A mais completa experiência que o filho de Sergio Leone já dirigiu – espécie de relato imparcial com o lado da história que os americanos não querem saber. Verdadeira ópera militar regida por tiros e bólidos de canhão a mil, no drama de meia dúzia de soldados de coragem mais que espartana, na defesa quase que impossível de uma ilha japonesa contra centenas de milhares de soldados do Tio Sam. A composição impacta, emociona e nos torna frágeis diante de um fato verídico que encontra, nas mãos de Clint Eastwood, grandeza e méritos dignos de uma obra-prima moderna; legítimo filme de guerra, barulhento, sujo de sangue, suor e areia. Mas além de ser mais interessado em filmar o interior daqueles homens, o diretor quis provar, no poder da imagem e no som, como um conflito de proporções históricas nada mais é que a manifestação do universo interior dos soldados, alguns patriotas, e outros nem tanto assim.
É no decorrer das horas que se faz a intenção por trás dos tiros, dos gritos de quem sabe que vai perder a guerra antes mesmo da primeira batalha começar, do primeiro tiro a ser lançado. Tragédia anunciada regada em poesia, o rito militar escapa de ser epistolar e nega responsabilidades severas com o que realmente aconteceu, sem deixar de lado o real e o peso de toda a Segunda Guerra em cenas chave. Viramos historiadores de uma época sem perceber, de repente, em especial desse recorte de tempo e espaço na terra do sol nascente, na ilha tão sofrida quanto quem lutou por ela até o fim. Cartas de Iwo Jima retira o poder quase que lendário do fato para encher o relato de inesperadas graça, poesia e força; a força por baixo dos capacetes.
No rol dos filmes de guerra, a guerra aqui é quase metáfora, quociente externo derivado da causa, angústia e danação de um general atormentado pelo passado, de um ex-padeiro transformado em combatente, de gente que recria seu papel no mundo enquanto bombas despencam do céu – literalmente. Uma história que aposta na vida como uma piada difícil de entender, e na morte como certeza implacável. É irônico, contudo, como Eastwood filma um campo minado com calma e elegância exemplares, focando mais nos detalhes e nas explosões emocionais do que na barulheira de terra e fogo (o oposto de Ridley Scott em Falcão Negro em Perigo e Steven Spielberg em O Resgate do Soldado Ryan). Iwo Jima seria isto, também: o ataque do que é desumano contra a humanidade, ou seja, o resumo do que é a guerra.
Um filme que caminha entre o técnico e o lirismo, o político e o humanitário, com aspectos ainda mais abundantes completando o cortejo e a continência direta a história, levada ao cinema pelas mãos de uma roteirista que encontra com suas palavras o entendimento das lentes de Eastwood, filmando cada montanha, cada duna à beira-mar com a singeleza de um pintor na fase azul, tal Picasso e suas iniciativas emocionais; a presença diegética, visual, leva à mesma contemplação de um quadro de quem sabe o que quer insinuar, e como insinuar. O cineasta chega em Iwo Jima no nível indiscutível de mestre, e pra isso não precisaria das próximas confirmações que viria a fazer após 2006. Um dos filmes imperdíveis da primeira década de 2000, e com uma das melhores cenas de bombardeio já mostradas até hoje.