Tag: Stanley Kubrick

  • Critica | O Labirinto de Kubrick

    Critica | O Labirinto de Kubrick

    O Labirinto de Kubrick é um documentário de Rodney Ascher, baseado em como O Iluminado de Stanley Kubrick foi realizado, resgatando os problemas de adaptação do livro de Stephen King, passando pelas questões envolvendo o cemitério indígena onde se localizou o Hotel Overlook, enquanto brinca com imagens de outros filmes do diretor utilizando a figura de William Hartford, o sujeito vivido por Tom Cruise em De Olhos Bem Fechados como primeiro condutor de sua proposta de documentário baseado em imagens não-originais.

    Esse formato é bem comum no cinema atual, inclusive no Brasil: Cinema Novo e Campo de Jogo  são bons exemplos. A ideia do realizador mira acrescentar ainda mais teorias da conspiração envolvendo a produção do filme, e o modo como o cineasta insere essas questões, na maioria das vezes, é bem acertado.

    O formato do documentário envolve conversas com fãs e críticos, e é embalado por pessoas que se impressionaram com a inventividade de Kubrick em O Iluminado e seus outros filmes, como Laranja Mecânica e 2001: Uma Odisseia no Espaço. O problema maior do filme é que quase não há edição nas entrevistas, e o que se assiste é puramente um exercício de decupagem do que realmente interessa no meio de teorias e elucubrações das mais nonsense possíveis.

    Já as cenas que demonstram as brincadeiras e referências visuais que Kubrick injeta no filme são legais e curiosas, sobretudo pela quantidade de símbolos fálicos, tal qual já havia ocorrido em outras obras dele. Como as falas consistem basicamente em visões e interpretações, as ideias variam demais, algumas interessantes e outras patéticas, e as conclusões passam por essas visões diferenciadas e outras tantas por viagens que parecem não fazer sentido algum. Ascher faz uma colcha de retalhos entre teorias dos fanáticos cinéfilos, e só por isso já se nota o quanto é rico o fenômeno que é O Iluminado.

    A curadoria acerta ao mirar sobretudo a face territorialista do diretor, pois demonstra o quão humano era e precisava apelar para a vaidade em algumas competições com o romance original de King, ao passo que todo o clima mais ligado à participação de Kubrick na filmagem do pouso à lua, faz o filme soar bobo e tolo, nesses momentos entrando na mesma prateleira de obras como Zeitgeist: The Movie, nos piores momentos possíveis da obra. Ascher melhoraria muito sua abordagem e fórmula em The Nightmare, mas em momento nenhum faz um produto desprezível.

  • Crítica | Dr. Fantástico

    Crítica | Dr. Fantástico

    É possível alguém responder como o Brasil, tendo o quadro político histórico e contemporâneo que se apresenta, não possui em sua filmografia nacional um épico cinematográfico como Dr. Fantástico? Por que essa loucura doméstica ainda não nos foi projetada para rirmos ou chorarmos de nós mesmos? Afinal de contas, todos os escândalos dentro (e fora) de Brasília e dos gabinetes dos poderosos justificam com louvor crescente, a cada dia que passa, a falta de uma dessas sátiras pontuais e metódicas a respeito dos nossos inacreditáveis e grotescos absurdos verde e amarelo – e que parecem se inspirar na adaptação do livro de Peter George, Alerta Vermelho, para se perpetuarem em ritmo alucinante por este vasto primo tropical dos EUA. Acontece que Dr. Fantástico está longe de ser “mais uma piada” acerca de um surrealismo político que, ao encará-lo, é melhor rir para não chorar diante de sua bizarra face – face esta que controla o mundo, e portanto, o torna tão louco quanto seus chefes.

    Em plena Guerra Fria, no começo dos anos 60, Stanley Kubrick se deparou com uma missão que muitos cineastas atuais poderiam assumir, também, em países cujo cenário caótico inspira e faz produzir tais incumbências: procurar uma história adequada para um filme que exalte a loucura política do momento, e que na Guerra Fria, exaltasse o desvario quase cômico (se não fosse trágico) da corria armamentista nuclear entre as superpotências EUA, e a antiga União Soviética (URSS). Após descobrir o livro de George, vê na publicação o gatilho perfeito para estabelecer um de seus melhores filmes. Aqui, temos um general norte-americano arrogante que manda soltar uma bomba atômica sobre a União Soviética, e “danem-se as consequências, Sr. Presidente”, pois o avião já está a caminho de fazer um segundo sol nascer no horizonte. Ao tratar o ridículo de forma irônica, Kubrick expõe como as nações são moldadas por ações do tipo, quase sempre decididas por meia dúzia de loucos vestidos com paletós e uniformes cheios de medalhas numa sala de guerra em que um não pode brigar com o outro, afinal, é uma sala de guerra.

    Como se a regra do jogo fizesse sentido, alguns generais e embaixadores realmente querem provocar um inverno nuclear para alcançar a supremacia americana, mesmo que isso custe o mundo inteiro e a própria segurança nacional (?!). São homens descontrolados que falam de paz com faces odiosas, figuras que nos lembram porque vilões de histórias em quadrinhos, em especial, são deliciosamente detestáveis e sempre acham que estão fazendo a coisa certa, mas que, felizmente ou não, brigam tanto entre si que atrasam suas decisões políticas tomadas em comitê, a portas fechadas em um perturbador estado de confidencialidade. Para encabeçar o elenco com chave de ouro, Kubrick no início pretendeu fazer um suspense pré-apocalíptico com John Wayne, a lenda dos faroestes, mas acabou por escalar o astro da comédia Peter Sellers, com quem já tinha trabalhado antes em Lolita. Aqui, Sellers se divide em três papéis que representam um planeta à beira da autodestruição atômica, incluindo o próprio presidente atordoado dos EUA, e o tal do Dr. Fantástico, um médico da mais alta cúpula do governo cuja prótese do braço direito está sempre fazendo uma inconveniente saudação nazista – e que ele nunca consegue evitar.

    O ridículo e o paradoxal então vem justamente disso: da caricatura de um poder ceifado por seus próprios fundamentos imorais e malucos de tão frenéticos e absurdos que, historicamente, acabaram sendo. Sellers entrega a melhor atuação de sua carreira entre outros homens “importantes” tão descerebrados (e desesperados) quanto, marchando entre gritos e acusações em direção ao precipício suicida. O roteiro sobre as motivações em conflito para que este grande crime contra a humanidade aconteça é nada menos que genialmente adaptado em grandes cenas, quase todas tendo como cenário a icônica sala de guerra, ou uma base militar atacada por inimigos que parecem muito mais coordenados que os dois políticos americanos presos no ataque, feito um par de garotos indefesos. No fundo, todos são assim, e há ousadia para demonstrar isso sob a égide do mais refinado humor negro que Kubrick conseguiu transmitir. Dr. Fantástico é literalmente, como o próprio cineasta classificou, uma “comédia de pesadelo” sobre os meninos mimados que controlam as nações, e que por fim, cavalgam mísseis como brincam em gangorras. Não é a cria mais marcante de Kubrick, no geral, mas é a sua direção mais poderosa, simplesmente irrepreensível, equilibrando drama e humor à perfeição. E nesse ponto, é sempre bom lembrar, mais uma vez: que se dane o Oscar.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Crítica | Barry Lyndon

    Crítica | Barry Lyndon

    Era uma vez um estonteante palácio europeu, de sociedade de fina estirpe, e palco da mais intensa cena já rodada por Stanley Kubrick (aqui usando lentes da NASA para filmar certas cenas): eis o jogo de sedução de Lady Lyndon junto ao soldado irlandês Redmond Barry, estátuas vivas em meio a castiçais de ouro e fichas de jogatina, ainda que presos num pequeno salão, próximo a uma varanda isolada onde, não mais suportando ignorar a atração e o arrebatamento um pelo outro, terão seu primeiro beijo apaixonado a luz de um luar rarefeito. Até chegarmos a tanto, Barry e Lyndon, frente a frente numa mesa, estão ocupados a trocar olhares gritantes só para os dois escutarem, ambos queimando paixões silenciosas por debaixo de seus históricos trajes aristocráticos e rodeados pela presença maciça de uma elite absurdamente cortês, que, de tão entretida nas suas apostas e na sua própria postura irredutível, pouco nota a tentação a crepitar violenta e tormentosa naquele par de corpos, fadados a um destino em conjunto, e esmagador, na melhor das hipóteses.

    Daí surge a espinha dorsal de Barry Lyndon: o duplo nascimento passivo-agressivo de uma dama prestes a sucumbir por seus sentimentos por um homem, e o início de uma nova vida ao trapaceiro que usa de sua amada para trilhar os altos privilégios que uma vida da mais nobre classe reserva a seus fortunados. Ao intruso, tudo, incluindo (principalmente) os infortúnios que o mesmo se acha capaz de suportar – e que, por ironia, tornam-se tão elegantemente insuportáveis quanto a cena descrita, acima. Ele quer subir mais alto que um rei, e ela, desde sempre acostumada a esse mundo da mais graciosa pompa (e seus conflitos armados), no fundo quer alguém que lhe diga, e pela primeira vez na vida, qual a graça afinal dessas ambições sociais, tão externas a essa realidade. É a oportunidade que Kubrick queria para adaptar substancialmente o romance moralista de William Thackeray e explorar, sob a ótica do mais fascinado historiador cinematográfico, o olhar ingênuo do infiltrado em uma dimensão que não é sua, mas que quer pertencer – e paga o preço, cedo ou tarde, no ritmo de uma longa e harmoniosa ampulheta mortal.

    Ao aproveitar o megalomaníaco trabalho de pesquisa para Napoleão, seu faraônico projeto que nunca foi pra frente, Kubrick fez questão que sua rigorosa e pontual máquina do tempo fosse aqui poderosíssima, e jamais denunciando sua ilusão de nos teleportar direto para o imenso charme burguês do século 18. Ele quer que sintamos o cheiro das roupas, o odor do suor por baixo das plumas, e o aroma da mobília dos grandes palácios da burguesia – e consegue. Ao final da sessão, precisamos até retirar o ácaro de um tempo tão antigo da nossa pele, pois ao deixarmos o transe, notamos que estávamos lá, presentes o tempo todo, tomando chá entre Lordes e Ladies europeus enquanto testemunhamos seus vícios chiques, suas artimanhas pomposas e, vez ou outra, suas barbáries uns aos outros que sempre irrompem com mais força que a mais feroz briga de boteco. Eles revestem sua bestialidade com o mesmo pó de arroz fino de sempre, e é por isso que o seu cair de máscaras parece sempre mais arrebatador. O choque surge porque nenhuma mentira ou encenação sociais dura firme e forte para sempre, e é essa uma das grandes mensagens de Barry Lyndon: a fina flor carrega os mais letais espinhos, e muitas vezes contra ela mesma.

    Essa autodestruição mora nos olhares dessa aristocracia hipócrita que faz acolher um soldado exterior a ela, um típico outsider, como também é encarado os que vem de fora e sem parentesco ao mundo apadrinhado e desalmado de Hollywood. Figuras (moscas) adotadas (atraídas) por um poder tão ambíguo em seus princípios morais quanto uma faca de dois ou muito mais gumes. Da futilidade nasce a essência do momento, a fruição do movimento, mas acontece que Kubrick já sabia que isso não passa de um reflexo direto da indústria americana que, na década de 70, já fazia parte e era um dos grandes nomes, após 2001, Dr. Fantástico e Laranja Mecânica terem chamado tanta atenção do mundo, e revolucionado a noção de experiência cinematográfica para sempre. Sempre indo aos limites da imagem, e do som, Kubrick é extremamente paradoxal aqui, uma vez que parece, na sua sobrenatural ambição de recriar com autenticidade máxima uma época, e seus espaços característicos, muito mais interessado em nos provocar sobre até onde nós, a plateia, consegue se interessar por uma história cuja nossa principal percepção diante dela é a sua própria artificialidade triunfante.

    Assim, o envolvimento proporcionado é soberbo, nos testando com todos os recursos técnicos possíveis (uso frequente de zoom para deixar as imagens com ar de pintura renascentista, interiores originais na Grã-Bretanha e Alemanha filmados a luz de gordas velas, trilha-sonora inerente ao período que tão bem representam pela vibração da música) a fim de nos mergulhar e nos revirar na trágica trajetória de Redmond Barry e Lady Lyndon, a despeito de toda a distância emocional e temporal que o filme carrega em si, de propósito, e mesmo assim conseguindo nos provocar riso, lágrimas e uma tensão de duelo a duelo, de close em close, provando aos céticos de plantão o domínio de Kubrick à forma de sedução pela qual será sempre lembrado. Esse belíssimo desafio do cineasta para com o público, portanto, é mais do que digno, dividindo como sempre opiniões acerca de suas inesquecíveis e sempre elegantíssimas obras-primas que tornam a sétima-arte tão durável quanto vinho, e tão prestigiosa quanto as mais nobres e palpáveis conquistas artísticas da humanidade.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Crítica | Laranja Mecânica

    Crítica | Laranja Mecânica

    Logo depois de chegar aos limites das estrelas e do sentido em 2001: Uma Odisseia no Espaço, alcançando um grau de excelência e ambição que poucos ou nenhum cineasta dos anos 60 conseguiu alcançar, qual seria agora o próximo passo, a próxima dimensão a ser dominada por Stanley Kubrick? Ora, voltar à Terra, claro, e explorar os confins de algo muito mais complexo que o universo: a natureza humana, tão caótica quanto, e muito mais assombrosa que a mais delirante das supernovas. Parece que, em 1971, Kubrick resolveu parar de olhar para cima, com um telescópio, e descobriu que olhar para Nós, por um microscópio, pode ser ainda mais fascinante – e assustador – que os abismos extraterrestres de um vácuo espacial absoluto. Como ele próprio afirmou, na época: “A questão moral essencial é se um homem pode ou não ser bom, sem ter a opção de ser mau, e se tal criatura continua sendo humana”. Perto da complexidade do homem, o cosmos é ofensivamente óbvio.

    Chegamos então a Laranja Mecânica, um dos mais controversos filmes da cultura pop. Aquele que faz sua tia levantar do sofá, resmungando pelo absurdo de um simbolismo erótico e incômodo. Ou melhor: surreal justamente para poder ser implacável, atacando o senso comum ao ser a sua versão espetacularizada sobre o social, e o indivíduo inserido nele – e que, ao mesmo tempo, o rejeita, e interfere no mundo colocando sua natureza acima do bem-estar coletivo. Alex (narrador em primeira pessoa do filme e do livro homônimo de Anthony Burgess) e seus violentos drugues bebem leite para perverter o puro, e arrombam casas para continuar com esse trabalho de perversão, e destruição de tudo – e de todos. Dirigem para se matar, transam como bichos para não escapar do mundano, e ouvem música erudita, vulgo clássica para que o filme acompanhe seu comportamento selvagem, sugerindo assim que a tradição não serve como escudo contra atitudes desumanas. Para o jovem Alex, em seu submundo de Londres, as estrelas não existem, não importam, e o interminável caos dentro de si é o que ele tem para compartilhar.

    É a tormenta da civilização, como apontam alguns nas infinitas análises deste clássico de Kubrick, o mais controverso dos filmes do genial mestre. Ambientado num futuro quase que distópico, numa sociedade que tira das pessoas sua liberdade, e dignidade, a resposta a esse sistema vem da rebeldia generalizada de jovens que veem valor apenas no sexo e na (ultra)violência, uma vez que o mundo não tem mais jeito mesmo, e o apocalipse parece já estar atrasado para começar. Mas eles tem muito a perder, sim: sua família, em especial, uma constante que Kubrick resolve mostrar como a possível redenção desses algozes de si mesmo, e de um social atormentado por sua presença transgressora – e destrutiva, dois conceitos totalmente diferentes. Há todo um vocabulário próprio na vida e na sobrevivência desses demônios sem asas, anjos caídos cuja queda nunca sabemos quando aconteceu, mas que trazem consigo uma expressão deles que reforça a ideia de singularidade, e de não-pertencimento a normalidade. Seja através de um dialeto particular, seja por suas roupas brancas manchadas de sangue, e a falta de humanidade nas faces daqueles que rejeitam as possibilidades civilizatórias, e se entregam a barbárie.

    É justamente isso que é proposto na prisão de Alex, quando finalmente é encarcerado para ser castrado, ou seja, adestrado. Domesticado, enfim, tal o Hulk de Vingadores: Ultimato. Mas será possível endireitar aquele fatídico pau que já nasceu torto? Vejamos… se a natureza do homem não pode ser desvendada como a origem e a massa das estrelas, lá em cima, o experimento científico de Laranja Mecânica parece ser impossível de funcionar longe das fortes sessões da terapia “Ludovico” às quais Alex é forçado, pelo poder público da Inglaterra, a participar e se submeter a todo tipo de tortura psicológica, a fim de (re)educá-lo. E após o leão virar gatinho, em teoria, soltam o bichinho na selva, onde a realidade cobra o preço, no melhor sentido cármico da situação. Indefeso e chocado como o pecador que foi ao inferno, e voltou pra contar história, Alex experimenta da vingança dos que fez de vítima, já que esse foi o conto de fadas que preparou para si mesmo, enquanto que a pergunta paira no ar: é realmente possível alterar as configurações éticas de um ser humano, e realinhar as coordenadas de sua natureza?

    Na total análise desta pergunta, Kubrick vai fundo na estilização da selvageria, sem medo de construir imagens fortes, e torna seu filme uma alegoria profundamente elegante e provocativa do absurdo que muitos cometem a própria figura, e seu futuro. Quando a família do cineasta foi ameaçada de morte pelo correio, Kubrick mandou retirar o filme de exibição na Grã-Bretanha, e ainda em 1971, os críticos não atingiram um consenso sobre os valores morais, e cinematográficos de algo que nasceu para ser exibido e condenado, de imediato, por sua ousadia essencial. Mas o tempo foi bom, e Laranja Mecânica faz parte de um panteão de produções que incitam debates intermináveis em torno de seus temas irresistíveis, ao redor do globo, sendo marcante da substância a forma, abusando de uma encenação esplendorosa e um ambiente futurista, inspirado com exatidão e adoração à revolucionária (e libertina) pop-arte da década de 70 – o mobiliário no leite-bar Korova, por exemplo, é inspirado nas icônicas obras esculturais de Allen Jones, grande nome europeu do movimento. Isso porque, para Kubrick, o tesão está nos limites, e nisso, ele sempre alcançou o êxtase.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Crítica | A Morte Passou Por Perto

    Crítica | A Morte Passou Por Perto

    Assistir A Morte Passou por Perto é como observar um grande jogador de xadrez no começo da carreira, errando jogadas e perdendo pra crianças no parque. Aliás, Stanley Kubrick era um exímio jogador do esporte, e mostrava um apreço intelectual por tudo que desafiava, com rigor, suas capacidades. Não à toa, seu coração escolheu a mais cara e difícil das artes, o Cinema, e nela começou com filmes tímidos mas que continham cenas memoráveis, como a já popular luta entre dois homens num depósito de manequins no final de A Morte Passou por Perto. Aqui, Kubrick ainda estava distante, mas muito distante ainda de ser um Deus na arte que revolucionou, junto de seus contemporâneos, tais como Alfred Hitchcock (O Terceiro Tiro), Nicholas Ray (Johnny Guitar) e Don Siegel (Dirty Harry), e parecia ensaiar e se familiarizar, mas com propriedade já sentida por todos nós, vários elementos que iriam permear sua filmografia até seu louvável testamento em 1999, com o erótico e poderoso De Olhos Bem Fechados.

    Então, como apreciar o começo de um esportista antes do mesmo extrapolar seus próprios limites? Motivos aqui para isso não faltam; transbordam, na verdade, no decorrer deste conto que promove a imersão realista na história de Davy, um pobre boxeador e sua vizinha, Glória, uma pobre dançarina. Cansados e derrotados, eles só querem escapar juntos de uma realidade suja, e recheada de violência. A Nova York deles não é a de cartões postais, mas pertence aos mais agressivos e truculentos filmes noir, o charmoso gênero de Hollywood dedicado a histórias de gangsteres e seus envolvimentos com damas fatais, crimes e o submundo da máfia. Aqui não é diferente, já que Rapallo, um desses homens-sombra sem rosto e endereço, fica com inveja do amor de Davy com Glória, e a sequestra. Ao retirar a luz do fim do túnel de Davy, algo precisa ser feito, e as consequências da procura frenética por Glória não demoram a acontecer. Somos levados por entre as áreas mais ricas e pobres da maior metrópole americana, entre becos anônimos e as luzes da Broadway, com a morte sempre no cangote de tudo, e de todos.

    Essa visão pessimista não é negada, aqui, por Kubrick, mas revirada, enquanto a história parece buscar um antídoto para que Davy possa alcançar, finalmente, algum êxito na sua vida perdedora. As tragédias então se fazem onipresentes num mundo onde todos se atrapalham ao cruzarem suas vidas, com todos os personagens representando desafios, uns para os outros, mas o drama jamais é exagerado, ou pesado demais a ponto de nos perturbar. As sensações aqui são mistas, humildes, e nos fazem torcer até o último segundo pelo casal que Deus uniu, e o homem separou, em ruas implacáveis que Martin Scorsese tanto explorou, em Taxi Driver e outros tantos filmes célebres. O uso de flashbacks faz da narrativa um desafio bem-sucedido para o iniciante Kubrick, que comanda o filme com muito cuidado, aquém da naturalidade de outras obras (um ano depois, já iria produzir o maravilhoso O Grande Golpe, produto esse bem mais sofisticado, e seguro de si). Mas a verdadeira curiosidade, aqui, é o quanto já se nota, pela primeira vez, o rigor de Kubrick pelos detalhes. A Morte Passou por Perto é o nascimento de uma visão extremamente meticulosa que já estava aprendendo a caminhar, por conta própria.

    Outro ponto interessante é a dramaticidade que a dinâmica técnica de luz e sombra nos oferece, culminando em grandes cenas, graças a uma boa encenação e um preto e branco realmente lindo, homenageando grandes clássicos noir como No Silêncio da Noite, e o impagável Alma no Lodo, de 1931, e com várias cenas (editadas pelo próprio cineasta, ainda com poucos recursos financeiros) fazendo referência direta a fotos do surrealista Man Ray, cujos trabalhos Kubrick admirava demais. No corre corre de Davy, sempre fugindo e se escondendo de criminosos (e de si mesmo), desvendamos o frenesi e a lógica do movimento que iriam existir a partir daqui em todos os filmes do gênio por trás de Laranja Mecânica, e O Iluminado. Uma lógica ambiciosa, e perversa por ser essencialmente trágica, em que uns querem alcançar os limites do espaço, outros os limites da rebeldia social, e outros a vitória quase impossível numa guerra. Já uns apenas desejam alcançar (ou resgatar, no caso) o amor das suas vidas, nem que isso venha custar a sua própria existência. Um belo exercício cinematográfico, em suma, ainda que embrionário, e um tanto inseguro.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.
  • Crítica | O Iluminado (1980)

    Crítica | O Iluminado (1980)

    Se o umbral existe, Stanley Kubrick nos deu uma amostra grátis disso pegando o último estágio dos círculos do inferno e colocando-o num belíssimo hotel de veraneio, trancando uma família dentro dele e vendo o que rola. Baseado no livro homônimo de Stephen King, autor de outras joias como O Nevoeiro e Carrie, O Iluminado é o décimo filme de um dos maiores nomes que Hollywood já produziu, e ajudou a divulgar, em todas as suas épocas. Grande foi o espanto de muitos quando foi noticiado, ainda na década de 70, que o diretor de Laranja Mecânica e Dr. Fantástico, ia adaptar um conto nada convencional a sua filmografia sobre o sobrenatural que pode cercar as nossas vidas, e ganhar espaço cada vez mais no plano material das coisas e das nossas relações. Após rejeitar o roteiro do próprio King, Kubrick escreve sua própria versão das consequências que a mudança de Jack Torrance, sua esposa e filho para o hotel Overlook iriam trazer para suas vidas – para sempre.

    Determinado a terminar seu livro, Jack aceita se isolar por três meses de inverno rigoroso no hotel, sem saber do elemento macabro que espreita atrás de cada porta, imortal como as almas penosas de uma necrópole. Mais e mais, todos passam a ser atormentados por uma força quieta, inquieta e secreta que domina a tudo e todos, tal um vírus presente no ar, mas implacável feito uma força da natureza. Repleto de cenas icônicas, o filme se situa no limiar do real com o surreal, sensível o bastante para andar no meio fio, e nos fazer participar de um delírio alucinógeno a cada minuto que passa. A fim de estudar o gênero de horror, tal um menino que tenta assustar os amigos numa barraca contando histórias de terror, mas sob o sol do meio-dia, Stanley Kubrick aceitou o desafio de investigar o medo, um dos nossos instintos mais primitivos, através da mais refinada linguagem cinematográfica possível. Isso já faria da obra algocult, por excelência, se não fosse também seu inigualável valor a justificar seu apreço crítico.

    Ademais, não se deve culpar O Iluminado por fazer uso de praticamente todos os recursos de um filme de horror, e sim, se admirar como ele recria clichês jurássicos e acha novas maneiras, ainda na década de 80, para nos assustar com o inesperado, e o incontrolável. Atemporal por ser real, e por ser humano, o clássico com um Jack Nicholson 100% psicopata e uma Shelley Duvall afetadíssima, alimentada pela loucura que consome gradativamente o marido,não aposta em sustos fáceis ou cenas fortes para ser marcante, e é isso o que faz a plateia de 2019 pensar: então por que o filme deve ser considerado tão bom, se não me faz pular da poltrona?O verdadeiro horror que Kubrick transmite aqui chega a ser mais do que imaterial, ou seja, não tem a ver com assassinos zumbis como Jason, tampouco com entidades como o palhaço Pennywise, chegando até mesmo a ser um horror invisível, já que os tenebrosos fantasmas das gêmeas do corredor também não expõe o terror absoluto que existe por trás de sua imagem, e da sua morte, uma vez que a aparição das duas é tão dócil, quanto arrepiante.

    Esse horror meio hipotético, sugestivo e potencializado, aqui, só vai se tornar físico (visível) e gritante quando somos convidados a correr em pânico na claustrofobia de um labirinto escuro de gelo e sem saída, com sangue e lascas de madeira pelo ar, e quando um cadáver finalmente levanta da banheira com o corpo apodrecido para cima de nós. Muito antes disso, o que fica e constrói o valor do filme, de fato, é uma ultra elegante perturbação diabólica que o clássico consegue transmitir como poucos, superando a aparente racionalidade humana daquela família de pai, mãe e filho, este último sendo um médium iluminado que consegue ver a realidade do local, umbralina demais para vê-la e continuar são – um estado mental que, como todos sabemos, é muito frágil dependendo das condições do ambiente em que estamos inseridos.E francamente: Stephen King está certo em não gostar d’O Iluminado. Eu também não gostaria se a adaptação do meu livro fosse melhor que o meu jogo de palavras. Ah, as maravilhas do ego.

    https://www.youtube.com/watch?v=Gus5-rAR3k0

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Crítica | Nascido Para Matar

    Crítica | Nascido Para Matar

    Stanley Kubrick é um dos poucos cineastas que ocupa um lugar unânime entre cinéfilos, críticos e apreciadores em geral do cinema – também entendidos, hoje em dia, como aqueles que assistem algo além de filmes da Disney e as produções originais da Netflix. Kubrick foi um Deus em seu exercício, indo aonde muitos sonharam e quase ninguém reuniu recursos o suficiente para, de fato, alcançar. Várias são os clássicos que o mestre, ganancioso e detalhista como só, galgou a fama e o eterno reconhecimento para qualquer um que repouse o olhar nas cenas de seus filmes, maiores que a tela que se encontram, talvez maiores até que as dimensões do Cinema e a nossa percepção que muda, ao longo das gerações. Seus trabalhos extrapolam o limite da arte. Parecem ser sempre mais, ter algo a mais, a cada revisão, uma vez que o talento de Kubrick fazia jus ao seu gênio tão pretensioso, quanto ambicioso. O espetáculo para ele era um mero detalhe operístico, valia a pena engrandecê-lo, e foi justamente o que ele se prestou a fazer em poucos e extraordinários filmes.

    Nascido para Matar vem então a ser seu clássico menos elegante, o que se justifica com a própria proposta do filme, em si. Não há música clássica, nem estilização estética, nem pompa nenhuma que poderia combinar com a loucura e o frenesi e a quase esquizofrenia de um ambiente de guerra: sujo, pervertido e intenso, como a cena em que jovens cadetes militares correm na lama e caem, um por cima do outro, com os braços e bocas abertas a engolir o lodo. Não há boas maneiras que sirvam a isso, e Kubrick sabia exatamente o tratamento que cada história precisa ter para ser inesquecível. A preparação para o filme demorou cinco anos, já que o cineasta se preparava até não poder mais antes de gritar o primeiro “Ação!”. Rodado na Inglaterra, numa recriação perfeita do Vietnã de Apocalypse Now, esse Born to Kill (escrito no capacete do soldado Joker, ao mesmo tempo que um broche com o símbolo da paz está preso no seu colete) não pretende superar o filme de Francis Ford Coppola, indo por outro caminho na sua análise da guerra do Vietnã.

    O diretor de Laranja Mecânica estava muito mais interessado em controlar o inferno, do que deixar explodi-lo na tela. Para Kubrick, o controle da narrativa vinha acima de tudo, e não conseguiu despirocar aqui igual seu colega de profissão. Enquanto Coppola foi ao extremo nas filmagens de uma das produções mais problemáticas de Hollywood, Kubrick previa cada um de seus passos, e isso é muito claro, aqui. Dividido em duas partes 100% complementares, Nascido para Matar começa num acampamento de treinamento de soldados de elite, submetidos a uma total pressão psicológica pelo sargento Hartman (aqui vivido pelo ator e militar Ronald Ermey, numa das melhores atuações da filmografia de Kubrick), homem impiedoso e cruel, especialista em espremer pedras até delas sair um litro de leite – lê-se: torturar a mentalidade de rapazes que entram bons moços nas forças armadas, e saem prontos para sobreviver sob quaisquer circunstâncias. A encenação aqui é solta e naturalista, o que diferente muito das outras atuações dos filmes do diretor – tudo meticulosamente bem pensado, em que cada passo da atriz ou ator é ensaiado um milhão de vezes, antes.

    Uma violência que é então subvertida pelo segundo ato em que os soldados, já preparados e sobreviventes, se jogam no campo de batalha. Seu impacto e interesse dramáticos agora são inferiores aos do magnífico ato que abre o filme, porém, o jogo e a análise aqui é outra e ação se faz dominar: ao expurgar toda a pressão sofrida e o comportamento já doutrinado pelo que passaram, as zonas de guerra viram um playground aos soldados americanos que encaram tudo como a casa deles; o lar ao qual foram remodelados a pertencer. Toda a insanidade e o sadismo da guerra é exposto, entre vísceras e fogo e balas ricocheteando em um país em ruínas, e logo o Vietnã dos anos 70 se desabrocha num tropicalismo ensandecido, e ultra violento. A ambientação não é charmosa e limpa como em qualquer outra obra-prima de Kubrick, pois o mundo estava sendo lavado pelo caos – e o cineasta, também sábio como poucos, compreendeu isso. Se outros dos seus trabalhos também tem a ver com a guerra, aqui a parada é pé no chão e brutalidade sem filtros para com o espectador. A experiência portanto é forte, um delírio filmado em tom de heavy metal, sendo tudo a favor de uma representação fiel e inteligente aos paradoxos e a alucinação que existem e constituem uma guerra, e grande parte do espírito do homem, afinal.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.
  • Crítica | De Olhos Bem Fechados

    Crítica | De Olhos Bem Fechados

    Como se filma um pesadelo? Pergunte isso a David Lynch, e a resposta será um quarto mal iluminado com um homem vestido de coelho comendo biscoitos, sentado numa cadeira olhando para a parede e quase sem se mexer. Para Steven Spielberg, esse estado de devaneio sombrio que tanto nos perturba (e nos atrai) mora é na realidade das coisas, nos absurdos da vida real. Talvez De Olhos Bem Fechados, o mais belo dos suspenses dos anos 90, habite exatamente a zona cinzenta entre essas duas representações, e vai além, uma vez que explorar uma realidade inexplicável já faz parte dos deveres da sétima-arte. Quantos já não fizeram isso, seja numa verve mais comercial, ou numa inspiração mais cult, como sempre foi com Stanley Kubrick – e aqui não é diferente. Muito já se falou sobre seu último filme, o clássico que ele não chegou a ver a recepção na sua aguardada estreia. E no Oscar 2000, devido as polêmicas dos temas da obra, e a nudez masculina e feminina em várias cenas bastante eróticas, a Academia foi novamente puritana e não indicou em nenhuma categoria a última cria do mestre. Espanto? Mas é claro que não. Dane-se o Oscar, e vamos ao que interessa.

    O sarcasmo aqui com as relações é evidente, e se um dia Kubrick ouviu seus acusadores dizendo que ele era incapaz de ser sentimentalista em seus filmes, ele certamente pegou esse sentimentalismo e nos mostrou seu lado mais cruel, sombrio e interessante, possível, no mais mórbido e luxurioso dos pesadelos. Seguindo os passos do casal Bill e Alice Harford, tem-se aqui um conflito a respeito da fidelidade entre homem e mulher que, aos poucos, consome a paz e a vida social e privada de Bill, cada vez mais perdido a vagar nas ruas coloridas de Nova York até ser engolfado pelas trevas que, se o pouparem, é questão da mais pura sorte – como se o destino avisasse ao gato que sua curiosidade, só desta vez, não será em vão, e muito menos punitiva. A sensação de sermos voyeurs de uma história nunca foi tão aguda assim, ao passo de assistirmos personagens deliciosamente imperfeitos, vilões de si mesmos, numa espécie de purgatório cujas relações são fadadas ao mais completo fracasso. Como reverter esse quadro? Só escapando para, assim, voltar ao mesmo patamar de antes. Um purgatório, propriamente dito, num verdadeiro filme de terror cujo maior susto, e espanto, é conseguirmos nos reconhecer no simbolismo perturbador dessa obra-prima.

    Eis um tratado sobre o escondido, sobe o ocultismo e sem parecer ou soar didático a tanto. Se Ingmar Bergman mostrou o casamento como um abismo, seja na mesa, seja na cama, Kubrick viu a instituição matrimonial como algo surreal, repleto de segredos e absurdos metaforizados numa elite secreta cheia de rituais que envolvem suas senhas, seu sexo, e suas máscaras – exatamente como a maioria dos relacionamentos de verdade parecem ser após um tempinho, aos participantes. Tom Cruise e Nicole Kidman, casados na época, se recusavam a dar entrevistas antes da primeira exibição do filme, uma jogada de marketing para alavancar ainda mais a curiosidade de todos. Muito se falava, em especial, acerca de cenas pornográficas e a forte tensão sexual em torno da desconstrução filmada de um casamento, no início acima de qualquer suspeita, mas que gira em torno daquilo que fomenta os laços que podem unir duas pessoas: sexo, poder, e redenção. Kubrick nunca foi tão fundo nas engrenagens de um relacionamento, sendo que para o cineasta todo romance é hipócrita, cínico por natureza, e há sempre algo não dito por trás de olhares e falas bem intencionadas.

    É preciso fechar os olhos, e bem fechados, ele diz, para enxergar o óbvio, como um profeta é capaz de fazer. Stanley Kubrick conhecia bem a teoria da psicanálise, e se interessava pelos recônditos obscuros e enigmáticos da alma humana tanto quanto amava jogar xadrez, em seus sets de filmagem. Na Nova York dos anos 90, suas ruas bem iluminadas e suas festas e apartamentos de luxo be iluminados escondem, com o brilho, os mistérios do homem que nele habitam, e ao redor dele se escondem, no espectro (ir)real das coisas. Através de cenários normais, a iluminação teatral se faz necessária para tornar tudo artificial, de propósito, evidenciando assim as ilusões que o mundo urbano e falso-moralista dos homens aloja. Para Kubrick, tudo é uma grande perversão revestida de romance. Tudo é uma grande mentira, uma grande farsa visualmente deslumbrante!, gritam as imagens quentes e frias de De Olhos Bem Fechados, acompanhadas de uma trilha-sonora que, as vezes, dá o tom de um tenso ritual secreto, e noutra vez, poderia ser usada no divertido percurso de um circo dos horrores. De Oscar Wilde nos fica a máxima: “Dê ao homem uma máscara, e ele se tornará quem realmente é.” Kubrick pegou essa frase, e fez dela um dos seus melhores filmes. E isso nunca será pouca coisa.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Crítica | Glória Feita de Sangue

    Crítica | Glória Feita de Sangue

    A liberdade (geralmente dificultada pelos paradoxos das histórias e conquistada a duras penas e a qualquer custo) sempre foi o principal tema subjetivo e implícito em todos as obras repletas de outras temáticas de Stanley Kubrick – filmes estes encarados sem exceção e merecidamente, nessa altura do campeonato, como indiscutíveis marcos na história do Cinema. A liberdade de expressar sua rebeldia, sua anarquia e sua imoralidade livremente, constituindo-se pelo viés da agressividade e da desumanização de um homem, de sair da Terra e alcançar novos mundos interestelares, de lutar por ela nos tempos de opressão absoluta no suntuoso e inabalável império romano – a liberdade de se romper os grilhões do normativo casamento para buscar o oculto, e os outros lados das relações sexuais indo além do ciclo monogâmico marido-e-mulher.

    Ironicamente, o filme que melhor emblema e interpreta essa questão pelos olhos do diretor, Glória Feita de Sangue, veio logo antes do projeto mais repressivo a Kubrick, o turbulento e grandioso Spartacus, de 1960, cujos aspectos da produção o mesmo, como já bem se sabe, não obteve os êxitos de controle sobre praticamente nenhum deles, devendo com seu gênio incontrolável se submeter ao livre-arbítrio do estúdio e nada mais, sendo talvez nessa hora, ainda no começo de sua carreira meteórica que ainda influencia por demais cineastas do século XXI, que o lendário diretor e intelectual fez compreender a sua presença num campo minado.

    Campo de guerra no qual sua vida profissional se resumiu, tal como um dos seus melhores filmes dignos de intermináveis e elucidativos ensaios e aulas sobre linguagem cinematográfica consegue ser abreviado sem ser rebaixado no que tange seu significado, moral e importância histórica em cenas-chaves que fazem-lhe ser, no mínimo, marcante. Após inúmeras revisões é revelado o quão incrível, e em tão pouco tempo de projeção, Kubrick costura imageticamente um sem-fim de cenas que servem como base a inúmeras discussões sobre se a obra, situada na Primeira Grande Guerra, mereceria de fato ser taxada contra ou a favor do exército, ou se, na melhor das hipóteses, é contra a guerra na verdade, sendo talvez neutra às suas instituições de combate. Curioso como o cineasta não toma lados mas nos convida a tanto, no nosso envolvimento fiel com a história e seus desdobramentos, contando com grandes atores pra isso.

    Como bem afirma o crítico francês Michel Ciment no ótimo Conversas com Kubrick (editora Cosac Naify, 2003), “certamente havia nos dois filmes aqui já citados um questionamento implacável sobre as relações entre mestre e escravo e dos sistemas de opressão, mas, como ficaria claro aos poucos, o quanto que o pessimismo de Kubrick excluía qualquer dialética marxista de progresso”. Ora, o liberalismo, a anarquia e o ceticismo político que o criador embutia nas suas crias tornava-se na sua filmografia cada vez mais robusto e claro pelo final dos anos 50 e ao longo das décadas a seguir, estourando obviamente com o ultra polêmico (até hoje) Laranja Mecânica, de 1971. Assim sendo, o levante do gladiador Spartacus contra seus senhores escravagistas é comandado pelo mesmo instinto guerreiro que faz o coronel Dax (Kirk Douglas) se opor aos caprichos e ao cinismo militar de seus generais fidalgos – atitude que mobiliza e subverte boa parte do que o filme afigurava-se ser, no início. Craque em revirar o limite das realidades dos seus próprios manifestos, o mestre conseguiu sem críticas baratas ao sistema ou apologias dramatúrgicas criar a sua principal e mais bela ode não a rebeldia, mas ao espírito libertário de um ser-humano, militarizado mas muito bem encarnado por outra lenda, Douglas.

    Só depois do ator topar participar do filme, então um sinônimo ambulante de bilheteria, o lendário estúdio United Artists topou financiar o projeto sobre o conflito que traumatizou uma geração inteira. Filmado na Alemanha, perto da cidade de Munique, e nas proximidades do palácio barroco de Schleissheim, Kubrick estudava estratégia militar e o funcionamento de uma mentalidade militarizada entre as filmagens, tentando extrair veracidade e o naturalismo que pode habitar na ficção de ambientes aristocráticos e na pulsação ansiosa dos fronts onde aloja sua câmera, seus sons, seus atores e suas relações de poder, apontamentos e acusações tensas.

    Em meio a tentativas nobremente esforçadas e elegantíssimas de se estabelecer uma atmosfera coerente tanto ao conflito bélico, quanto a momentos políticos paralelos ao mesmo, convidando mais e mais o espectador questionador a reflexão, Glória Feita de Sangue, portanto, é uma inesquecível peça de arte de altíssimo nível, capaz de envolver as pessoas em tais conflitos de consciência (des)humanos e universais, fazendo-nos sentir identificados à tensão física e psicológica as quais soldados comuns e veteranos de guerra passaram na pele, entre suas trincheiras e seus palácios, tendo constantemente seus códigos e o futuro de suas nações postos à prova. Sem quaisquer ufanismos gritantes distribuídos como num filme de Steven Spielberg ou Clint Eastwood, o impacto do pictórico aqui não cede à ajuda de cores saturadas que atraem as plateias abobalhadas de hoje em dia nos complexos multiplex dos shoppings, algo que absolutamente não se faz preciso aqui.

    Vide a famosa cena (tão bela quanto o rastejar espião de três soldados em território inimigo antes do primeiro bombardeio, graças a exímia composição de imagens monocromática em fullscreen) de Kirk Douglas, em travelling extenso e fluído, nas trincheiras infestadas de soldados amedrontados entre uma polifonia de explosões e agonia quase que visível, senão avistada nas faces dos compatriotas submetidos à um apito de guerra, e em seguida, à morte coletiva. É nisso onde podemos sentir claramente como Kubrick ainda não deixava sua técnica hiper afiada guerrear contra a essência de seus filmes cada vez mais intrínsecos, daqui em diante, ao poder extremista do ótico, sendo que já conseguia tratar neste seu segundo grande filme a modulação do tempo das suas maravilhosas sequências filmográficas que exclamam o que elas são por si só, tal qual outros inúmeros trabalhos de incrível refinamento dos seus colegas hollywoodianos da época de ouro e prata sobre os mais diversos temas e mantos, enclausurados em sonhos de grandeza artística e descobrindo na luta contra estúdios estarem num legítimo campo de guerra.

    Acompanhe-nos pelo Twitter e Instagram, curta a fanpage Vortex Cultural no Facebook, e participe das discussões no nosso grupo no Facebook.

  • Crítica | Spartacus

    Crítica | Spartacus

    Spartacus é um ensaio frágil sobre as possibilidades de um épico formalista. E quando me refiro a isso, quero ascender a importância da forma, da escala, das dimensões de um visual, e não necessariamente das dimensões da história, de um estilo de direção ou atuação. Stanley Kubrick tenta malabarizar tudo isso por mais de três horas, mas a forte materialidade desse épico americano (sobre Roma) fala mais alto. Do império icônico à beira da bacia do mediterrâneo onde um escravo, um gladiador execrado lidera uma revolução política, nascem as mesmas intenções que permeiam Ben-Hur (1959), Cleópatra e Jasão e os Argonautas (ambos de 1963), com todos deixando a ação histriônica e a reciclagem da iconografia desse simbolismo ultraclássico falar mais alto, gritar na tela e nas caixas de som, em detrimento de se alcançar um frescor narrativo nunca antes visto, ou ao invés de escalonar o poder da palavra, é quisto focar quase que puramente no poder de um símbolo histórico e do que se pode extrair visualmente disso, nada muito além. Épicos lidando com sua farta energia de forma unilateral, recreativa com a nossa visão e barulhenta aos nossos ouvidos.

    Esse texto portanto não vai contra o Épico e a favor das pequenas histórias (Morte a Ben-Hur, longa vida a nouvelle vague!), não, mas cobiça reconhecer suas diferenças e grandezas e unificá-las num exemplo que parece ser um dos mais acessíveis: A trilogia O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. Três Épicos ambiciosos pelas imagens e a glamourização da ética e da antiética, da corrupção e da criminalidade de uma forma nunca antes vista, com o fotógrafo “rei das sombras” Gordon Willis dando o tom da construção visual do universo dos Corleone, mas num paralelo exato ao poder de uma narrativa revolucionária, de um jogo de palavras tão forte e inesquecível quanto o visual, e com personagens tão complexos entre si quanto um ângulo dourado de câmera muito bem planejado. Essa trilogia e tantos outros exemplos de dramaticidade pontual se configura, então, feito um verdadeiro e maiúsculo Épico, tratando-se (na sua concepção e na nossa interpretação) de um Épico completo, tendo a sua epicidade presente e vibrante em todos os aspectos de uma grande (e absoluta) experiência cinematográfica. Agora, vamos falar do outro lado da moeda. Vamos pensar Spartacus.

    O ano era 73 a.C, e o império romano estava consolidado, vencendo meio mundo de batalhas com tecnologia e estratégia militares ímpares. Criou-se, então, em ordem de inúmeras desigualdades sociais, uma legião de escravos normalmente feita por todos aqueles perdedores das guerras que Roma venceu (estimativas modernas sugerem que, na época, havia um escravo para cada três pessoas livres, destinados a serem servidores domésticos, escravos (as) sexuais ou, como no caso do lutador em questão, gladiadores). Kubrick parece tentar traduzir numa gama de cores saturadas e situações emocionantes e frívolas toda aquela tensão social, relatando o destino de personagens relacionados com base numa história só e numa narrativa simples e humilde que de revolucionária tem só a casca, mas muito bem amparado por uma parte técnica impecável (talvez seja essa então a maior contribuição dessa Hollywood mais nababesca, sempre revolucionando a técnica dos seus espetáculos mas deixando-se cegar facilmente por todas as fascinações que a tecnologia lhe traz).

    A visão do cineasta parece ter certa dificuldade em equilibrar a história de proporções bíblicas com uma narrativa realmente forte, que costure todas questões subjetivas e explícitas de um arco histórico tão notório para com um cinema americano que sempre se apropria da identidade de outras culturas. Sente-se que Kubrick sabe a fantasia que deve mostrar, mas não o que está abaixo dela, numa abordagem por vezes superficial dos clássicos tempo romanesco – algo tão diferente do ótimo Barry Lyndon, mas que viria anos depois. No filme protagonizado por outra lenda, o ator Kirk Douglas e um elenco de peso atemporal, nota-se também como Spartacus na sua reconstituição histórica chega com quase nenhum(a) personagem negro ou abertamente gay, algo completamente mentiroso ao meio escravocrata e diversificado daqueles idos, caso o realismo estivesse realmente ligado a visão de Kubrick para a jornada desse herói revoltado – um espécime de William Wallace do filme de Mel Gibson, mas sem tanto ufanismo patriótico esguichando a cada frame do filme mais naturalista, sujo e corajoso e menos tecnicista e carnavalesco que Coração Valente termina sendo.

    Ora, é claro que os sensores de 1960 eram bem mais rígidos à produção artística de cinquenta, sessenta anos atrás, o que justamente impediu o roteiro de Dalton Trumbo – primeiro filme a ser creditado aós entrar na lista negra do macartismo – em Spartacus de imprimir uma cruel realidade social, fazendo-o apelar para uma releitura mais apoteótica e aventuresca de um período longo e bem conturbado da história da humanidade. De acordo com o próprio Kubrick: “Foi o único dos meus filmes sobre o qual não tive controle total”, batia no peito o cineasta meio que tirando seu cavalo da chuva sobre o que o filme acabou tendo de bom, e de questionável. Corta agora pra 2015.

    Outros tempos, as mesma histórias, claro. Chega George Miller com Max Mad: Estrada da Fúria, assumindo de vez e sem vergonha ou pedantismo nenhum toda a carga de formalismo que um épico de Hollywood pode ostentar, sem perder sua pose e a sua capacidade de reformulação de fórmulas, como a jornada do herói onde a Furiosa de Charlize Theron está inserida, aqui revirada e posta em cheque pelo ambiente caótico da personagem. Reparem que Miller ao contrário do Kubrick de Spartacus não usa em momento algum esse formalismo como fim absolutista, mas como meio de manobras narrativas dramáticas para se extrair desse quarto Mad Max que muitos podem acusar de puramente visual, algo mais e maior que apenas outra mise en-scène grandiloquente. Talvez seja isso que faltou e ainda falta para outros épicos de grandes escalas e sons retumbantes: Algo a mais.

    Acompanhe-nos pelo Twitter e Instagram, curta a fanpage Vortex Cultural no Facebook, e participe das discussões no nosso grupo no Facebook.

  • Filmes sobre o Fim do Mundo

    Filmes sobre o Fim do Mundo

    melhores filmes sobre o fim do mundo

    O medo sempre esteve presente dentro de cada um de nós, para alguns isso se transmuta em uma possível data onde o fim dos tempos chegará. Não são poucas as pessoas que propagam essa política de medo, algumas vezes exercidas através de governos autoritários de forma indireta, ou agindo abertamente por meio de religiões e seitas extremistas. O fato é que essas movimentações que ocorrem de tempos em tempos, seja com a Guerra Fria e o perigo iminente de um guerra nuclear, ou com a virada do milênio e calendários maias, o cinema sempre esteve presente retratando o fim do mundo, muitas vezes abrindo os olhos do espectador para o problema real, seja de forma irônica, lírica ou chocante. Portanto, segue abaixo uma lista de 10 filmes, com a visão de 10 grandes diretores (nada de Michael Bay e Roland Emmerich) sobre o epilogo de nossas vidas.

    A Última Esperança da Terra (Boris Sagal, 1971)

    Baseado na obra de Richard Matheson (existem três versões da história), A Última Esperança da Terra foi estrelado por Charlton Heston e mostra um pouco da paranoia causada pela guerra nuclear. O personagem de Heston vive em uma metropóle completamente dizimada por uma guerra e aparentemente só. O filme traz uma postura antibelicista, além de explorar vários pontos do fanatismo religioso.

    Fonte da Vida (Darren Aronofsky, 2006)

    Apesar de não seguir o padrão dos filmes de “fim do mundo”, Fonte da Vida é uma grande história sobre amor e morte, ciência e espiritualidade, e claro, o início e o fim de tudo. De maneira delicada, duas tramas contidas no filme se entrelaçam e culminam em um última, onde o personagem de Hugh Jackman, completamente só na imensidão, consegue a resposta de sua existência.

    Dr. Fantástico (Stanley Kubrick, 1964)

    Kubrick aproveita o auge da Guerra Fria para fazer uma comédia repleta de ironia sobre os temores da humanidade de uma possível guerra nuclear. Destaque para a interpretação de 3 personagens por Peter Sellers. Simplesmente genial. Dr. Fantástico é um manifesto antiguerra, tudo isso numa das mais mordazes sátiras da história do cinema

    A Estrada (John Hillcoat, 2009)

    A jornada de um pai e seu filho em um mundo pós-guerra nuclear. Hillcoat deixa a sutileza para as atuações do elenco, já que o roteiro e a direção do filme não dão espaço pra isso, apenas para um mundo sem vida e grotesco de pai e filho, onde a esperança se esvai a cada passo. Grande filme.

    A Noite dos Mortos Vivos (George Romero, 1968)

    A Noite dos Mortos Vivos é um paradigma para o cinema como um todo. O primeiro trabalho de Romero é consolidado como uma das produções independentes mais bem sucedidas do cinema, serviu como base para o estabelecimento dos zumbis como conhecemos hoje e influência para o modo de fazer cinema, além de ter um dos finais mais surpreendentes da história.

    Os 12 Macacos (Terry Gilliam, 1995)

    Os 12 Macacos traz uma visão pós-apocalíptica de um futuro onde um vírus dizimou boa parte da população mundial e a única solução da Terra é enviar alguém para o passado para consertar o que motivou esse futuro. Gilliam constrói um senso de urgência e angústia à todo momento. O filme traz ainda uma forte mensagem de voltarmos nossos olhos para o presente e a valorização do que temos hoje.

    Melancolia (Lars Von Trier, 2011)

    Melancolia trata da história de um planeta (Melancolia) que irá colidir com a Terra. Nesse cenário apocalíptico somos apresentados para os conflitos internos, medos e distúrbios de cada personagem e como isso afeta cada um deles. Lars Von Trier utiliza a temática de filmes catástrofe para um estudo sobre o ser humano e sua finitude. 

    Limite de Segurança (Sidney Lumet, 1964)

    O principal problema de Limite de Segurança foi ter sido lançado alguns meses depois do seu co-irmão (e já mencionado aqui), Dr. Fantástico. Diferente do filme do Kubrick, que se tornou cult, Limite de Segurança já não é tão conhecido, sendo revisado pela maioria dos críticas muito tempo depois. Ambos os filmes retratam o mesmo tema, contudo, Lumet opta por uma visão densa e mais politizada que Kubrick e acerta em cheio.

    Filhos da Esperança (Alfonso Cuaron, 2006)

    Cuarón traz uma visão futurista bastante aterradora. Há quase 20 anos não nascem mais bebês, a humanidade está a beira da extinção e o mundo se tornou um caos completo. A construção de personagem de Clive Owen, com seu cinismo e onipresença em tela. É impressionante como a visão de mundo futurista do diretor é atual. O futuro de Filhos da Esperança já chegou e nós não nos demos conta.

    Vampiros de Almas (Don Siegel, 1956)

    Apesar de várias outras refilmagens, algumas mais interessantes que outras, nenhuma supera a versão do diretor Don Siegel. O cineasta dá uma aula de cinema em Invasor de Almas, construindo uma visão apocalíptica de forma tensa, ágil e econômica. A trama conta a história onde as pessoas não são mais as mesmas, apesar da aparência física e das lembranças. Siegel retrata o período de paranoia que os EUA viveu durante a caça às bruxas promovida pelo senador Joseph McCarthy, ou indo mais longe, dando sua visão de um mundo sem emoções.

    Menção honrosa a vários outros títulos que tiveram de ficar de fora mas vale uma conferida: O Fim do Mundo, 4:44 – Último Dia na Terra, Wall-E, Mad Max, Planeta dos Macacos, A Máquina do Tempo, O Menino e seu Cachorro, Donnie Darko, Akira, O Dia em que a Terra Parou, Sunshine, Procura-se um Amigo para o Fim do Mundo, A Sétima Profecia, Extermínio, O Abrigo, O Sacrifício, Guerra dos Mundos, Marte Ataca, Exterminador do Futuro, entre tantos outros.