Tag: kirk douglas

  • Crítica | Sua Última Façanha

    Crítica | Sua Última Façanha

    É de praxe como artistas americanos costumam vangloriar o seu país, e disso extrair para si e para o mundo belos filmes embalados em tratados sobre temas típicos da cultura nacional. Hoje, o pacote vem na forma do heroísmo mitológico que sempre remete, nas cores oriundas dos quadrinhos editoriais que esses super-seres usam, à bandeira dos EUA, notoriamente azul e vermelha. Se agora é assim, teve um antes pra servir de prelúdio a essa moda. O faroeste de Ford a Leone já serviu de referência a essa espécie de patriotismo exportado e importado que Hollywood tanto ostenta, entendendo portanto que a promoção dos ideais nacionalistas do Tio Sam se dá muito mais pelo Cinema, que pela Literatura ou até mesmo que pela Música, já que a sétima-arte tem uma capacidade maior de sedução imaginativa, oferecendo uma hipnose audiovisual mais propícia e latente à publicidade dos valores de um grande shopping center chamado Estados Unidos da América.

    E é por isso mesmo que Sua Última Façanha seria o filme, como outros que não vem a calhar aqui, que de forma alguma poderia vir a faltar na filmografia desse país. Uma terra continental que integra a política de tantos outros, e se vê responsável, tal um Superman de características geopolíticas, de interferir como bem acha que deve na vida de um planeta por inteiro. E que, muito que resumidamente falando, exclama seus poderios em troca de soberania, sob a égide da democracia que vende, ou melhor, diz conferir a quem segue seus preceitos capitalistas do “ter” acima do “ser” da questão – qual seria essa, então? Uma questão de valores, é claro. O longa é a fuga de um homem de uma liberdade imposta (?!). Um brilhante tratado estadunidense, do começo ao fim, e um tanto que esquecido pelas plateias sobre a intolerância, e logo na terra das oportunidades e da democracia – mais irônico que isso, fica difícil.

    Kirk Douglas é o irrefreável vaqueiro Jack Burns, um sobrenome que já deixa claro no que que a vida de Jack se baseia, ou irá se basear. Um homem avesso a qualquer tipo de modernidade mas não por isso bruto, ignorante ou violento: deixa-se prender para ajudar um amigo (Michael Kane) a escapar da prisão, mas descobre que esse, ao sair, terá muito mais a perder aqui fora. Nisso, Jack escapa sozinho, e uma perseguição frenética a cada minuto assola sua vida feito um incêndio devastador nos seus calcanhares, a partir de então, seguindo-o e à espreita do homem num cenário e ritmo perfeitos para fundir um estilo clássico e já enraizado na cultura americana com novas possibilidades tanto de se contar uma história, quanto de abordar um gênero.

    Na mesma década do western spaghetti de Sergio Leone e Clint Eastwood, a obra do cineasta David Miller (não apenas a partir de seu segundo ato aventuresco) configura-se na tela como embate do novo com o velho, e na história, como um marco narrativo e estético por ser mais uma pedra moderna em cima do cadáver resistente do faroeste clássico; um bang-bang monumental que agora divide sua tela fullscreen com um helicóptero sobrevoando um peão e seu cavalo, inundando o quadro de elementos inversamente icônicos e que, antes da década de 60, eram impensáveis de se contemplar num filme dum gênero tão simbolicamente conservador aos primórdios dos EUA. É por isso que o roteiro do tumultuado e famoso escritor comunista Dalton Trumbo, o mesmo de Spartacus, merece uma análise a parte, adaptado aqui do romance do anarquista Edward Abbey.

    A caça sofrida por Jack Burns, suas causas e consequências, exala semelhança e remete à perseguição que Trumbo sofreu por ser membro do Partido Comunista, bem antes dos anos 40, e aos ideais que o segundo autor defendia, afirmando que “O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”, uma frase atribuída a muitos(as) autores(as), mas escrita originalmente por Abbey num simples jornal estudantil. Vale ressaltar ainda que, no que se refere a vida profissional de ambos os escritores, suas carreiras acharam um ótimo paralelo ideológico num filme que representa e faz refletir, cena após cena, a moralidade da anarquia e da violência nacionalista, e a tendência tão norte-americana de perseguir (aqui, literalmente) quem não segue as suas regras, seja o alvo das ações um simples homem e seu cavalo, seja países inteiros que não concordam, obedientes, com suas demagógicas imposições de liberdade (?!).

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  • Crítica | A Fúria

    Crítica | A Fúria

    Brian De Palma está, por incrível que pareça, mais contido aqui. Algo notável após os grandes excessos que foram os magníficos Carrie e Trágica Obsessão, dois anos antes. A Fúria é uma bomba-relógio mascarada de thriller paranormal – e você deveria dar graças a Deus por viver num mundo onde existe um suspense paranormal dirigido por Brian De Palma, amigo(a). Na aventura de um pai tentando recuperar seu filho dotado de habilidades parapsicológicas (quase um Jean Grey dos X-Men, ou melhor, a estranha sanguinolenta de Stephen King) é desculpa de mestre para usar e abusar, revirar e cavoucar quaisquer significações possíveis nas vicissitudes trilhadas pelo personagem de Kirk Douglas, atuando em modo automático entre disfarces detetivescos (a sequência inteira dentro de um pobre apartamento de idosos é hilária) e uma pinta de galã de filme de ação barato captado pela câmera nervosa de um cineasta inquieto como os gloriosos anos 70 (e 80) merecia, assim como merecemos no século XXI, talvez mais do que nunca, atulhado de abstrações temáticas e sutilezas enfadonhas, fartamente incomparáveis a tudo o que já nos foi feito, feito o filme que aqui temos o prazer de refletir, sobre.

    Vamos ao que interessa: A Fúria é o filho bastardo e mais sujo de Um Corpo que Cai, um dos diamantes de Alfred Hitchcock, como todo bom ou ótimo suspense dos anos 60 e 70 não conseguiram escapar de ser. É também De Palma indo, confiante e novamente, contra qualquer naturalismo a fim de criar sua própria difusão criativa e afetada de uma realidade artificial inadvertida, caótica, assombrosa e organizadamente manipulada dentro de um estúdio. Pra muitos, isso é sinônimo de loucura, para o cineasta, é cinema. O cineasta filma a loucura, sempre a manejou, e sendo uma espécie de Hitchcock mais pop, permite-se trilhar caminhos mais contemporâneos na exploração de seus temas, encarnando neles não apenas suspense e mistério, mas vários signos inconfundíveis do entretenimento hollywoodiano que muito raramente se via nos filmes do gênio inglês, como explosões, tiroteios, sanguinolência deliberada e até mesmo poderes psíquicos. Elementos mais apelativos às grandes audiências, ou num termo cultural também muito mais contemporâneo, às audiências de massa fomentadas pela indústria cultural.

    Hitchcock inclusive habitava o plano mais realista das coisas, excepcionalmente mais autoral sem espaço ao exagero ou a um improviso categórico, de certa forma. Enquanto que em A Fúria, o diretor seguia provando habitar o pessoal com um pé nas expectativas do grande público. Vide as compilações de cenas divertidíssimas que participam da trama de todas as suas conjecturas audiovisuais ao longo de sua carreira, em paralelo com momentos bem intimistas, típicos do cinema do cara também, principalmente no filme em questão; um filme que depende intensamente do poder da montagem para tornar-se imprevisível, fator que, em Fúria, é excepcional como todo o resto consegue ser, em harmonia. De Palma, um dos grandes inimigos dos puristas e ao mesmo tempo dos naturalistas do cinema, dificilmente nos decepciona, e mesmo quando o mestre usa suas ferramentas e subverte nossas expectativas para o bem, ou para o mal, é claro que isso também seria proposital a nós, pobre público que por fim somos.

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  • Crítica | Chaga de Fogo

    Crítica | Chaga de Fogo

    Talvez, e com deveras ênfase nessa tal ambivalência do “talvez”, não haja maior ambição a um cineasta do que recriar a mente de um homem, ser o espelho de suas ideias e nos fazer entende-las de modo crível, e ao mesmo tempo extraordinário, afinal, pela lente de aumento que é, ou pode ser, o Cinema, há também de se levar em conta o elemento do impressionar que a farsa fílmica da dramatização cênica carrega. Impressionar, contudo, através de um universo aonde somos guiados pelo ponto de vista de uma única personagem, suas relações, seus dilemas, sua empatia ou falta de, sempre foi uma das mais nobres maneiras de se organizar os elementos de um filme e nos entregar uma baita história.

    Nos impactar através do que rege e do que é regida a personalidade de alguém (a quem o espectador precisa se identificar), portanto, acaba por ser em inúmeros casos de excelência artística um estudo de personagem catártico e intrusivo a um Avatar na tela que, ora, detém tantos traços de nós mesmos, maximizados numa narrativa que aparentemente não tem nada a ver com a gente, mas que através do nosso(a) guia, do nosso ponto de vista sintetizado em sua figura ambulante, acaba sendo reconhecível e atraente a nossa percepção mais básica na sua plenitude singular, seja através de uma personalidade muito bem construída, seja nas cadências de suas múltiplas interações na tela, feito Guido e as mulheres de sua vida naquela apoteose inesquecível de Federico Fellini.

    Reafirmando, então: Nos impactar através do que rege e do que é regida a personalidade de alguém. Pois bem: Esse também é o resultado das grandes obras de arte, dos livros de Victor Hugo, dos filmes de Stanley Kubrick, das fotos de Vivian Maier, das sinfonias de Wolfgang Amadeus Mozart: outros tempos e mentalidades, ainda que acessíveis aos nossos sentidos em absoluto; deliciosamente imortais, diga-se de passagem. Abro esta crítica de uma forma tão alegoricamente reflexiva por tratarmos, aqui, de um filme que, perpetuando parte do que foi dito acima, nos absorve para sua realidade e nos faz esquecer por quase duas horas da nossa, no decorrer das vias impactantes da vida de um homem, e ao mesmo tempo, de um detetive, codinome Jim McLeod (Kirk Douglas, numa das atuações mais fortes da carreira).

    Ele é a alma, a chave para decupar o espírito de Chaga de Fogo assim como o inesquecível Cody é para Fúria Sanguinária; ou ainda, indo além de Hollywood, pousando cá no Brasil, tomamos como exemplo da personificação da substância de uma obra a insuperável Ângela Carne e Osso, de A Mulher de Todos. Personas, entidades com vida própria dentro de uma obra que carregam em suas silhuetas, postura e no limiar de seus movimentos um universo inteiro de desdobramentos espetaculares. Na história em questão, finalmente, a direção do mestre William Wyler (indicada ao Oscar) dá ao roteiro contornos épicos de uma grande história — vide que antes do detetive McLeod entrar pela primeira vez em cena, fala-se tanto da reputação do cara que é impossível não ficarmos ansiosos para sermos surpreendidos não só por sua aparição, mas do que dela pode resultar. E resulta, até o fim hecatômbico de tudo, pra dizer o mínimo.

    Douglas e os protagonistas de Chaga de Fogo tratam seus personagens como expoentes de algo maior, servindo a algo maior, e isso não poderia ser de fato melhor. Dado que a cenografia gira em torno de uma delegacia, onde coexistem os mais diversos tipos de avatares da justiça social e da marginalidade delinquente que essa depende para se fazer necessária, é a materialização preto e branca de um universo de crimes e meias verdades que serve de panorama, espécie de purgatório em todos os sentidos para as almas condenadas (sem exceção) que o habitam destilarem seus diálogos maravilhosos e seus jogos antiéticos de manipulação, não em torno dos crimes que aqueles homens e mulheres cometeram (ou não), não! Isso seria muito pouco.

    O que interessa aqui não são os crimes, isso não só seria muito pouco senão superficial, para espectador míope que não enxerga direito o que move a história ter algo a comentar. Nem mesmo o risco de nunca serem selecionados é o alvo! O que importa ao filme, suas resoluções e por consequência para o incansável (e aos poucos percebemos, o impiedoso) detetive McLeod é a estrada, a linha de raciocínio entre os crimes que faz aquele universo, de alguma forma, se manter de pé, sempre à beira do caos como nos melhores filmes policiais, mas sem cair em colapso, contudo – e tudo através da força investigativa que o protagonista representa, vasculhando junto com a câmera de Wyler uma realidade cheia de segredos que, invariavelmente, nos seduz e nos arrasta para suas delineações finais, e iniciais. Wyler, mais famoso pelo “épico” Ben-Hur, era um grande estrategista de nossa atenção em qualquer tipo de produção sob sua batuta, sem dúvida nenhuma.

    Nisso, Chaga de Fogo, esse belíssimo drama com toques de comédia e suspense (acredite, tudo muito bem equilibrado na projeção inteira) sem apelar à maniqueísmos de qualquer tipo assemelha-se, demais como o tempo provou, a outro clássico de aclamação crítica, e influência histórica que viria demais, o soberbo 12 Homens e Uma Sentença, de Sidney Lumet. Vale uma sessão dupla, aliás, para inflar ainda mais nossas reflexões a respeito de ambas as pérolas, porque não? Fica a dica.

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  • Crítica | A Montanha dos Sete Abutres

    Crítica | A Montanha dos Sete Abutres

    É muito difícil, quiçá impossível, conseguir raciocinar e entender como um filme dessa magnitude pode ser esquecido por muitos nas listas de melhores filmes de todos os tempos. Uma afirmação que se se aproxima do exagero, é porque neste caso, no caso de A Montanha dos Sete Abutres, ainda está longe mesmo assim de compreender a absurda significância e poder de um dos três melhores filmes de Billy Wilder, junto de Se Meu Apartamento Falasse e Pacto de Sangue.

    Costumo dizer que há sempre dois personagens que dão o tom na carreira de um ator/atriz, sempre dois, sendo que o resto são reciclagens irregulares de ambos os pontos mais altos de uma vida dedicada a interpretação. Com uma das maiores atrizes italianas, Anna Magnani, o destaque fica por conta da mãe obstinada Maddalena (Belíssima) e a atriz livre, leve e solta Camilla (A Carruagem de Ouro). Já com Marlon Brando, salienta-se o problemático criminoso Terry Malloy (Sindicato de Ladrões) e o mafioso Don Corleone (O Poderoso Chefão).

    No caso do também americnao Kirk Douglas, verdadeiro camaleão, destaco o tira machista e obcecado por justiça de Chaga de Amor, o ótimo filme de William Wyler, mas, acima de tudo, o repórter desumano e oportunista (no pior sentido da palavra) Charles Tatum, de A Montanha dos Sete Abutres, num trabalho de composição de personalidade extremamente forte e raro de se ver aonde atuação e todo o resto brilham espantosamente, habitando num uníssono, numa fusão de brilhantismos clássicos e inquestionáveis um seleto hall de excelência onde poucas obras primas de Hollywood ousaram se imaginar chegando perto.

    Os maravilhosos truques de câmera por exemplo são outro complemento bem-vindo para mais uma gema dourada em preto-e-branco sobre ambição do cinema de Wilder – nunca suas metáforas visuais foram tão afiadas, nem mesmo em Crepúsculo dos Deuses. Desde o primeiro até o último plano com a câmera quase que engolindo Douglas após sua longa trajetória de desumanização e danação, por conseguinte, o filme é constantemente arrebatado por fatores cinematográficos elevados com rigor de mestre à enésima potência pelo inesquecível diretor, em que se não apresenta aqui o seu melhor e mais inspirador trabalho de direção de Cinema, absolutamente não fica longe disso. Nem sequer indicado ao Oscar foi, sendo grande demais para premiações, afinal.

    Até onde chega a ambição e a antiética de um ser-humano no abuso de outros para se chegar a certo patamar, mesmo que esse outro esteja em completa desvantagem (no caso, de vida ou morte) é o que o longa-metragem investiga da mesma forma que O Tesouro de Sierra Madre e mais recentemente Sangue Negro foram bem-sucedidos na tentativa, porém é certo que foi Wilder junto do igualmente seminal Ouro e Ambição, do gênio austríaco Erich von Stroheim, a conjurar o retrato filmado da cobiça que chamamos cinicamente às vezes de ‘instinto de sobrevivência’.

    A questão é o que permite a ganância de se perpetuar no espírito humano como um simbionte, e a partir de que momento perde-se a moral para se investir cegamente no sucesso pessoal a qualquer custo. Essas respostas são exclamadas principalmente pela postura de Douglas, o mais perverso dos protagonistas, de fato, numa crítica mais que coerente tanto a sociedade do espetáculo, quanto suas engrenagens midiáticas tão corruptíveis quanto quem as consome, todos nós, e sobretudo, ao lado mais negro da alma humana, usando de um cenário longe dos centros urbanos para enfatizar e explorar, ainda mais, o lado animalesco das verdades sobre as ‘pessoas comuns’.

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  • Crítica | Sede de Viver

    Crítica | Sede de Viver

    Dois mestres unindo-se por um sonho romantizado, o de se pintar com a câmera e seus ângulos abertos e generosos um mural sem molduras e em movimento com tudo de mais icônico, simbólico e indicial houvesse na nobreza a pulsar sóbria nesse punhado de frames cuja estrutura orgânica resulta na mais poética das diferentes encarnações que um filme pode ter, dependendo claro da visão de quem o comanda – neste caso, dupla. Sonho alcançado por meio da existência e resistência cinematográficas, no território da assimilação de uma história, singularmente falado, com a sua intrínseca composição visual – ou seja, celebrando a fusão entre a palavra dialogada e uma decupagem visual sublime que eleva este diálogo ao nível excepcional da pura e irrevogável linguagem cinematográfica (tão cara ao século XXI e meados do XX, devido as comparações com os triunfos irrebatíveis de outros mestres multifacetados de outrora não conseguirem quase nunca ser equiparados quiçá superados por boa parte da produção atual).

    Um casamento muito perceptível este da alma com o corpo de um filme, algo planejado, desdobrado e sensível em praticamente todos os pequenos e grandes filmes de Vincente Minnelli e George Cukor (onde não há instante infinitesimal entre aspectos das suas crias que pudesse ser analisado apartadamente do todo), e que em Sede de Viver tal enlace é plenamente acentuado de uma forma contemporânea pelo uso magistral do cinemascope sendo articulado em um uníssono perfeito, e insubstituível por outros recursos, com as intenções dramáticas em torno das circunstâncias da vida e obra de um dos mais famosos artistas da humanidade, Vincent Van Gogh, no seu mais belo e poderoso ensaio biográfico filmado sobre o caos particular do pintor, dilemas e paixões avassaladoras.

    Inspirados por uma contemplação visceral do que estava oculto por trás dos quadros do gênio espanhol, após uma longa e globalizada pesquisa já confirmada logo no início do filme (a MGM inclusive contou com a ajuda valiosa do amplo acervo do museu do MASP sobre o pintor, aferindo o máximo de fidelidade aos fatos), e guiados por sua maturidade profissional, Cukor e Minnelli desferiram suas peculiaridades adjacentes e entenderam de forma emblemática e invejável como adentrar no universo realista do homem e num momento seguinte, na ótica imaginativa do artista, a ponto de suas visões narratológicas e estéticas não poderem se distinguir mais, trazendo-as ao choque de resoluções para que a construção deste sentindo único e pulsante de Sede de Viver fosse continua e ininterruptamente conseguido, algo deveras raro no Cinema de hoje em dia, com grandes e caríssimos exemplares ao redor do mundo de beleza indiscutível, mas, quando não rasos, desequilibrados entre fatores que seus encenadores parecem majoritariamente alheios a suas circunstâncias mais profundas, para não dizer refinadas e/ou poéticas.

    Ora, se o predomínio da linguagem cinematográfica em Sede de Viver debulha-se firme, e forte, nos domínios simbólicos da poesia para se registar como protagonista expressivo na espinha dorsal desse espetáculo elegante e romanesco de cores, luz e sombra donde se configura (na tela) as relações efêmeras de Van Gogh com o mundo e seus habitantes que ele tanto quisera imortalizar (nas suas próprias), há-se então presente o legado e o resgate, ainda nos anos 50, dos grandes poemas visuais fundamentais para a arte que lhes serve de palco. Contudo, não só se observa, mas sente-se a influência estilística dos filmes ainda preto-e-branco de Murnau, Ophüls e outros em inúmeras sequências de puro brilhantismo narrativo, e em inúmeros de seus planos também, tal quando o pintor entra numa mina de carvão, por motivos que não vêm a calhar nessa crítica, e se depara com trabalhadores escravizados, e ao interagir com eles num ambiente nada colorido ou urbanizado, detecta na miséria traços de humanidade coletiva tão puros e grandiosos naquela gente resistente que se tornam quase inviáveis de se retratar pela mixagem penosa de seus tubos de tinta.

    Algo mostrado bem no começo da história, sendo proposital àquilo que se compreende como continuidade do filme, pois logo em seguida, Van Gogh já iniciaria seu questionamento existencial, aos poucos, sobre o poderio duradouro da arte que viveria para aprimorar. E finalmente, é essa pseudocrise existencial que o filme incorpora todo o tempo nas suas paletas, diálogos, figurinos, cenários, ou seja, em toda a sua exposição, gradativamente, como um dégradé de emoções e anseios de uma vida agitada perfeitamente bem traduzidas na linguagem do celuloide pela junção dos diretores de Cabaret e Minha Bela Dama, filmes bastante inferiores e muito mais famosos a nível de comparação que este. Mesmo assim, sob o ângulo apurado do linguístico, Sede de Viver carrega na sua completude uma veracidade e um peso artístico ultra potentes e muito além das capacidades do verbal e do pictórico, exaltando assim o Cinema e o delicado herói europeu aqui admirado, mas também investigado – não somente por seus quadros e comportamentos controversos, mas pela visão de mundo que absorveu da vida e pelas “cores” daquilo que lhe consumia, sempre de dentro para fora.

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  • Crítica | Glória Feita de Sangue

    Crítica | Glória Feita de Sangue

    A liberdade (geralmente dificultada pelos paradoxos das histórias e conquistada a duras penas e a qualquer custo) sempre foi o principal tema subjetivo e implícito em todos as obras repletas de outras temáticas de Stanley Kubrick – filmes estes encarados sem exceção e merecidamente, nessa altura do campeonato, como indiscutíveis marcos na história do Cinema. A liberdade de expressar sua rebeldia, sua anarquia e sua imoralidade livremente, constituindo-se pelo viés da agressividade e da desumanização de um homem, de sair da Terra e alcançar novos mundos interestelares, de lutar por ela nos tempos de opressão absoluta no suntuoso e inabalável império romano – a liberdade de se romper os grilhões do normativo casamento para buscar o oculto, e os outros lados das relações sexuais indo além do ciclo monogâmico marido-e-mulher.

    Ironicamente, o filme que melhor emblema e interpreta essa questão pelos olhos do diretor, Glória Feita de Sangue, veio logo antes do projeto mais repressivo a Kubrick, o turbulento e grandioso Spartacus, de 1960, cujos aspectos da produção o mesmo, como já bem se sabe, não obteve os êxitos de controle sobre praticamente nenhum deles, devendo com seu gênio incontrolável se submeter ao livre-arbítrio do estúdio e nada mais, sendo talvez nessa hora, ainda no começo de sua carreira meteórica que ainda influencia por demais cineastas do século XXI, que o lendário diretor e intelectual fez compreender a sua presença num campo minado.

    Campo de guerra no qual sua vida profissional se resumiu, tal como um dos seus melhores filmes dignos de intermináveis e elucidativos ensaios e aulas sobre linguagem cinematográfica consegue ser abreviado sem ser rebaixado no que tange seu significado, moral e importância histórica em cenas-chaves que fazem-lhe ser, no mínimo, marcante. Após inúmeras revisões é revelado o quão incrível, e em tão pouco tempo de projeção, Kubrick costura imageticamente um sem-fim de cenas que servem como base a inúmeras discussões sobre se a obra, situada na Primeira Grande Guerra, mereceria de fato ser taxada contra ou a favor do exército, ou se, na melhor das hipóteses, é contra a guerra na verdade, sendo talvez neutra às suas instituições de combate. Curioso como o cineasta não toma lados mas nos convida a tanto, no nosso envolvimento fiel com a história e seus desdobramentos, contando com grandes atores pra isso.

    Como bem afirma o crítico francês Michel Ciment no ótimo Conversas com Kubrick (editora Cosac Naify, 2003), “certamente havia nos dois filmes aqui já citados um questionamento implacável sobre as relações entre mestre e escravo e dos sistemas de opressão, mas, como ficaria claro aos poucos, o quanto que o pessimismo de Kubrick excluía qualquer dialética marxista de progresso”. Ora, o liberalismo, a anarquia e o ceticismo político que o criador embutia nas suas crias tornava-se na sua filmografia cada vez mais robusto e claro pelo final dos anos 50 e ao longo das décadas a seguir, estourando obviamente com o ultra polêmico (até hoje) Laranja Mecânica, de 1971. Assim sendo, o levante do gladiador Spartacus contra seus senhores escravagistas é comandado pelo mesmo instinto guerreiro que faz o coronel Dax (Kirk Douglas) se opor aos caprichos e ao cinismo militar de seus generais fidalgos – atitude que mobiliza e subverte boa parte do que o filme afigurava-se ser, no início. Craque em revirar o limite das realidades dos seus próprios manifestos, o mestre conseguiu sem críticas baratas ao sistema ou apologias dramatúrgicas criar a sua principal e mais bela ode não a rebeldia, mas ao espírito libertário de um ser-humano, militarizado mas muito bem encarnado por outra lenda, Douglas.

    Só depois do ator topar participar do filme, então um sinônimo ambulante de bilheteria, o lendário estúdio United Artists topou financiar o projeto sobre o conflito que traumatizou uma geração inteira. Filmado na Alemanha, perto da cidade de Munique, e nas proximidades do palácio barroco de Schleissheim, Kubrick estudava estratégia militar e o funcionamento de uma mentalidade militarizada entre as filmagens, tentando extrair veracidade e o naturalismo que pode habitar na ficção de ambientes aristocráticos e na pulsação ansiosa dos fronts onde aloja sua câmera, seus sons, seus atores e suas relações de poder, apontamentos e acusações tensas.

    Em meio a tentativas nobremente esforçadas e elegantíssimas de se estabelecer uma atmosfera coerente tanto ao conflito bélico, quanto a momentos políticos paralelos ao mesmo, convidando mais e mais o espectador questionador a reflexão, Glória Feita de Sangue, portanto, é uma inesquecível peça de arte de altíssimo nível, capaz de envolver as pessoas em tais conflitos de consciência (des)humanos e universais, fazendo-nos sentir identificados à tensão física e psicológica as quais soldados comuns e veteranos de guerra passaram na pele, entre suas trincheiras e seus palácios, tendo constantemente seus códigos e o futuro de suas nações postos à prova. Sem quaisquer ufanismos gritantes distribuídos como num filme de Steven Spielberg ou Clint Eastwood, o impacto do pictórico aqui não cede à ajuda de cores saturadas que atraem as plateias abobalhadas de hoje em dia nos complexos multiplex dos shoppings, algo que absolutamente não se faz preciso aqui.

    Vide a famosa cena (tão bela quanto o rastejar espião de três soldados em território inimigo antes do primeiro bombardeio, graças a exímia composição de imagens monocromática em fullscreen) de Kirk Douglas, em travelling extenso e fluído, nas trincheiras infestadas de soldados amedrontados entre uma polifonia de explosões e agonia quase que visível, senão avistada nas faces dos compatriotas submetidos à um apito de guerra, e em seguida, à morte coletiva. É nisso onde podemos sentir claramente como Kubrick ainda não deixava sua técnica hiper afiada guerrear contra a essência de seus filmes cada vez mais intrínsecos, daqui em diante, ao poder extremista do ótico, sendo que já conseguia tratar neste seu segundo grande filme a modulação do tempo das suas maravilhosas sequências filmográficas que exclamam o que elas são por si só, tal qual outros inúmeros trabalhos de incrível refinamento dos seus colegas hollywoodianos da época de ouro e prata sobre os mais diversos temas e mantos, enclausurados em sonhos de grandeza artística e descobrindo na luta contra estúdios estarem num legítimo campo de guerra.

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  • Crítica | Assim Estava Escrito

    Crítica | Assim Estava Escrito

    Kanye West é um gênio. Ele faz parte da elite das celebridades norte-americanas, e como poucas consegue captar o que significa a ascendência social. O que fazer com toda essa influência, West conseguiu sintetizar um bom bocado dessa responsabilidade no ótimo My Beautiful Dark Twisted Fantasy, disco de 2010. Nele, boa parte da dinâmica da ambição que fizeram de músicos e atrizes as celebridades que se transformaram é destrinchada em uma dúzia de faixas a investigar as entranhas de quem flui o predomínio cultural do ocidente. Quanto custa o poder e o que é preciso ser e fazer para mantê-lo é algo que exclama de todas as faixas do álbum, porém, talvez seja a terceira canção que mais se destaca no contexto ideológico do trabalho do compositor: Power. Nas palavras do próprio: “Quando eu penso em competição, é como se eu tentasse criar contra o que já foi criado. Eu penso em Michelangelo, Picasso, nas pirâmides… É por isso que eu trabalhei por 5 mil horas numa música como Power”.” É como se o próprio cara, indiretamente ou nem tanto, edificasse e se pusesse num pedestal de influência e adoração onde se considera digno de singular louvor e admiração. A questão é que dos Kanye Wests o mundo nunca sentiu falta.

    Num desses pedestais onde também se penduram os barões, ou como eram chamados antigamente, os figurões (“big shots”) de Hollywood, as inúmeras Xanadus das grandes celebridades da indústria (fazendo-se aqui alusão a icônica mansão de Charles Kane), onde os magnatas escondem sua mortalidade, seus vícios, suas fraquezas e tudo aquilo que não cabe na glamourização de suas vidas de holofote e vestidos e ternos de grife, o esnobe produtor de cinema vivido por Kirk Douglas, na atuação-chave da lenda, expulsa de seus domínios, aos gritos e empurrões, uma delicada atriz sob a fúria de um homem que sente seu império dos sonhos desmoronar com a presença de uma realidade cara e pesada, por demais, em suas entranhas. Nisso, a mulher sai aos prantos, passa por aquelas pesadas portas confidenciais, entra em seu carro e sai em disparada para longe dali. Traindo-a, seus nervos à flor da pele fazem com que ela perca o controle, e o veículo rodopia, fazendo com que o carro antes um símbolo de luxo e segurança passe a ser o convés lacrado da sua ruína.

    Assim Estava Escrito (The Bad and The Beautiful, 1952) ganha sua metáfora perfeita nesta cena bem forte desse magnífico suspense dramático do versátil Vincente Minnelli, ou seja, um compêndio de personagens em conflito e choque permanentes nas condições selvagens que numa primeira vista, no impacto de toda a glória diária que essas entidades culturais são banhadas, simbolizam senão o amparo, o sucesso, o prestígio doce e inquestionável que a ficção oferece nesse universo do make believe, sendo que ao mesmo tempo as conduzem as agruras, a desgraça, desespero, culpa, danação e a um possível avesso a tudo aquilo que aquela terra alcançada por meio de tantos jogos de interesse e traição prometia. A morte, e até algo pior que ela: O esquecimento. Se Crepúsculo dos Deuses eternizou no que muitos consideram infilmável o lado mais perverso e insano da fama, o filmaço de Minnelli é uma carta de amor e ódio tão poderosa quanto (e para muitos críticos, consegue ser ainda mais cruel) a todo um glamour fundado e alimentado na luxúria pelo sucesso e infundado por todo o resto, afinal, onde todos são alguém, não há nada além de vencedores e perdedores.

    A bem da verdade, Assim Estava Escrito mostra-se como uma junção substancial do clássico de Billy Wilder mencionado acima com Cidadão Kane, duas obras-primas fundidas em boa parte daquilo que ronda o perfil de um homem pérfido, seu destino e os relatos de quem convivia sob o seu poder de sedução e (auto) destruição (escrachado aliás não apenas nos vários momentos de ira descabida que Douglas, num exímio trabalho de ator no limite do over, parecia expelir da alma a cada repente nervoso de um homem sem escrúpulos junto as almas submetidas a seu ego descomunal). Minnelli consegue captar amiúde este ego e uma soberba generalizada em cada ação personificada no drama através da suntuosidade das mansões hollywoodianas numa reafirmação belíssima de época merecidamente laureada pelo Oscar, através de uma dezena de peles de animais desfilando pra cá e acolá, pelos diálogos sensacionais do roteirista Charles Schnee, vários marcantes inclusive na história do cinema, mas principalmente atinge a sensação de pessoas vivendo em constante estado de impunidade e onipotência por construir um manifesto do poder e de suas consequências numa perfeita, desumana e perpétua atmosfera de ressaca e dopamento.

    Um estado de sonho se transformando em pesadelo e num ritmo ininterrupto, como só. É como se tudo fosse tão empapado, embriagado e convertido por aquele poder discutido na música de Kanye West que o único jeito de capturá-lo fielmente através da lente de uma câmera, no aspecto mais substancial do mesmo, seja embriagando-se também, junto de todos, e deixando que o luxo e as sombras da mise en-scène cuidem do resto. No mais, Minnelli fez no final da era de ouro dos grandes estúdios um dos grandes tratados filmados sobre a irreversibilidade de um destino. Entre outras tantas coisas, sobre o que não se pode mudar mais, sobre o carro da atriz que não consegue inverter seu caminho rumo a rota de colisão inevitável. Também é acerca de um fatalismo invisível e que opera a conta gotas, e pouquíssimas vezes tão bem-sucedido ao integrar a beleza trágica de um conto preto e branco sobre um universo que só é colorido, muitas vezes, graças a magia do cinemascope.

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  • Crítica | Spartacus

    Crítica | Spartacus

    Spartacus é um ensaio frágil sobre as possibilidades de um épico formalista. E quando me refiro a isso, quero ascender a importância da forma, da escala, das dimensões de um visual, e não necessariamente das dimensões da história, de um estilo de direção ou atuação. Stanley Kubrick tenta malabarizar tudo isso por mais de três horas, mas a forte materialidade desse épico americano (sobre Roma) fala mais alto. Do império icônico à beira da bacia do mediterrâneo onde um escravo, um gladiador execrado lidera uma revolução política, nascem as mesmas intenções que permeiam Ben-Hur (1959), Cleópatra e Jasão e os Argonautas (ambos de 1963), com todos deixando a ação histriônica e a reciclagem da iconografia desse simbolismo ultraclássico falar mais alto, gritar na tela e nas caixas de som, em detrimento de se alcançar um frescor narrativo nunca antes visto, ou ao invés de escalonar o poder da palavra, é quisto focar quase que puramente no poder de um símbolo histórico e do que se pode extrair visualmente disso, nada muito além. Épicos lidando com sua farta energia de forma unilateral, recreativa com a nossa visão e barulhenta aos nossos ouvidos.

    Esse texto portanto não vai contra o Épico e a favor das pequenas histórias (Morte a Ben-Hur, longa vida a nouvelle vague!), não, mas cobiça reconhecer suas diferenças e grandezas e unificá-las num exemplo que parece ser um dos mais acessíveis: A trilogia O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. Três Épicos ambiciosos pelas imagens e a glamourização da ética e da antiética, da corrupção e da criminalidade de uma forma nunca antes vista, com o fotógrafo “rei das sombras” Gordon Willis dando o tom da construção visual do universo dos Corleone, mas num paralelo exato ao poder de uma narrativa revolucionária, de um jogo de palavras tão forte e inesquecível quanto o visual, e com personagens tão complexos entre si quanto um ângulo dourado de câmera muito bem planejado. Essa trilogia e tantos outros exemplos de dramaticidade pontual se configura, então, feito um verdadeiro e maiúsculo Épico, tratando-se (na sua concepção e na nossa interpretação) de um Épico completo, tendo a sua epicidade presente e vibrante em todos os aspectos de uma grande (e absoluta) experiência cinematográfica. Agora, vamos falar do outro lado da moeda. Vamos pensar Spartacus.

    O ano era 73 a.C, e o império romano estava consolidado, vencendo meio mundo de batalhas com tecnologia e estratégia militares ímpares. Criou-se, então, em ordem de inúmeras desigualdades sociais, uma legião de escravos normalmente feita por todos aqueles perdedores das guerras que Roma venceu (estimativas modernas sugerem que, na época, havia um escravo para cada três pessoas livres, destinados a serem servidores domésticos, escravos (as) sexuais ou, como no caso do lutador em questão, gladiadores). Kubrick parece tentar traduzir numa gama de cores saturadas e situações emocionantes e frívolas toda aquela tensão social, relatando o destino de personagens relacionados com base numa história só e numa narrativa simples e humilde que de revolucionária tem só a casca, mas muito bem amparado por uma parte técnica impecável (talvez seja essa então a maior contribuição dessa Hollywood mais nababesca, sempre revolucionando a técnica dos seus espetáculos mas deixando-se cegar facilmente por todas as fascinações que a tecnologia lhe traz).

    A visão do cineasta parece ter certa dificuldade em equilibrar a história de proporções bíblicas com uma narrativa realmente forte, que costure todas questões subjetivas e explícitas de um arco histórico tão notório para com um cinema americano que sempre se apropria da identidade de outras culturas. Sente-se que Kubrick sabe a fantasia que deve mostrar, mas não o que está abaixo dela, numa abordagem por vezes superficial dos clássicos tempo romanesco – algo tão diferente do ótimo Barry Lyndon, mas que viria anos depois. No filme protagonizado por outra lenda, o ator Kirk Douglas e um elenco de peso atemporal, nota-se também como Spartacus na sua reconstituição histórica chega com quase nenhum(a) personagem negro ou abertamente gay, algo completamente mentiroso ao meio escravocrata e diversificado daqueles idos, caso o realismo estivesse realmente ligado a visão de Kubrick para a jornada desse herói revoltado – um espécime de William Wallace do filme de Mel Gibson, mas sem tanto ufanismo patriótico esguichando a cada frame do filme mais naturalista, sujo e corajoso e menos tecnicista e carnavalesco que Coração Valente termina sendo.

    Ora, é claro que os sensores de 1960 eram bem mais rígidos à produção artística de cinquenta, sessenta anos atrás, o que justamente impediu o roteiro de Dalton Trumbo – primeiro filme a ser creditado aós entrar na lista negra do macartismo – em Spartacus de imprimir uma cruel realidade social, fazendo-o apelar para uma releitura mais apoteótica e aventuresca de um período longo e bem conturbado da história da humanidade. De acordo com o próprio Kubrick: “Foi o único dos meus filmes sobre o qual não tive controle total”, batia no peito o cineasta meio que tirando seu cavalo da chuva sobre o que o filme acabou tendo de bom, e de questionável. Corta agora pra 2015.

    Outros tempos, as mesma histórias, claro. Chega George Miller com Max Mad: Estrada da Fúria, assumindo de vez e sem vergonha ou pedantismo nenhum toda a carga de formalismo que um épico de Hollywood pode ostentar, sem perder sua pose e a sua capacidade de reformulação de fórmulas, como a jornada do herói onde a Furiosa de Charlize Theron está inserida, aqui revirada e posta em cheque pelo ambiente caótico da personagem. Reparem que Miller ao contrário do Kubrick de Spartacus não usa em momento algum esse formalismo como fim absolutista, mas como meio de manobras narrativas dramáticas para se extrair desse quarto Mad Max que muitos podem acusar de puramente visual, algo mais e maior que apenas outra mise en-scène grandiloquente. Talvez seja isso que faltou e ainda falta para outros épicos de grandes escalas e sons retumbantes: Algo a mais.

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  • Noir | Um guia para assistir aos filmes de detetive

    Noir | Um guia para assistir aos filmes de detetive

    Noir Um guia para assistir aos filmes de detetive

    Volta e meia surgem ciclos temáticos dentro da história do cinema norte-americano. Iniciando com os monstros da Universal, faroestes dos anos 1940 e 1950, filmes de ficção científica dos anos 1950, a era dos épicos dos anos 1960, o cinema de contra-cultura dos anos 1970, os brucutus do cinema de ação dos anos 1980, e a atual safra de filmes de super-heróis dos anos 2000.

    Porém, entre esses temas, um dos mais reverenciados é o noir dos anos 1940 e 1950. Considerado um dos grandes sub-gêneros dos filmes policiais, o noir surgiu na literatura nos 30 e conseguiu ser transposto para o cinema com maestria pelos melhores diretores e roteiristas dos anos 40 e 50. O ScriptLab esmiuçou os principais elementos de um filme noir, sendo eles o contexto, a escuridão, o fatalismo, voz off e flashbacks que nem sempre são necessários, o protagonista falho, e, principalmente, a dama fatal.

    Munido dessas informações, elaborei uma lista com os 20 filmes mais importantes e/ou marcantes do gênero em ordem cronológica para quem deseja se aventurar pelo cinema noir. Lembrando sempre que pode haver algum título importante que deixei passar.

    1941O Falcão Maltês (The Malthese Falcon, 1941)

    Escrito e dirigido por John Houston e baseado no livro de Dashiell Hammett, O Falcão Maltês é talvez o mais emblemático entre os filmes noir que ajudou a estabelecer o gênero. Humphrey Bogart é o detetive particular que aceita pegar o caso do desaparecimento da irmã de Mary Astor. Após seu sócio Jerome Cowan aparecer morto, a investigação se desdobra em algo muito maior que envolve uma relíquia rara de valor incalculável.

    double_indemnityPacto de Sangue (Double Indemnity, 1944)

    Dirigido por Billy Wilder, este se tornou um dos noir mais memoráveis ao inverter a estrutura do gênero. Fred Macmurray, detetive de uma companhia de seguro, se une a Barbara Stanwick, esposa de um homem rico, na tentativa de assassiná-lo e fraudar a investigação para ficar com o dinheiro.

    laura-movie-poster-1944-1020143698Laura (Laura, 1944)

    Com Vincent Price no elenco, Laura narra a clássica investigação do assassinato da personagem título, interpretada por Gene Tierney, conduzida pelo detetive Dana Andrews, que não só descobre que ela está viva como se apaixona por ela.

    lost_weekend_xlgFarrapo Humano (The Lost Wekeend, 1945)

    Outro filme dirigido por Billy Wilder, Farrapo Humano é um noir que foge da trama policial ao focar no drama e na condição humana de Ray Milland, um alcoolatra que não consegue largar o vício enquanto tenta ser salvo por Phillip Terry, seu irmão e Jane Wyman, sua namorada, enquanto quase tem um caso com Doris Dowling. Destaque para as cenas do bar com Howard da Silva.

    Detour_(poster)A Curva do Destino (Detour, 1945)

    Mais um noir de drama, A Curva do Destino apresenta Tom Neal, um músico de jazz que viaja pelos Estados Unidos de carona e assume a identidade do motorista que morreu na sua frente. Após se envolver com Ann Savage, uma mulher que lhe dá outra carona, a relação dos dois termina mal.

    big-sleep-movie-poster-1946À Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946)

    Considerados por muitos como um dos melhores filmes noir, À Beira do Abismo é baseado no livro de Raymond Chandler e tem a direção de Howard Hawks. O detetive particular Humphrey Bogart investiga o caso de extorsão contra a filha mais nova de um rico industrial enquanto se envolve com a sua irmã mais velha, Lauren Bacall.

    The-Killers-PosterAssassinos (The Killers, 1946)

    Baseado em uma história de Ernest Hemingway, a morte do personagem de Burt Lancaster desencadeia uma investigação por parte do detetive de uma agência de seguros, e acaba por revelar como se deu um grande crime no passado e o envolvimento de Lancaster com Ava Gardner.

    blue_dahliaDália Azul (The Blue Dahlia, 1946)

    No filme escrito por Raymond Chandler e dirigido por George Marshall, Alan Ladd é um ex-piloto de guerra que se torna o principal suspeito de matar Doris Dowling, sua infiel esposa, que tem um caso com Howard da Silva, o dono da boate Dália Azul. Para provar a sua inocência, tem a ajuda de Veronica Lake, a ex-esposa do dono da boate.

    20319302Gilda (Gilda, 1946)

    O filme dirigido por Charles Vidor que consagrou Rita Hayworth é outro noir que foge às tramas policiais. Gleen Ford é um apostador que abandona o vício do jogo e vai trabalhar para o dono de um Cassino em Buenos Aires. A sua vida vira ao avesso ao ver que seu chefe voltou de viagem casado com Rita Hayworth, antigo caso seu.

    the-lady-from-shanghai-movie-poster-1948-1020414234A Dama de Shanghai (Lady From Shanghai, 1947)

    Escrito, dirigido e protagonizado por Orson Welles, se tornou um dos grandes filmes da sua carreira com todos os elementos noir. Welles é um marinheiro que se apaixona por Rita Hayworth e aceita fazer parte da equipe do navio de seu marido, Everett Sloane, acabando por se envolver em uma trama de assassinato.

    b70-9896Fuga ao Passado (Out of The Past, 1947)

    Robert Mitchum está refugiado em uma pequena cidade, até ser encontrado pelo capanga do seu antigo chefe, Kirk Douglas, para acertar as contas sobre um serviço não realizado do passado, que envolvia a bela Jane Greer e uma alta quantidade de dinheiro. Participação de Rhonda Fleming.

    Francesco-Francavilla-The-Third-Man-Movie-Poster-2015O Terceiro Homem (The Third Man, 1949)

    Outro grande noir sobre espionagem na Europa pós-Segunda Guerra Mundial. Dirigido por Carol Reed, Joseph Cotten é um escritor americano que chega a Viena para encontrar um antigo amigo, interpretado magistralmente por Orson Welles, que foi dado como morto e tenta por todos os meios continuar assim.

    sunset-boulevard-movie-poster-1950-1020142705Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950)

    Outra direção de Billy Wilder, Crepúsculo dos Deuses é um dos filmes mais marcantes da história do cinema fazendo referência à própria indústria em um grande noir de drama humano. William Holden é contratado para reescrever o roteiro de um filme por Gloria Swanson, em uma interpretação memorável como uma ex-estrela do cinema mudo que caiu no ostracismo. Participação memorável de Cecil B. DeMille e Buster Keaton como eles mesmos, além de Erick von Stroheim.

    InaLonelyPlace_US_30x40No Silêncio da Noite (In A Lonely Place, 1950)

    Uma mistura de policial e drama, Humphrey Bogart é um roteirista violento que vive no mundo de glamour de Hollywood. Suspeito de assassinato, ele é inocentado por sua vizinha, Gloria Grahame, e os dois acabam se envolvendo até que a sua difícil personalidade complica a relação.

    the-asphalt-jungle-movie-poster-1950-1020190945O Segredo das Joias (The Asphalt Jungle, 1950)

    Em outro filme dirigido por John Houston e com Marilyn Monroe fazendo uma pequena participação, O Segredo das Joias é o típico filme de assalto onde se mostram todas as etapas de preparação, além do roubo. Conduzido pela mente criminosa do recém-saído da prisão Sam Jaffe, conta com Sterling Hayden no elenco.

    cry-danger-movieGolpe do Destino (Cry Danger, 1951)

    Nesta obra dirigida por Robert Parish, Dick Powell vive um homem inocente que sai da prisão perpétua após uma testemunha ajudá-lo com um álibi, mas que na verdade quer informações sobre um assalto que Powell não cometeu. Durante a vingança contra quem o colocou na cadeia, tentam incriminá-lo novamente enquanto se envolve com a bela Rhonda Fleming.

    1953 - The Big Heat 2Os Corruptos (The Big Heat, 1953)

    Em outro grande noir, Os Corruptos é dirigido por Fritz Lang e conta a história de Gleen Ford, um detetive que ao investigar a morte de um colega se vê lidando com criminosos que comandam o próprio departamento de polícia, sendo um deles Lee Marvin. Após ter a sua família assassinada, ele busca justiça ao lado de Gloria Grahame.

    killing_xlgO Grande Golpe (The Killing, 1956)

    O Grande Golpe é outro dos filmes noir diferentes. O terceiro longa-metragem dirigido por Stanley Kubrick é o típico filme de assalto que lembra bastante a estrutura de O Segredo das Joias. Um bando de vigaristas é liderado também por um ex-presidiário, Sterling Hayden, que planeja um grande assalto durante uma corrida de cavalo.

    large_i2gJBlr01BZiZb5b5TOJudc4nv6A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958)

    O filme que tem a melhor cena de abertura da história do cinema, A Marca da Maldade, dirigido por Orson Welles, é também o último dos filmes noir. Charlton Heston e Janet Leigh são um casal composto por um mexicano e uma americana que vivem na perigosa fronteira entre os dois países, em uma perigosa investigação conduzida por Welles sobre uma bomba que explodiu um carro.

    film-noir-chinatown-1974-movie-poster-via-professormortis-wordpressChinatown (Chinatown, 1974)

    Considerado pós-noir, o filme dirigido por Roman Polanski é uma homenagem aos filmes de 20 e 30 anos anteriores, com todos os elementos do noir, inclusive com a presença de John Houston. Jack Nicholson é um detetive particular que investiga o caso de uma mulher traída, e que acaba se revelando algo muito maior. Com a ajuda de Faye Dunaway, ele enfrenta uma trama política e de assassinato sobre a seca na Califórnia. Leia a crítica do filme aqui.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.