contragosto do editor Ben Bradlee (Jason Robards), Woods e Bern seguem imergindo na história. Nos últimos momentos registrados, a câmera mostra a máquina tipográfica datilografando a sentença de cada um dos envolvidos em Watergate e, claro, cita a renúncia de Nixon e a posse de Gerald Ford, mostrando que os esforços dos jornalistas renderam enormes frutos. Todos os Homens do Presidente é baseado no livro homônimo de Bob Woodward e Carl Bernstein e registra a investigação de um dos maiores casos de corrupção política comprovados na história da humanidade, e só é bem executado graças à perícia do elenco e do seu realizador, Alan J. Pakula, que demonstrou uma enorme evolução desde Parallax View.

  • Resenha | Elite da Tropa – Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel

    Resenha | Elite da Tropa – Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel

    Elite da TropaElite da Tropa surgiu antes de todo o estardalhaço levantado com o filme do José Padilha, Tropa de Elite, e apesar de em menor escala, o livro gerou muita discussão devido aos assuntos abordados. Fruto do trabalho em equipe do Antropólogo Luiz Eduardo Soares, que escreveu o livro com base na experiência e pesquisa de trabalho dos integrantes do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro), André Batista e Rodrigo Pimental. Elite da Tropa traz um grande diferencial, narrar o cotidiano dos policiais sob o ponto de vista deles próprios, mostrando a realidade de cada um, doa a quem doer.

    O trabalho dos autores trouxe uma visão muito mais abrangente daquela mostrada no filme do Padilha e aqui, o buraco é mais embaixo, deixando claro que o problema de segurança do RJ não é apenas culpa da polícia que age coercitivamente no trato da criminalidade (e também com aqueles que estão à margem da sociedade) e a corrupção que já faz parte da sua rotina, muito pelo contrário, notamos que esses problemas estão profundamente arraigados nas instituições públicas, não só de segurança.

    As histórias do livro são divididas em duas partes. A primeira delas, denominada “Diários de Guerra”, vemos um relato detalhado das incursões da PM nas favelas cariocas. A violência policial é recorrente durante boa parte desses “diários”, deixando claro a forma como a polícia trabalha, usando esses meios de forma ilegal e arbitrária.

    Nessa primeira parte temos relatos não apenas do BOPE, como da PM em geral, porém, o foco maior é dedicado para a tropa de elite carioca, dando informações sobre seu treinamento, dia-adia e sua função caótica no quadro da segurança pública do Rio de Janeiro. Já em seu início, sabemos um pouco sobre o motivo do qual o BOPE é chamado de “incorruptível”. De acordo com seus membros, isso está ligado diretamente ao fato de pertencerem a um grupo pequeno e seleto de homens, que tem orgulho de fazer parte daquela elite e semeiam o sentimento de honestidade entre eles, punindo severamente os que não seguem este preceito, porém, os mesmos policiais têm plena consciência que isso só é possível pelo número pequeno de oficiais pertencentes a equipe naquele momento.

    Nesses “Diários” já é possível analisar como o indivíduo é corrompido na corporação, dividindo-os entre aqueles que se omitem, os que se tornam cúmplices. Em contrapartida, temos aqueles que estão nadando contra maré, os que caem de cabeça nessa “guerra” até o fim. Práticas de tortura, coação da população menos abastada e extermínio fazem parte do cotidiano desses homens. Por outro lado, culpar a polícia por seus atos violentos é tão ingenuo quanto acreditar que nossos políticos são honestos, ora, esse tipo de ação é aprovado a todo momento, seja por seus superiores, pelo próprio governo ou é claro, pela nossa sociedade.  Como se os policiais tivessem responsabilidade exclusiva, como se os governos e as políticas adotadas não fossem responsáveis pelo caos que a instituição herda.

    Os próprios policiais têm conhecimento que esse tipo de ação provocou apenas o aumento da violência. A política de extermínio (“Na dúvida, mate. Não corra, não morra”), aprovada pelo próprio governo do RJ, se transformou em uma guerra pessoal entre criminoso x polícia, já que as possibilidades de ser morto é maior do que a de ser preso, é “matar ou morrer”, além de que para o policial isso se torna uma vingança pessoal, contra morte de civis e outros policiais, provocada pelos atos desses delinquentes.

    “Dois anos depois: a cidade beija a lona”, segunda parte do livro, traz uma narrativa bastante diferenciada da primeira, pois é focada muito mais no aspecto político das polícias e o quão corrompido as organizações do governo estão. Uma rede de corrupção vai sendo formada aos poucos, e a leitura torna-se absurda a cada parágrafo, devido aos fatos narrados não serem mera ficção, e sim a realidade sem rodeios, beirando o irreal, dado o nível de corrupção e quão baixo um homem pode ir para alcançar seus objetivos.

    Nessa segunda parte, os criminosos do morro dão lugar a bandidos de colarinho branco, empresários e políticos se juntam aos policiais corruptos, formando uma grande rede de interesses onde são gerados acontecimentos que aos olhos da sociedade não tem co-relação, porém, tudo se junta em um objetivo maior. Uma grande conspiração vai se armando, onde apenas os que vivenciam aquele dia-a-dia conseguem conectar os pontos, já que os propósitos não são facilmente identificados e para a grande massa, o bom serviço está sendo feito.

    O maior mérito do livro são as histórias narradas pelos próprios policiais e não romancear as mesmas. A maioria delas te atinge como um soco no estômago, dado o nível de realismo e detalhes que são contadas, seja os níveis de corrupção que a segurança pública atingiu ou mesmo a brutalidade e até mesmo um certo sadismo que fazem parte de alguns policiais. Tudo isso pode não ser novidade, afinal, a corrupção e esses atos atrócitos já foram denunciados por jornalistas, militantes de defesa dos direitos humanos e entidades internacionais, o fato é que isso nunca partiu das próprias instituições de segurança pública, como o que acontece aqui.

    Ser policial no Brasil não é fácil, principalmente se ele for militar, o salário é ínfimo, assim como seu reconhecimento. Os que não se rendem a corrupção, tem de trabalhar na área de segurança privada para complementar sua renda, ficando na ilegalidade. Já o cidadão comum não tem conhecimento do verdadeiro motivo da segurança pública do Rio de Janeiro ser da forma como é, todos os dias ele é condicionado a pensar através dos noticiários.

    Ao matar o responsável pelo tráfico de determinada favela, acreditamos que com isso a taxa de criminalidade está diminuindo. Ledo engano. Ao eliminar um, rapidamente outras pessoas assumemo seu lugar. A “mão-de-obra” é grande, gera um ciclo infinito se continuar da forma que está. A estimativa de vida de um traficante é baixa e quando um cai, existem vários outros esperando sua chance para entrar para o “movimento”.

    O narcotráfico só terminará com outras políticas, o combate direto não é a solução, como o livro deixa bem claro, é necessário intervenções nos orgãos públicos, não só de segurança, do contrário não haverá mudança. Continuará existindo a limpeza social para eliminar não apenas os bandidos, mas aqueles que estão no meio desse fogo cruzado, a mazela que está a beira da sociedade, mas não se engane, a elite nunca terá o mesmo tratamento que o favelado, que o negro, o mais pobre. Essa violência não é aplicada nos filhos de empresários que financiam o tráfico, ou pior ainda, naqueles que estão atrás de sua imunidade parlamentar, aí o tratamento é outro, infelizmente, como relata um dos protagonistas.

    A narrativa é simplista, mas o grande mérito está no que já foi dito, mostrar toda a fragilidade da segurança pública que vivemos, não apenas do Rio de Janeiro, pois esta realidade está presente em todos os grandes estados brasileiros. Os autores colocam o dedo fundo na ferida e a realidade é escancarada de dentro pra fora. Um relato obrigatório para aqueles que querem entender o caos que o sistema se tornou, independente do cárater “fascistóide” que o livro direciona em alguns momentos.

    Como diria Cel. Nascimento, o sistema é foda, parceiro, e ainda vai morrer muita gente inocente.