Um filme-ponte. Uma travessia cultural entre nós e eles. Uma cultura de extremos e fanatismos traduzida em filme por um viajante meditativo, na leveza à beira do cinismo com que a história é tratada e conduzida num cangaço sem dono, onde quem late mais alto dita as regras forjadas à bala de rifle traficado. A realidade de Mali, oeste da África, e das situações no eloquente Timbuktu traz à tona sua comparação válida com a brasileira, em lugares onde o toque de recolher e a especulação imobiliária forçam as famílias ao equívoco de ocupar lugares perigosos, e ainda sob a insegura proteção de facções criminosas, dependentes do véu de uma comunidade dócil, que diante do perigo já se adianta: “Aqui só tem trabalhador!”, garantindo assim, em troca, a proteção das milícias. Da falta de educação a incentivos à valorização igualitária na qualidade de vida de um bairro, ou cidade, surge, em qualquer país, estado ou vilarejo, o relevo perfeito para a alienação tomar conta de um social inteiro.
Predatória por excelência, a manipulação de um senso comum traz consigo um poder de ilusão muito semelhante àquele que o cinema usa para outros fins, por outros meios: o da desconstrução da realidade a favor de tornar real uma ilusão, mediada por doutrinas pré-estabelecidas antes, com essa inversão de visões geralmente posta acima do bem e do mal. Em doses simpáticas, isso é arte. Em outras, é religião. Esvaziando a garrafa, a alienação sobe e vira miragem, passando a visar a salvação e a segurança que o poder de fato usa para se manter, feito obelisco, em tempos de protestos que não acabam mais.
O poder de reinvenção e o poder da alegria podem ser naturais ao brasileiro, roubado e masturbado ao mesmo tempo pelo seu Governo. Mas são avanços culturais de qualquer raça que, graças ao registro justo e realista (ainda que a favor da ficção) de uma câmera de Cinema, nota-se em Timbuktu que aprendeu a ser feliz apesar de tudo. Um todo resumido a condições e desafios limites, tanto ambientais quanto os impostos por quem transforma esse ambiente numa peleja de convivência selvagem, numa crise ao homem atenuada senão por sua família – só por ela, e no máximo por seus conterrâneos quando o assunto é regional, afinal. Herdeiros de seus abraços e companheiros de seus passos. Estamos falando de um Cinema de calor humano, que parte da essência para chegar na estética, e não o contrário, sendo essa uma estética naturalista ao contexto africano onde seu apelo universal começa, termina e se desenvolve no seio da Terra.
Mas protesto só existe em democracia. Só não ocorre quando não há um cano gelado mirando a bandeira, quando cães e seus rifles absolutos só respeitam a casa de Deus, os templos enquanto símbolo, e não os cidadãos, temerosos até o espírito. A ponte entre esse temor e nós, o público, na nossa contemplação passiva de quem não conhece as rotinas da extrema opressão espalhada pelo mundo, é senão um trecho, percalço de uma jornada longa, mas livre o bastante para poder nos impressionar e informar. De fato, não há mesmice ou drama o suficiente para ilustrar as histórias que o deserto abriga, na narrativa de destinos conjuntos, e na sobrevivência de nômades que só não abandonam suas tradições, pois foi só o que lhes sobrou para se apegar, sem contar a fé em si mesmo.
No que é elo e comparativo, o filme de Abderrahmane Sissako prova que a consciência pessoal é mais poderosa que as crenças coletivas, submetendo o indivíduo e uma comunidade inteira a proibições éticas baseadas em uma moral imbecil e abusiva (líderes religiosos cagando regras e fazendo valer suas leis num cangaço islâmico), alegando que a integridade de um pode representar a liberdade e a reputação de todos que se opõe a essa alienação autoritária. Quando dois homens brigam por uma vaca, um morre e a vida do outro gira de ponta-cabeça junto do destino de sua família, nada está perdido, pois tudo ainda está para ser ganho, incluindo a liberdade de expressão. E aí entra o Cinema, veja só: catalisador da imagem em movimento, dando dinamismo a um mundo onde os direitos humanos só existem na doce ficção. Mágico.
A arte não consegue desorientar ainda mais o que o real já torna desorientado. Assim sendo, é como se o terceiro mundo, tão festejado por Glauber Rocha e estudado por Kiarostami, fosse o único cosmo que existe abaixo do manto terrestre, e o filme certamente não poderia acertar mais em sua perspectiva, nos tornando assim, e só assim, reféns da ótica de limitações culturais que um povo pode-se ver obrigado a exaltar, sem jamais conseguir abandonar essas restrições, por gerações a fio. “Se não o agrada, não olhe”, diz a mulher ao homem que a manda cobrir seu rosto, e é isso que o mundo faz a essa gente sem paz: Não olha, ignora, exceto e pelo menos quando expostos numa tela de Cinema, numa recriação de sensações.
Em certo momento de Timbuktu, nome da cidade sitiada por meia-dúzia de extremistas em nome do deus Alá, a meditação sobre as injustiças sociais dá lugar a perícia sobre o que move uma gente esquecida, nascida numa terra maldita que parece ser, eternamente, palco de conflitos em ciclos de catástrofe, secando as lágrimas daquela gente que a ONU gosta de falar que ajuda, buscando sozinhos um futuro melhor – quem sabe, com o direito de cantar. Não há denúncia, nem apologia, mas tem a investigação da ética do poder (no caso, o poder municipal), e da aceitação dessa ética por aqueles a quem foi dito, desde sempre, a aceitar os abusos desse poder (no caso, o povo da cidade).
E tal como em Onde Sonham as Formigas Verdes, de Werner Herzog, filme cujos ecos soam graves em Timbuktu, tudo muda e passa sobre a face da Terra neste conto moderno e universal, com leve indícios de evolução e fortes traços de retrocesso social – por mais que saibamos que a balança é injusta. Mas nem mesmo a arte, nem a tecnologia, a violência, as leis ou a religião salvam quem não vê a salvação em si mesmo, como bem atestam algumas atitudes do filme, como no ímpeto de uma garota correndo nas dunas do deserto para matar a sede de calor humano nos braços da mãe, numa tenda, no meio do dia, naquela desolação e pobreza; essa dívida da humanidade consigo mesma, que se traduzida em mar, amanhã, será mar doce dessas lágrimas tristes e alegres que hão de transbordar, e brilhar, feito o sol a meia-noite: O impossível há de chegar.