Crítica | Bem-Vindo a Nova York
“Eu não tenho a menor ideia do que significa possuir um bilhão de dólares.”
Mas a cadeia alimentar não poupa nenhum de seus extremos. É plenamente injusta, principalmente com os intocáveis, mas encontra seu prazer máximo na ilusão de sua justiça. Lá de cima, tudo parece simples. O tudo não é de quem pode comprá-lo, mas de quem sabe chegar lá colocando a força nos lugares certos (Na selva, se eu ganhei porque você me deixou ser melhor, por que eu deveria ter pena de você? Quando o Sr. Devereaux estupra a camareira do hotel onde ele está hospedado, é apenas a camareira que quer saber a resposta. Ele é maior, mais forte, mais rico, e principalmente: Ele é um “homem”. Rei da selva que construiu para si! Ele não PRECISA ter pena de um subalterno). É tudo uma questão de necessidade. Motivação? Não há viagra, música ou livro de autoajuda que ensine onde colocar a intensidade de nossas pretensões, e a diferença entre um turbilhão e uma espiral é sempre a intensidade. Ainda é tudo uma questão de necessidade. O cinema ensina isso a quem ousa realizá-lo, e ensina sem precisar do aval de um subalterno. Uma vez que o cineasta, nós podemos concluir, é o mais corajoso dos artistas, um dos maiores em atividade, Abel Ferrara, aprendeu e agora ensina a desconstruir estudos e quebrar limites em prol de uma crueza que poucos sabem como construir ao longo do processo. Ao longo da explicitude do lado grotesco de um mundo grotesco, do nu artístico em um filme totalmente real, atual, e 100% necessário.
A produção começa e termina com o rosto de um monstro – muito bem vestido, como qualquer monstro que se preze. Ferrara não entrega um filme tão forte e de impacto humanitário tão denso e descortinador desde Os Chefões, obra-prima extremamente desvalorizada (feito todos os seus grandes filmes) e que após 45 segundos exatos, o filme já conquista qualquer um. Essa é uma semelhança que o trabalho aqui analisado resgata consigo através da percepção de cada um que se permite entrar de cabeça no universo das consequências do poder. O filósofo Aristóteles afirma que a única classe na sociedade que contém as virtudes para criar uma política estável é a classe média, de indivíduos nem ricos, nem pobres, o que diminui a chance de revoltas. Lindo, mas Ferrara não tem tempo pra isso, e expõe com falsa instabilidade, e sem filtros ou camisinha, a demagogia de si e para si de quem carrega o poder sem lembrar, a partir de certo ponto de deslize ético, da responsabilidade desta carga tão pesada.
A tanto, o filme é realista ao ponto de invocar técnicas de documentário, atiçando o que nos parece certo ou errado num sentido sensorial mais direto, declarado e transparente. Também é honesto dizer que os filmes de Ferrara não diminuem seu impacto vistos na menor tela possível, apesar desta ser uma excursão triste com qualquer um de seus filmes, feitos para escandalizar os mais controlados, e fazer sair de uma sala de cinema os mais sensíveis. A ressaca após assistir Welcome to New York nos dá as boas-vindas por várias cortesias do que é explícito na projeção, ou seja, tudo. Desde a atmosfera maldita e decadente que nos absorve, a falta de luz para ilustrar a falta de cores de um mundo preto e branco, onde os rostos se iluminam, mas só a superfície é visível, e nada mais, até o chorume saltar pra fora do lixo, quando este é chacoalhado. Extraindo valor do vulgar, do obsceno, do “isso não deve ser mostrado”, Ferrara vai comandando seu show, tão à vontade investigando com um microscópio o universo do dinheiro, que seu DNA pode facilmente assombrar quem nunca sentiu o efeito do seu poder. A imprevisibilidade do cineasta é personificada em Gérard Depardieu, a melhor parceria de Ferrara desde os tempos com Christopher Walken e Harvey Keitel. Um filme com esses três atores juntos seria uma bomba de hidrogênio.
Depardieu realiza uma composição que no cinema moderno só pode ser comparada a de Joaquin Phoenix por seu trabalho em O Mestre, de Paul Thomas Anderson. O veterano ator francês encarna a forma de loucura mais pura: A loucura que se cria e se alimenta. A loucura num mundo louco por si só, impregnada pelo realismo que as relações humanas evocam. O filme é Depardieu, no papel de uma versão piorada de Tony Soprano, de um Alex de Large idoso, cansado de uma vida inteira devotada a ambições e tentações sem fim, numa mistura heterogênea de Laranja Mecânica e O Lobo de Wall Street. Welcome to New York é um filme que jamais poderia ser realizado em Hollywood, sendo os exageros e a dança estética do filme de Martin Scorsese o máximo que é permitido para não despertar a cólera dos personagens de Depardieu que existem no mundo real, no campo de batalha norte-americano. É perigoso criar um filme com a força de uma produção de Pier Paolo Pasolini, ou também em termos atuais, de Ferrara. No feito do último, não há nenhum Leonardo DiCaprio para abrandar o chorume com perfume francês.
Até que ponto o Cinema pode ser um reflexo e até que ponto o mesmo deve ser real, é um limite que a crítica não pode ditar. Pois, sejam nas confissões das personagens (cúmplices um do outro), que não chegam a humanizar o monstro (decisão óbvia demais, seria essa), ou na câmera que invade feito um fantasma a intimidade esquizofrênica de dois seres que não se importam de ser cada vez menos humanos e mais animais, a questão ainda é de necessidade. Se nem o artista precisa julgar o modo e os fatos de sua investigação, ao final, quem somos nós pra fazer isso? Nós somos a empregada doméstica da última cena, realmente. A ignorância é uma benção!