Profecia: Um Toque de Pecado é o que o cinema brasileiro (mais óbvio que o grego) e o grego (mais cínico que o brasileiro) já querem ser, e serão, num futuro harmônico ainda inatingível. Violento, questionador, equilibrado, realista, surreal, crítico e irônico. O vencedor do prêmio de Melhor Roteiro em Cannes 2013 é o relato antagônico da consciência humana do século XXI, dividida, fragmentada, globalizada, cansada e atormentada, senão, por si mesma, pelo mundo complexo que criamos e que, é claro, não sabemos como mediar. Daí a mediação de Jia Zhang, cineasta chinês que dirige o filme com a precisão de desenhar uma tatuagem na espinha dorsal de um rei, cheio de simbologias e expoentes de uma única imagem, conectados por um caráter de identificação universal, manchados ora de vermelho-sangue, ora de matizes neutras, como só o nosso mundo pode criar, acima das barbáries de qualquer outro ficcional. É o cinema europeu de Luis Buñuel, antes comportado e certinho, agora em nível irreversível de causas e consequências. Bem-vindo ao mundo real deste grande filme, onde a ficção só existe se for ainda mais inacreditável.
De dinastias honoráveis engolidas por um capitalismo predatório, a China atual inspira o desencanto, o ateísmo diante de tudo e de todos em relação a um sistema que não consegue mais se sustentar no lombo de seus cidadãos constantemente desesperados, e quem mora lá sente isso na pele, no cotidiano implacável de um país fechado e sedento por oposições, cheio de radicalismo. Entre os limites do necessário e da referência, da coincidência existencial de outro grande filme asiático – Cães Errantes –, Pecado sustenta-se na corda-bamba deste radicalismo sociopolítico, sob uma máscara apenas social, mas que esconde, máscara debaixo de máscara, a urgência e o grito público de cidadãos à beira do precipício – uma das quatro histórias deixa isso mais do que claro.
Lembra-se de Onde os Fracos Não Têm Vez? Aqui nem o mais forte, nem mesmo o malandro. Então, quem? O que se deve ser para sobreviver num mundo onde tomates na estrada valem mais do que a vida de qualquer um, quando se há mais fome que vida por aí? Pecado extrai o que há de imparcial no certo e errado, ao invés de quaisquer indenizações acerca de bem e mal. Deve ser feito o que deve ser feito; ‘‘go big, or go home”, já diz o ditado americano. É ideia de Walter Salles com roteiro de Iñarritu filmado por Tarantino, mas com um peso e uma relevância ainda não conquistados por nenhum dos três ocidentais, a bem da verdade.
Longos planos-sequência, extremamente convidativos à hipnose. Um bom widescreen muito mais bonito, enquanto profundamente significativo, do que os quadros recentes do exagerado O Grande Mestre; situações inspiradas que Zhang Jia constrói e desconstrói com mão leve e muitas vezes de forma documental; um fôlego linear e a autoconfiança à toda prova do cineasta. Tudo isso quase chega a justificar, quando sob a sintonia do produto final, a ambição sob a qual o filme se apresenta de forma tão contemporânea. Quase, pois se retrai e analisa mais do que explode em suas ações, na maior parte do tempo, guardando o melhor de suas histórias para o clímax de cada uma, que, se não compensa a espera pelo impacto de um Cinema prestes a explodir a qualquer segundo, nos satisfaz com resoluções sem conclusões, de campo aberto a interpretações de cunho o mais variado possível.
A narrativa em blocos eleva as histórias, unidas ou em unidade, ao atestado oblíquo de representações fiéis à realidade dos fatos, mas livres enquanto Cinema. O melhor exemplo é o terceiro conto, sobre a dificuldade em se preservarem a feminilidade e integridade pessoal em meio a conflitos de interesses, filmados aqui na luz e na sombra dos tormentos sociais dos excluídos, nas metrópoles imprevisíveis, onde o medo e a violência são a lei. Quando uma cobra cruza o caminho de Xiao Yu (a espetacular e pouco conhecida Zhao Tao, esposa de Zhang e melhor atuação e personagem do filme), não temos dúvida de que, para ela, algo pior está por vir.
Um Toque de Pecado é isso (e será muito mais ao longo dos anos, ao longo de outras críticas): o grito de alguém que vê demais e pode fazer de menos. Retrato nacional e universal ao mesmo tempo, extra-diegético e tridimensional em tudo que expõe e calcula, com cuidado e muita ambição e vaidade; pecados homéricos de um cineasta orgulhoso por sua habilidade natural.