É possível alguém responder como o Brasil, tendo o quadro político histórico e contemporâneo que se apresenta, não possui em sua filmografia nacional um épico cinematográfico como Dr. Fantástico? Por que essa loucura doméstica ainda não nos foi projetada para rirmos ou chorarmos de nós mesmos? Afinal de contas, todos os escândalos dentro (e fora) de Brasília e dos gabinetes dos poderosos justificam com louvor crescente, a cada dia que passa, a falta de uma dessas sátiras pontuais e metódicas a respeito dos nossos inacreditáveis e grotescos absurdos verde e amarelo – e que parecem se inspirar na adaptação do livro de Peter George, Alerta Vermelho, para se perpetuarem em ritmo alucinante por este vasto primo tropical dos EUA. Acontece que Dr. Fantástico está longe de ser “mais uma piada” acerca de um surrealismo político que, ao encará-lo, é melhor rir para não chorar diante de sua bizarra face – face esta que controla o mundo, e portanto, o torna tão louco quanto seus chefes.
Em plena Guerra Fria, no começo dos anos 60, Stanley Kubrick se deparou com uma missão que muitos cineastas atuais poderiam assumir, também, em países cujo cenário caótico inspira e faz produzir tais incumbências: procurar uma história adequada para um filme que exalte a loucura política do momento, e que na Guerra Fria, exaltasse o desvario quase cômico (se não fosse trágico) da corria armamentista nuclear entre as superpotências EUA, e a antiga União Soviética (URSS). Após descobrir o livro de George, vê na publicação o gatilho perfeito para estabelecer um de seus melhores filmes. Aqui, temos um general norte-americano arrogante que manda soltar uma bomba atômica sobre a União Soviética, e “danem-se as consequências, Sr. Presidente”, pois o avião já está a caminho de fazer um segundo sol nascer no horizonte. Ao tratar o ridículo de forma irônica, Kubrick expõe como as nações são moldadas por ações do tipo, quase sempre decididas por meia dúzia de loucos vestidos com paletós e uniformes cheios de medalhas numa sala de guerra em que um não pode brigar com o outro, afinal, é uma sala de guerra.
Como se a regra do jogo fizesse sentido, alguns generais e embaixadores realmente querem provocar um inverno nuclear para alcançar a supremacia americana, mesmo que isso custe o mundo inteiro e a própria segurança nacional (?!). São homens descontrolados que falam de paz com faces odiosas, figuras que nos lembram porque vilões de histórias em quadrinhos, em especial, são deliciosamente detestáveis e sempre acham que estão fazendo a coisa certa, mas que, felizmente ou não, brigam tanto entre si que atrasam suas decisões políticas tomadas em comitê, a portas fechadas em um perturbador estado de confidencialidade. Para encabeçar o elenco com chave de ouro, Kubrick no início pretendeu fazer um suspense pré-apocalíptico com John Wayne, a lenda dos faroestes, mas acabou por escalar o astro da comédia Peter Sellers, com quem já tinha trabalhado antes em Lolita. Aqui, Sellers se divide em três papéis que representam um planeta à beira da autodestruição atômica, incluindo o próprio presidente atordoado dos EUA, e o tal do Dr. Fantástico, um médico da mais alta cúpula do governo cuja prótese do braço direito está sempre fazendo uma inconveniente saudação nazista – e que ele nunca consegue evitar.
O ridículo e o paradoxal então vem justamente disso: da caricatura de um poder ceifado por seus próprios fundamentos imorais e malucos de tão frenéticos e absurdos que, historicamente, acabaram sendo. Sellers entrega a melhor atuação de sua carreira entre outros homens “importantes” tão descerebrados (e desesperados) quanto, marchando entre gritos e acusações em direção ao precipício suicida. O roteiro sobre as motivações em conflito para que este grande crime contra a humanidade aconteça é nada menos que genialmente adaptado em grandes cenas, quase todas tendo como cenário a icônica sala de guerra, ou uma base militar atacada por inimigos que parecem muito mais coordenados que os dois políticos americanos presos no ataque, feito um par de garotos indefesos. No fundo, todos são assim, e há ousadia para demonstrar isso sob a égide do mais refinado humor negro que Kubrick conseguiu transmitir. Dr. Fantástico é literalmente, como o próprio cineasta classificou, uma “comédia de pesadelo” sobre os meninos mimados que controlam as nações, e que por fim, cavalgam mísseis como brincam em gangorras. Não é a cria mais marcante de Kubrick, no geral, mas é a sua direção mais poderosa, simplesmente irrepreensível, equilibrando drama e humor à perfeição. E nesse ponto, é sempre bom lembrar, mais uma vez: que se dane o Oscar.