Jack Kerouac escreve um texto auto-biográfico em On The Road. Os personagens teriam sido inspirados em sua própria vida, utilizando-se da alcunha de Sal Paradise, e na de Neal Cassidy chamava no livro de Dean Moriarty, basicamente a história conta os apuros em que se enfiam a dupla e mais alguns outros amigos, ao fazer uma viagem que começaria na rota 66 e seria cortada por psicodelias, contra-culturas, muitas mulheres, trilhas de jazz aliadas ao asfalto e claro, uma busca espiritual. A história da publicação do manuscrito de On The Road é curiosíssima por si só, somente fora lançada ao público quase dez anos apos ser finalizada. Seu lançamento foi um divisor de águas, pois o mundo era introduzido ao que Jack chamava de Geração Beat, e por mais que contasse em si com uma narração inverídica e inventada, tornava-se uma bandeira para aqueles que compunham aquela geração.
O Beat, de difícil definição – em virtude dos gracejos evasivos do autor – influenciou uma geração inteira. Hector Babenco fez Pixote, Jim Morrison fundou o The Doors, Bob Dylan fugiu de casa… Francis Coppolla tentou produzir um filme pelos idos de 1992, com Gus Van Sant na direção e estrelado pelo ainda não afetado Johhny Depp, mas o projeto não saíra do papel. O livro influenciou o contingente populacional que viria a se tornar o movimento hippie, e o estereótipo deixaria o autor exausto, e talvez (somente talvez) tenham colaborado para a forma reacionária com que encarava a vida na sua fase idosa. Kerouac morreu em 69, alcoólatra, barrigudo, ainda na casa de sua mãe, e refugava a obra que o tornara famoso. Odiava os “cabeludos drogados” que se inspiraram em Na Estrada, o catolicismo praticante exercido na fase anterior, a juventude psicodélica voltou a si, disfarçado do conservadorismo que cortou sua vida.
Geração Beat
Além da óbvia referência de On The Road (lançado em 1957), há dois itens que não devem ficar de fora de uma bibliografia básica, quando se fala do Beat, a saber Howl (1956) de Allen Ginsberg e Naked Lunch (1959) de William S. Burroughs. Os adeptos deste pensamento eram artistas na sua maioria ou simpatizantes da diabrura artesã e levavam um estilo de vida nômade. Junto ao beatnick (termo considerado pejorativo entre alguns subgrupos), aos hippies e a crença no existencialismo, formaram um dos primeiros movimentos contra-culturais da história, refugando o que era dito como correto e normativo, abraçando algumas das minorias secularmente marginalizadas. O compromisso com a política era comum dentro do “grupo”, contendo em si (alguns) comunistas e (esmagadora maioria) anarquistas. O engajamento visceral com ênfase no espiritual era uma das muitas justificativas para o excessivo uso de entorpecentes.
O Livro
Parte Um: Narrado em primeira pessoa, as grandes partes são divididas em muitos capítulos e de curta extensão. Dean Moriarty, parceiro de jornada do narrador, é descrito por este como um fanático por sexo, prenunciando o que viria nas próximas páginas. Cassidy pretende conhecê-lo, mais não só por ter tantas diferenças (de caráter) entre ele e si, mas também por ver nele uma familiaridade fraternal inesperada – isso lhe dava coragem para enfim concretizar a aventura que o boêmio rapaz lhe propunha, rumo a um mundo até então desconhecido. A areia é como um personagem coadjuvante, acompanhado do fervor típico daquela “geração”, mas diversa do pensamento do narrador. A viagem é crua, o frio desértico, os animais do lugar árido, tudo isso é parte integrante e importante da aventura, Sal aos poucos percebe que deve se soltar, se entrosar, ou ficará sozinho, e para ter a inserção na história que procura precisara… precisaria de mais intervenção e menos observação. Com o decorrer da viagem, Sal vai deixando alguns de seus recalques de lado, se livrando da repressão que seu passado lhe impôs, suas experimentações mudam sua forma de enxergar o mundo, mesmo que ele não assuma tal troca de postura, ao menos não tao imediatamente. O contato com pessoas não semelhantes a ele e de formas diversas de encarar a vida o faz refletir sobre suas posturas e também sobre o modo de vida americano, mas no final do preâmbulo ele quase se arrepende, se considerando inconsequente.
Parte Dois: Ao relembrar a quanto tempo não vê Dean, aproximadamente um ano, Sal deixa transparecer a falta que sente do companheiro. As pessoas de sua família parecem reféns da rotina, com suas vidas e decisões cada vez mais enfadonhas, em contrapartida, a imprevisibilidade de Moriarty é atraente, o leva a querer se aventurar de novo e mais uma vez se jogar ao acaso – e ele parte, mesmo com as novas responsabilidades que começara a tomar neste ínterim. A mudança do clima árido para o frio típico da viagem serve para exemplificar a distinção de momentos entre a primeira e segunda parte do livro.
A leitura recomendada para a obra é de total atenção e foco voltado para a trama, mas é ainda mais importante estar inserido na atmosfera certa, de preferência em um momento da vida em que já aja uma mínima bagagem e repertório, não cultural, mas de vivências e experiências, de sonhos já frustrados e possivelmente de porres mal resolvidos. O que Kerouac propõe para si e consequentemente para o leitor é um “abrir mão” de certos valores, especialmente os de maior conservadorismo, a fim de experimentar uma parcela da vida onde a distância do ideal para o tosco (ou grotesco) não é tão óbvia ou evidente.
Parte Três: Sal parece bem menos arredio com os “seres de classe inferior”, não reclamando nem mesmo da companhia de gigolôs e profissionais do sexo. Seu terceiro encontro com Moriarty, ele vê seu companheiro um tanto pessimista, ainda que ele permaneça com muitos dos seus hábitos boêmios e desvairados. A tristeza dele se deve muito a questão que envolve Maryllou, que parece piorar cada vez mais. Sal e Dean mergulham numa nova jornada, restabelecem seu pacto e partem para novas experiências, ainda mais viscerais e nonsense do que antes, pois se infiltram em círculos ainda mais undergrounds dos que costumavam frequentar. A carona que tomam com as “fags” é o início de uma relação intensa (bem mais do que os dois gostariam) com alguns homossexuais. É interessante identificar os preconceitos ainda mais flagrantes a época em comparação com a contemporaneidade.
Parte Quatro: Sal Paradise começa a quarta parte vendendo o seu livro, o que lhe garantiu uma tranquilidade financeira um tanto inédita, enquanto Dean Moriarty vivia com Camille, sua nova/velha mulher. Os tempos mudaram, não era somente Dean que sentia o peso do matrimônio de Maryllou, que estaria até grávida de um vendedor de carros – a geração que cortou o país estava desfeita e descaracterizada quanto a rebeldia e ao comportamento de contra-cultura. O uso excessivo de entorpecentes não é freado, mesmo após a paternidade consumada de muitos personagens. Entretanto, os escrúpulos de Dean e Sal mudaram muito, parte em que meninas ainda infantes serviriam como objetos de saciamento dos prazeres carnais dos presentes é chocante aos olhos de ambos, e mexe com muitos dos conceitos dentro de suas mentes. A degradação de outrem os atinge, demonstrando evolução que estes sofreram.
Parte Cinco: A ideia que Sal Paradise faz de Dean Moriarty na capítulo final é (pedestal), semi-divina, (idealizada sinônimo), como o símbolo daquela geração que deixaram para trás. Sal foi um observador, mas Dean viveu tudo aquilo intensamente, seu estilo de vida dependia disso e mesmo com o tempo passando, e o consequente amadurecimento vindo, ele ainda preservava um pouco da rebeldia daqueles dias dentro de si. O Moriarty verdadeiro era o do deserto árido, das viagens sem rumo pelo interior do país, de caráter experimentador, a figura paterna que ele se tornara era uma jaula para o seu verdadeiro espírito e essa era a sua principal diferença para Paradise, que permanecia o mesmo “moço correto” com alguns desvios na moralidade que foi a tônica em sua vida.
Na Estrada de Walter Salles
A canção, antes dita na tela escura, imediatamente acompanha os passos do andarilho na árida estrada. A forma de Salles filmar emula muito mais uma típica estética estadunidense do que seus filmes do passado, exceto pela paleta de cores, semelhante e muito as tonalidades apresentadas em Central do Brasil. A lente de Walter registra uma beleza que não se notava em Kristen Stewart (exceto talvez por Corações Perdidos), sua Maryllou é completamente diversa da insossa Bella da Saga Crepúsculo. Há muitos easter eggs, como a demonstração do quanto a obra de Proust está no ideário de Dean.
Após 40 minutos de exibição, o realizador grava imagens de Sal escrevendo, muito semelhantes as de Dora (Fernanda Montenegro) em seu filme mais popular, as sequências na areia repleta de barracas de pano também lembram muito as terras nordestinas que Josué e Dora percorriam, atrás de seus objetivos. Apesar de carecer muito de um bom ritmo, o filme de Walter Salles passa as emoções femininas de uma forma magistral, os ciúmes de Maryllou, a decepção e rompimento impingidos por Camille. Mesmo com o roteiro extremamente fiel ao livro, na película a força está maior nas atuações das mulheres, Kirsten Dunst e Kristen Stewart são mais competentes que a dupla de amigos Sam Riley (Sal) e Garrett Hedlund (Dean).
Os excessos do diretor fazem de Na Estrada um filme desnecessariamente longo, o que não chega a ser um enorme problema, ainda que incomode em determinados momentos. A escolha de Jose Rivera ao apresentar no seu roteiro uma relação que beira a o homo-atratividade entre Paradise e Moriarty é exagerada e desnecessária, é óbvio que um tinha muitos ciúmes do outro, mas a atração entre eles não era sexual em si, e sim fraterna.
Pós-viagem
A mensagem que Kerouac passou em sua mais ilustre (e famosa) obra é completamente diversa da sua ideia de mundo, visto a sua caretice e postura ultra-conservadora no fim de sua vida. A crença de que a leitura de uma obra torna-se maior do que a ideal que o autor pensa ganhou um capítulo especial em On The Road, onde a apropriação da interpretação do livro é muito mais de direito de seus leitores do que do criador. Por toda a sua importância, seria natural uma enorme expectativa a adaptação para a grande tela, e a consequente decepção geral pelo filme de Salles. O poder das palavras fez o autor refugar, mas pavimentou o modo de agir não só da geração que viveu toda a efervescência dos primeiros anos do beat, mas quase toda a contra-cultura posterior a ele, vide o movimento punk, a música hardcore, e o grunge de Seattle por exemplo. Na Estrada é um retrato de como muitos da geração que viveu nos anos 1950 agiram em seu íntimo e representa também o sonho de muitos dos que não tiveram coragem de vivenciar tais experiências, além de ser um capítulo muito importante da história americana de contestação do status quo.
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Não lí o livro e ainda não assisti o filme, mais pelo que lí da crítica, parece ser uma história e tanto, pela que a direção do Salles não tenha sido muito elogiada.
Parabéns pela analise, gostei muito.