O começo do longa de estreia de Nate Parker como diretor remete ao passado ancestral africano dos escravos que embarcaram nos Estados Unidos para servir aos homens brancos que se consideravam uma espécie e raça superior. A história é contada pelo jovem Nathaniel, um menino escravo que vê seu pai ser caçado pelos escravagistas unicamente por que se atreveu a roubar comida para sua família. Após o desaparecimento do mesmo, o menino passa a trabalhar na casa dos patrões, tendo acesso a biblioteca da casa, ainda que tenha negada a leitura dos livros mais rebuscados, restando para si a Bíblia Sagrada, material que seria a base para toda a sua vida.
O menino torna-se homem, e Nat (Parker) passa a ser um pregador em meio aos seus irmãos de servidão obrigatória. Aos poucos, o espírito arredio que o protagonista tinha dá lugar a temperança, domínio próprio, mansidão e aos demais frutos do Espírito Santo, seus passos passam a ser os que a religião determina para si e seus atos condizem com a fé que professa, inclusive levando em conta a pecha de que é melhor viver sob as linhas de amor, tolerância e pacifismo, mesmo que esteja sendo ele, sua família e companheiros escravizados.
A busca por transcender a questão de raça inferior faz com que Nathaniel enxergue seu patrão Samuel Turner (Armie Hammer) como um homem benevolente e um sujeito que trata bem os seus criados. Os eventos tratam de mostrar que não existe qualquer boa vontade por parte do homem, só há um pequeno traço de humanidade que o faz ser um pouco menos irascível com os que prestam serviços para si. Uma vez que Sam tem a possibilidade de lucrar e de reaver o poder que sua família perdeu há tempos, não há grandes hesitações de sua parte, ainda que sua personagem carregue um conjunto de nuances que garantam a ele uma humanidade normalmente não vista em personagens antagonistas, reiterando a ideia de que não existem monstros, e sim homens que cedem ao sentimento mesquinho e mal.
As cenas de tortura de provações dos personagens negros vão se tornando mais cruéis e viscerais gradativamente, acompanhando o rancor e arrependimento pelo qual sofre o protagonista. A medida que percebe os horrores que os donos dos escravos implicam em seus irmãos mais fica difícil manter qualquer senso de civilidade e tranquilidade. Aos poucos, quietude e obediência se tornam atitudes teatrais, transformando-se em indignação e raiva pela crescente de flagelos amputados a Nathaniel e aos seus.
Tudo o que o pastor não aprendeu nos livros que lhe foram proibidos em sua mocidade ele aprende na prática. A sucessão de desgraças vem por meio de uma provação de fé. Até o sorriso do pregador muda, sendo esse mais um artifício de fingimento. A trajetória do agora líder passa pelos mesmos clichês que duas outras figuras históricas, resumindo em si a fase pacifista de Martin Luther King e a ferocidade Malcolm X.
Os derradeiros 30 minutos mostram o conflito, variando entre os planos abertos que contemplam as paisagens da Virgínia ao mesmo tempo em que mostra o embate físico e ideológico entre opressor e oprimido. Parker conduz as cenas com uma estranha harmonia entre a sanguinolência e a leveza, usando os quadros com os mortos na guerra como símbolo artístico e poético, sem banalizar a violência, criminalizando os atos dos brancos egoístas sem fazer deles demônios sem alma, e sim homens que se deixaram corromper por sua ganância extrema, ao ponto de fazer o outro de sua espécie um objeto.
O texto de Parker e Jean McGianni Celestin possui um sem número de riquezas, tanto na gravidade e aprofundamento da temática também levantada em 12 Anos de Escravidão, ainda que levante alternativas maiores do que a luta por direitos por caminhos sem conflito. O modo como o credo é retratado varia entre o lúdico e o pragmático, e a digestão desses sentimentos feito por Nat soa rica, pois seu ethos apesar de aparentar docilidade é bastante dúbio e metamórfico, variando de acordo com as necessidades que ele julga serem prioritárias.
Os closes ao final de O Nascimento de Uma Nação mostram uma tragédia sacrificial, de um homem que não negou o clamor de seu povo e abraçou a sua missão, aceitando que as baixas de guerra poderiam garantir uma possibilidade de futuro minimamente justa para seus filhos, netos e a geração vindoura. A união entre imagens belas e uma trilha sonora certeira produz a sensação de empatia natural, que tem seu ápice na cena final, onde o homem que buscou a santidade em grande parte da sua vida finalmente se aproxima do paraíso que sonhou para os bravos de sua raça, tendo essa catarse espiritual como dádiva, além de gerar a gênese de uma nova briga revolucionária, que causaria a mesma abolição da escravatura que o filme de 1915 demonizava e que aqui é justamente glorificada.
Achei mais rico que o 12 Anos de Escravidão. Tem uma aridez mais profunda e uma poética mais forte, na medida. Achei interessante como foi desenvolvida a figura do feitor do Nat. Entre os donos de escravos apresentados, ele é o mais gentil, porém não hesita quando há uma rebelião e ele precisa fazer de Nat um exemplo, autorizando a violência física. É quase paradoxal porque no início ele até parece ter incomodo com o conceito escravagista, pensei que ele seria um redentor possível na trama mas, mesmo sendo mais ameno, ainda se adequa ao pensamento da época.
Lamentavelmente o filme foi eclipsado pela polêmica. Esperar que o tempo faça o filme se destacar. E a cena com Strange Fruit é incrível.