Desde a publicação do romance de Pierre Boulle há uma enorme discussão a respeito do sub-texto presente na franquia do Planeta dos Macacos. A trama que ganharia as telas em fevereiro de 1968 fazia uso da solidão de um homem, que em meio a um local desconhecido, luta por sua sobrevivência, superando as condições inóspitas do clima, do ecossistema e também do preconceito por ser tão diferente física e culturalmente dos seres soberanos do lugar. Os dois filmes desta nova franquia, sem dúvida alguma, trazem bons temas à discussão aberta, alguns deles já mencionados em momentos anteriores, e outros inéditos no comentário social executado na saga dos símios.
Ao contrário do que ocorria com os filmes produzidos por Arthur P. Jacobs, a franquia deste novo século não precisou esconder o cunho político e nem o debate socioeconômico latentes. Com o fim da Guerra Fria, o revisionismo se tornou algo muito bem-vindo, uma vez que o campo a ser explorado era vasto e o tema prolífico. Taylor, o primeiro protagonista da saga, vivido por Charlton Heston, era um dos poucos personagens a quem era permitido alguma nuance de caráter. Seu personagem vivenciava uma forte dicotomia, dividido pelo desprezo à guerra entre semelhantes e o cinismo, fruto de seu egoísmo e de seu comportamento canastrão. A abordagem política do primeiro filme foi ainda pouco profunda. Já no novo nascimento da história, as surpresas quanto ao destino do mundo não seriam tão chocantes quanto os plot twists, e seriam abordadas questões mais palpáveis e comuns aos humanos.
A pueril e óbvia referência contida no segundo filme da primeira franquia, Beneath of The Planet of the Apes, traduzido como De Volta ao Planeta dos Macacos, focava mais na Guerra Fria e lidava com os protestos anti-guerra do Vietnã, uma vez que no momento era, finalmente, pertinente falar sobre o assunto. Já em Fuga dos Planetas dos Macacos, há uma inversão dos papéis de vilões e heróis, transformando os perseguidores em perseguidos, replicando a dualidade da história mundial, além de ratificar a máxima do final pouco feliz ou otimista.
A impessoalidade marcaria o quarto episódio, A conquista do Planeta dos Macacos, com um visual urbano moderno, que simula um futuro mais evoluído, mais próximo do que Boulle pensou, e mais focado na discussão racial. São introduzidas no filme, questões como o ódio que o homem nutre por si mesmo, o auto-controle e a redução do pensamento bestial associado aos macacos, enquanto raça, além da sutil abordagem sobre a psiquê humana. O discurso rebelde militante que dá o tom do filme, é amenizado no final, diante da possível não aceitação do público, transformando-se algo muito mais otimista do que questionador.
O último filme da primeira franquia, Batalha do Planeta dos Macacos, foi pensado unicamente para ser uma ficção científica para toda a família, em que a existência pacífica entre as raças é o mais importante. Algumas falhas conceituais podem ser notadas, como a milagrosa descoberta da fala pelos símios, e a utilização de humanos sobreviventes fora da aldeia, supostamente os mutantes do segundo filme. A superficialidade da abordagem social e o excesso em tentar condensar tudo, conduz o filme a uma série de furos enormes, como as ambíguas lágrimas diante da estátua de Cesar, que poderiam expressar tanto a possibilidade de convivência tranquila entre macacos e homens, quanto a impossibilidade de paz entre as duas raças. O derradeiro capítulo da primeira franquia dá um triste fim às pretensões propostas pelo primeiro filme, mas abre, ainda assim, um enorme leque para a exploração da marca.
A “Visão” de Tim Burton
Em um documentário da HBO a respeito do filme de 2001, Tim Burton declara que sua ideia não era refilmar o clássico protagonizado por Charlton Heston, mas sim, conduzir o texto de Pierre Boulle por outro caminho, mostrando uma supremacia símia diferente de tudo que já se viu, tanto na franquia quanto em sua filmografia. Romper com o seu costumeiro modo de contar histórias por meio de elementos puramente góticos, se mostrou algo mal planejado, já que ficou perceptível que o tom barroco inserido em seus filmes serviam para ludibriar o público, desviando a atenção de um roteiro pouco elaborado.
A partir da realização de Planeta dos Macacos, de 2001, os filmes de Tim Burton começariam a ser apreciados de modo diferente. O diretor retornaria instantaneamente a sua antiga fórmula, saindo pouquíssimas vezes desse padrão, já que a cortina de fumaça que havia revelado a simplicidade de sua obra, evidenciou também alguns elementos grotescos. É como se a luz solar revelasse as vergonhas de alguém que tem muitos segredos degradantes escondidos, somente à espera da exposição.
Apesar do esmerado trabalho do treinador de dublês, Terry Notary, o modo como são conduzidas as atuações é demasiado caricato, o que faz o público automaticamente deixar de acreditar no filme. Todo o resto – exceto, é claro, o roteiro – cenário, vestimentas, direção de arte e até alguns planos de filmagem, funcionam bem, mas a edição é confusa, intercalando cenas que deveriam atemorizar o público com mostras gratuitas da convivência dos primata. O modo como os macacos gritam, estridentemente, ultrapassa o limite da relação respeitosa entre os animais, tornando-os predadores dignos de riso.
Dessa forma, a nova franquia optou por alterar o modo de contar a história, partindo de um visual bem distinto do filme de Burton, sepultando, infelizmente, a grande marca da cine-série, os “macacos fantasiados”, agora substituídos por animais digitais. A despeito do romantismo comum aos fãs deste universo ficcional, a decisão foi acertada, dando início a um novo começo.
Uma Nova Origem
O primeiro ato notável no reboot da franquia de Planeta dos Macacos é a alcunha da macaca inspirada em Zira, já que a mãe de Cesar ganha o nome de Olhos Brilhantes (Bright Eyes) em Planeta dos Macacos: a origem. A inversão começa quando, na última franquia, o apelido era dado ao protagonista homem que representava o único fôlego de civilização humana, George Taylor. No novo filme, o apelido é dedicado à pobre chimpanzé fêmea, morta pela selvageria desencadeada pelo instinto de proteção materno que a fazia esconder seu filhote até mesmo de seus cuidadores, entre eles, Will Rodman, vivido por James Franco.
Curioso é que logo no início do filme, o jovem primata questiona sua condição, pois já que ele não era um animal de estimação, qual seria o motivo de usar uma coleira? E qual seria o motivo para ele viver enjaulado? Ao mesmo tempo em que indaga essa condição de semi-enclausuramento, Cesar dá amostras de seu instinto, o ímpeto em ser o mais ameaçador dentre os seres animalescos.
O instinto recém descoberto faz com que seu desejo por liderar o topo da cadeia alimentar transpareça, o que é constantemente inibido pelo temor e controle humanos de suas ações. Cesar vê que sua inteligência e modo de agir causam medo nos homens, o que frusta o animal e o faz enxergar-se como errado, e até como vilão.
As cenas de interação entre os primatas é quase sempre silenciosa, o modo pelos quais os animais se comunicam é incivilizado, feroz, como a natureza é. Inserir-se nesse meio é um desafio para o primata inteligente. Os maus tratos dos domadores e o desprezo por ter de ficar longe de casa, causam nele uma amargura grande, que mais tarde o ajudaria a entender qual seria o seu papel em meio à sociedade que surgiria dali. Cesar também amadureceria o suficiente para ter uma postura equilibrada entre a autoridade representada pela supremacia, e a liderança que acarretaria em uma série de responsabilidades. Diante da iminente e facilitada saída de seu cativeiro, ele entende que é melhor permanecer onde está, em nome da organização em comunidade.
A consciência e racionalidade de Cesar mostram serem herdados de Rodman, que em meio aos estudos que protagoniza, parece ser o único que se importa com o bem-estar das cobaias em detrimento do retorno financeiro desonesto que alcançaria com seus experimentos. O interesse e a falta de cuidado dos outros cientistas cobram o seu preço, e é partir do erro de um funcionário, que se dá a disseminação de um vírus, fruto do experimento 113. O governo de Cesar é liderado de modo justo, comedido e harmonioso. E mais do que demonstrar força, ele busca ser um exemplo de conduta, sendo pacífico quando possível e belicoso quando lhe é exigido.
Uma vez expostos ao gás, os símios, sob a tutela de seu líder, agem como um exército treinado, com manobras e estratégias próprias, e modos de ataque elaborados. A evolução chegou, finalmente, aos primatas, que buscam o seu espaço a qualquer custo, passando por cima até mesmo do homem que um dia os encarcerou.
Cesar evolui, amadurece, percebe que a sua vida deve ser com seus iguais, com aqueles que compartilham a mesma espécie que ele. Ao final, ele se despede de William de uma maneira simbólica. A mudança dentro de si já fazia sentido, mas precisava ser oficializada com seu mentor e tutor. A partir desse adeus, o símio torna-se livre para exercer o seu papel como líder da comunidade, deixando de lado os sentimentos que tem por Rodman, o rancor das memórias da estadia no “reformatório” e até a saudade de quem lhe ensinou como viver.
O Despertar de um Novo Planeta
Ao contrário do que costuma acontecer com sequências, Planeta dos Macacos: o Confronto não se baseia no que deu certo no primeiro filme do reboot, rompendo com as amarras temporais ditadas pelo sucesso do filme anterior, e pulando dez invernos no futuro, o que, curiosamente, mostrou um roteiro amadurecido no hiato entre as duas produções.
Planeta Dos Macacos: o Confronto revitaliza a temática presente em A Conquista do Planeta dos Macacos de J. Lee Thompson, quarto filme da cine-franquia, que já tomava para si alguns dos elementos presentes na novela de Pierre Boulle, como a perseguição ao diferente, proveniente do medo de uma raça. Tema que, devido a vários motivos, entre eles, as restrições orçamentárias para um filme dos anos sessenta, não foram incluídos no roteiro do filme Michael Wilson e Rod Serling.
Enquanto a película de 1973 usa a relação entre espécies como arquétipos para discutir a segregação racial e a luta pelos direitos civis, antecipando grande parte das discussões a respeito do regime sul-africano do Apartheid, o viés utilizado em O Confronto tende mais à convivência entre espécies diferentes, que, em algumas análises, pode ser também associada à interação racial, a convivência entre espécies que teriam que lutar pela supremacia territorial e até pela existência. Tal assunto remete ao clássico Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annaud, que contempla a disputa entre hominídeos pela sobrevivência, sem qualquer fala conhecida pelo humano contemporâneo.
No filme o “meio” é preponderante para contar a história, remontando a máxima da teoria da comunicação para a qual “o meio é a mensagem”, reunindo assuntos como a tolerância e a comunhão de seres diferentes no mesmo espaço físico e espiritual.
O filme de Matt Reeves também retoma temas já abordados pelas cultura pop, como o paralelo entre as ideologias de Martin Luther King Jr. e Malcom X, presente nos títulos de Chris Claremont e John Byrne de os X-Men. No filme, esses aspectos, ganham uma densidade que vai além do otimismo presente nas obras do título X, como Dias de um futuro esquecido, através de um trabalho de roteiro bem elaborado por Rick Jaffa, Amanda Silver, Scott Z. Burns e Mark Bomback, aprofundando contrastes ideológicos sem a possibilidade de vislumbrar uma viagem no tempo redentora.
Os disparates ideológicos dentro da raça ocorrem de maneira pouco amistosa entre Cesar e Koba, dois dos macacos igualmente modificados no primeiro filme, mas que têm repertório muito distinto. Enquanto Cesar foi adestrado por um “bom homem”, como dito pelo próprio, Koba permaneceu toda a sua vida dentro de uma jaula, sofrendo inúmeros experimentos violentos, conhecendo, portanto, a dura face do homem, que impingia medo e tortura. Ele era um prisioneiro, de corpo e de alma, tão acostumado ao cárcere, que jamais conseguia vislumbrar a liberdade de fato. Tal condição foi assistida por Cesar, que representa o grande líder, o “homem” benevolente que entende as limitações daqueles que estão hierarquicamente abaixo dele, sem tratá-los como coitados ou como presas do jogo comum da cadeia alimentar.
Cesar trata Koba, como trata todos os outros símios, e até dá a ele uma parcela de confiança um tanto discutível, mostrando que o passado não deve subjugar os direitos de um cidadão. O preceito importado da antiga franquia, “Macaco não mata Macaco” justifica esse tratamento e, em alguns pontos da trama, chega à iminência de ser quebrado. Apesar do questionamento se esse limite pudesse ter sido ultrapassado ou não, à luz da lógica de Cesar, o dever sagrado não foi corrompido.
A linha divisória entre os deveres de um líder e as ações de um tirano é bastante tênue, talvez até invisível para quem observa ao longe. Entretanto, fica bastante claro ao espectador, já que a câmera acompanha a trajetória de Cesar e seu modo de governo de forma detalhada, que a despeito de sua nomenclatura e das semelhanças com o ideal do socialismo marxista de não pôr o capital acima de tudo, seu regime não é ditatorial. Ao contrário do Caio Julio romano, o símio tem um enorme temor em castigar aqueles que erram com a sua sociedade. Seu ato final, ao segurar Koba pelas mãos por alguns instantes antes de liberá-lo para sua merecida queda, mostra a reticência e a dúvida de quem põe o ideal do bem comum acima até das questões pessoais e familiares, ao se deparar com seu antigo aliado e agora, traidor da espécie.
No núcleo dos humanos, pouco se sabe sobre a praga que exterminou a maior parte de sua população – o que evidencia ainda mais que o filme deve ser visto sob a ótica dos primatas. Ainda que a questão não seja aprofundada, as referências à praga levam o espectador a crer que a epidemia se deu por uma doença viral, ocorrido a partir do organismo dos macacos, o que cita sutilmente uma das teorias relativas à origem da AIDS.
No entanto, o paralelo mais forte, com certeza, é com o romance de Richard Matheson, Eu Sou A Lenda, em que a humanidade também sucumbiu ante uma doença devastadora, estabelecendo uma trama preconizada pela sobrevivência de um único indivíduo diante de uma competição entre raças. No desfecho, Robert Neville se depara com uma nova civilização, levantada a partir das ruínas da outra que acabou. Sua espécie não vive mais e deixou há muito de ser o topo da cadeia alimentar, assim, sua morte simbolizaria um novo degrau evolutivo, a sucessão na carreira de espécie dominante. É curioso como a conclusão de Robert Neville é tão diferente do discurso de Dreyfus, personagem de Gary Oldman, um homem que a princípio tem boas intenções, já viu muitos dos seus perecerem, mas que não consegue contemplar a realidade que se aproxima dele, já que o mundo não é mais o mesmo, e que os homens não estão mais sozinhos diante da existência de vida inteligente.
Irremediável é, talvez, a palavra que sintetize com mais força a condição em que os fatos culminam no final do “confronto” previsto no título brasileiro, equilibrando-se com o “alvorecer” (dawn) do nome original. A guerra inicia, apesar da amizade dos dois heróis da jornada – Cesar e Malcolm (Jason Clarke), e inexorável, a batalha ocorre graças ao ódio e a intolerância, características que antes eram inerentes aos humanos, e que, aos poucos, mostram-se parte também do instinto selvagem dos símios.
Os rumos que a franquia tomará no cinema permanecem incógnitos quanto aos fatos corridos, mas o espírito, claro, supondo que a produção continuará dando certo, deverá ser o mesmo, com a tentativa de tornar a guerra, algo mais que a simplista disputa territorial que traz como consequência rios de sangue, de inocentes e culpados, para mostrar o quão desnecessária ela é, ante a simples solução de problemas comunicacionais.
Diante do estado de miséria pleno, a ganância é mais difícil de ser notada, mas ainda mora no interior de alguns que provaram dela em tempos passados. A extinção desse sentimento seria algo primordial, para que a impraticável paz entre espécies fosse finalmente instaurada. Dessa forma, o roteiro consegue abordar todas essas questões sem subestimar o público, e trazendo um fluxo de ações que mantém a atenção de todos, sem descuidar do sub-texto filosófico e social, presente desde o romance original de Pierre Boulle.
tl;dr