Tag: cinema chinês

  • Crítica | Hua Mulan

    Crítica | Hua Mulan

    O longa Mulan –  no original Hua Mulan – de Jingle Ma e Wei Dong começa com uma cena estranha, com um homem de cabelos longos e esvoaçantes, no alto de um acampamento militar, aproveitando a brisa que corre o cenário. Logo se percebe que aquele não é um lugar isolado, as lideranças chinesas são avisadas do infortúnio, e soldados chineses são flechados.

    O cenário da China da antiguidade varia entre o melodrama da casa de Hua Mulan (interpretada por Wei Zhao), e o cenário dos servidores militares. As armaduras e os cenários de treinamento são muito bem feitos, transpiram fidelidade, e até por serem muito reais , não carregam o caráter épico do qual é conhecido o Mulan de Tony Bancroft e Barry Cook dos estúdios Disney. A lenda presente na Balada de Mulan é bem diferente das versões contadas no áudio visual, mas é difícil não estabelecer uma comparação com outra obra tão viva na memória.

    Não há muita preparação sobre os preceitos trabalhados na jornada da mulher que se põe como um homem, especialmente no que toca o disfarce dela. Dá para se notar facilmente que é ali uma mulher, querer fazer acreditar que é um alistado e não uma alistada. Fora isso, incomoda também o tom melodramático do filme. Para uma historia que busca desconstruir mitos de sentimentalismo ligados ao gênero feminino, peca-se  na tradução.

    As batalhas não são mal coreografadas, de todos os momentos certamente são os que há mais esforço para parecerem reais. Irrita um bocado a utilização de Slow Motion, fruto talvez da popularização de 300 de Zack Snyder lançado três anos antes desse, mas em boa parte dos combates corpo a corpo, as armaduras não parecem meramente fantasias de Halloween. A fotografia de Tony Cheung também ajuda um pouco a compor o quadro bélico.

    A historia é bem diferente do que se conhece no Ocidente, mas também não contem alguns dos elementos conhecidos do conto chinês, como a forte presença da família da personagem-título. Havia expectativa de que o longa tivesse um pouco da estética Wuxia, que permeou filmes como O Tigre e o Dragão, O Clãs das Adagas Voadoras e Herói, mas não houve essa influencia clara, ao menos não muito. Aparentemente há uma preocupação dos cineastas em ser palatável para o público dos Estados Unidos, embora sua linguagem não seja tão universal.

    Jornada de doze anos de guerra, desejo de voltar para encontrar seus familiares se torna um bom mote para Mulan sobreviver, e esse talvez seja o aspecto mais semelhante entre esta obra e o filme animado. Apesar  de pesar um pouco a mão no melodrama, Ma e Dong conseguem equilibrar bem o drama, apresentando uma historia de guerra e superação, que se vale dos clichês de maneira inteligente, embora não seja exatamente econômica.

  • Crítica | Fora do Rumo

    Crítica | Fora do Rumo

    Confesso aqui que há bastante tempo não assistia um filme de Jackie Chan. Confesso também, que durante o fim da década de 90 e o início dos anos 2000 eu assisti praticamente tudo que o ator chinês lançou. Teve muita coisa boa, mas teve uma parcela maior de filmes ruins. Chan acabou se prendendo em uma fórmula que foi gradativamente se esgotando e fazendo com que seus filmes fossem perdendo a relevância. Mesmo as incursões no cinema americano, quando o ator fugia um pouco da sua zona de conforto, foram rendendo somente filmes indignos ao carisma e ao empenho do ator recentemente oscarizado pelo conjunto de sua obra.

    Nesse Fora do Rumo, Chan interpreta Bennie Chan, um detetive que vê seu parceiro amarrado em uma bomba-relógio cometer suicídio para salvá-lo. Nove anos depois, Bennie continua com a lembrança viva do seu grande amigo, uma vez que se desdobra para cuidar da filha dele (interpretada por Li Bingbing) e para finalmente conseguir incriminar Victor Wong, o político mafioso que ninguém acredita ser um criminoso. Porém, quando a filha de seu parceiro se envolve com a máfia de Wong, Bennie precisa encontrar o vigarista Connor Watts (Johnny Knoxville, de Jackass) e levá-lo de volta para Hong Kong. Só que Watts não é um simples golpista falastrão: ele tem informações que podem colocar o político corrupto na cadeia.

    Dirigida por Renny Harlin (diretor de Risco Total e Duro de Matar 2), essa co-produção chinesa/americana/de Hong Kong infelizmente é mais um esquecível veículo para as peripécias de Jackie Chan. O filme é predominantemente um road-movie, mas a frouxa direção do sueco Harlin faz com que a jornada seja um tanto desagradável. Há que se ressaltar também, que há pouquíssima química entre os dois personagens centrais. Um ponto positivo do filme é a coreografia das lutas. Os 62 anos de idade e muitos ossos quebrados estão pesando contra Jackie. Sendo assim, as lutas foram coreografadas de modo a serem mais cruas e menos acrobáticas, o que representa uma quebra no padrão da filmografia do astro chinês. Existe uma ou outra sequência de ação um pouco mais interessante, mas no geral, nada que empolgue o espectador. Outro problema, é que por vezes o filme dá a impressão de ser um grande vídeo institucional de exaltação à China.

    Chan interpreta um policial íntegro, gentil, bem educado, praticamente assexuado e bonachão, ou seja, o mesmo papel de sempre, porém aparenta cansaço durante boa parte do filme. Johnny Knoxville distancia-se da persona divertida dos tempos de Jackass e aproxima-se muito de um histriônico homem de meia idade chato. Há alguns problemas desagradáveis nos diálogos escritos para os dois protagonistas, pois há uma ausência grave de timing cômico. Fan Bingbing, que interpreta a afilhada do protagonista, não acrescenta muito, pois sua personagem também é de uma construção bem pobre. Winston Chao, intérprete do vilão Victor Wong, até que entrega um bom vilão clichê, uma vez que o interpreta com uma cara de pau que chega a remeter a alguns políticos brasileiros.

    Em resumo, Fora de Rumo é um filme bem ruim que não faz jus à grandeza de seu grande astro e que ainda possui a nota triste do falecimento de seu diretor de fotografia após o acidente com o barco que o levava junto com a sua equipe. Tanto Chan quanto o falecido diretor de fotografia Chan-Kwok Hung (que morreu durante as filmagens deste longa) mereciam mais.

  • Crítica | As Montanhas Se Separam

    Crítica | As Montanhas Se Separam

    As Montanhas Se SeparamNas primeiras cenas do filme As Montanhas Se Separam há a comemoração do ano novo, mas especialmente de entrada no novo milênio. Um período de transição, movimento. De reação perante as mudanças sociais, econômicas e íntimas. Tao (Tao Zhao) dança Go West, do Pet Shop Boys na primeira cena do filme, já conquistando o público com sua tão real alegria. E assim há a aceitação em acompanha-la por três períodos distintos, e como ela reage em relação ao mundo ao seu redor; suas escolhas e criações.

    Zhangke Jia (Em Busca da Vida, Um Toque de Pecado) escreveu e dirigiu essa carta de amor às memórias e aviso realista ao que o mundo pode se tornar. Ainda que trabalhe com a simplicidade, com o íntimo, os temas abordados por Jia são universais e de interesse geral. Apesar da estranheza que se causará em alguns espectadores devido a cenas surrealistas, a força social do filme impressiona por sua despretensão. Ao focar tanto nos personagens e suas histórias, seus dramas, o cenário local e global, por exemplo o domínio britânico sobre Hong Kong. Além de temas como alienação cultural e capitalismo, que seguem como um pano de fundo que rende camadas e mais camadas ao filme.

    Nos primeiros quarenta minutos, antes do título aparecer, temos a vida de Tao jovem adulta. O principal conflito se faz nos dois homens que brigam pelo amor dela, Zhang Jinsheng (Yi Zhang) e Liangzi (Jing Dong Liang). Um deles trabalhador de minas e o outro um empresário, um deles buscando simplesmente estar presente e o outro impressionar Tao com riqueza e seu crescente estilo ocidental. A mensagem é clara. A próxima etapa se faz 15 anos depois. Tao está divorciada e tem um filho que mora com o pai, longe dela, o que passa a carregar como se configuram as relações de gênero da China. No momento final seguimos o filho de Tao, alienado de suas raízes chinesas e em outro país, alienado de sua família, carente; por acaso, seu nome é Dólar.

    A edição do filme trabalha junto com a fotografia para dar a cada época uma diferenciação técnica. Em um primeiro momento temos o aspect ratio em 4:3, então avançamos e surge o 16:9. Na etapa final já é 2.35:1. Em outras questões, a fotografia não busca chamar atenção para si. A câmera se esforça para manter a atenção em determinado personagem, muitas vezes negligenciando o outro em cena. Os motivos podem variar desde atiçar a vontade de interpretação do público até a importância que um tem em relação ao outro. Da mesma forma, as composições retratam o estado emocional, introspectivo e solitário, dos personagens.

    A atuação de Tao é o aspecto mais poderoso do filme. Carrega em si leveza e honestidade. De novo, simples, sendo perceptivelmente uma característica do diretor. E ainda que muitos o pensem, sua falta na segunda metade não torna o filme pior, já que ele já estabeleceu que não é tanto sobre Tao, quanto é sobre os caminhos que trilha.

    As Montanhas se Separam não é sobre as montanhas em si, mas sim sobre a separação. Os momentos chaves que mudam tudo ao redor delas. Pessoas não foram feitas para viver sempre umas com as outras, nem o mundo foi feito para ser igual. Ele vai seguir e, possivelmente, irá se render a uma homogeneização cultural. Ainda que, tal como construções clássicas, as memórias e as tradições viverão para sempre na paisagem daquilo que não é mais o que foi. Onde houveram risos e gritos e, principalmente, dança.

    Together – we will go our way
    Together – we will leave someday
    Together – your hand in my hand
    Together – we will make our plans

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Crítica | A Assassina

    Crítica | A Assassina

    The Assassin 1

    Toda a mitologia chinesa, e seu estilo épico e místico, regressa neste bonito e imponente longa-metragem. Dirigido por Hsiao-Hsien Hou, a Antiga China cresce em espetáculo visual, como se tudo em cena dançasse e provocasse o espectador, seja ele ocidental ou oriental, a indagar as motivações dos personagens gradualmente.

    O filme conta a história de Nie Yinniang (Qi Shu), uma assassina que quando criança foi levada de sua terra de origem para longe, sob a tutela de uma freira-mestra que a desenvolve com ensinamentos referentes a artes marciais e furtividade. Ao falhar em uma missão, ela é ordenada a regressar à província na qual nasceu para assassinar um líder político que prometeu casamento um longo tempo atrás.

    E é através deste conflito da protagonista que observamos o filme ser contado. O evidencialismo de seus sentimentos reprimidos, suas tradições e sua atmosfera ao lidar com o ambiente do qual está completamente avulsa, consequentemente o faz insegura. A duração de apenas uma hora e meia de longa-metragem aparenta lentidão e empecilhos de roteiro por demorar a trazer todo o twist. Realmente, demora para toda a estrutura do roteiro fazer efeito e você amarrar os pontos. Talvez, este ponto ficou aquém, se fosse analisar outros métodos técnicos.

    A fotografia é incrível. Toda a beleza está nos grandes planos que registram de maneira fiel o ambiente feudal chinês, a composição de quadros em cenários internos, o movimento de câmeras transpassado pelas cortinas, simbolizando uma interpretação interessante em que há a possibilidade de se analisar o desenvolvimento e a evolução da história dos personagens que são descritos na captação, dentro destes exatos planos.

    As cenas de luta só confirmam a pureza, a leveza e a dança que uma vez me foi transmitida por Herói e O Tigre e o Dragão. Juntamente à insinuante troca de movimentos conduzidos por um toque suave, há ferocidade e ausência de excessos. Tanto no tempo quanto na exposição da força de um ou outro determinado personagem.

    A passagem dos atos soa natural, mas sem tanto brilho técnico. Mesmo a direção se valendo da simples representação visual de quem está em cena, da caracterização da época (provavelmente entre os séculos VII e IX) pelas vestimentas e composição de adereços, o filme se conduz bem, sem apresentar grandes problemas. Possui seu tempo e não se importa em demorar a relevar as reais intenções. Posso ter sido chato ao notar que não houve tanto tempo destinado à personagem principal, mas suas cenas sempre são as melhores, mesmo em silêncio. A cena parece falar por ela e por si, simultaneamente.

    The Assassin funciona como um interessante épico em sua proposta de defesa de personagens principais femininas sem estereótipos e militâncias exageradas, e também trabalha muito bem ao pontuar a linha histórica cinematográfica em relação a um filme chinês de extrema leveza, condução técnica aprimorada e contextual. Junta-se aos leões na floresta e se senta como forte representante do país.

    Texto de autoria de Adolfo Molina.

  • Crítica | Um Toque de Pecado

    Crítica | Um Toque de Pecado

    Profecia: Um Toque de Pecado é o que o cinema brasileiro (mais óbvio que o grego) e o grego (mais cínico que o brasileiro) já querem ser, e serão, num futuro harmônico ainda inatingível. Violento, questionador, equilibrado, realista, surreal, crítico e irônico. O vencedor do prêmio de Melhor Roteiro em Cannes 2013 é o relato antagônico da consciência humana do século XXI, dividida, fragmentada, globalizada, cansada e atormentada, senão, por si mesma, pelo mundo complexo que criamos e que, é claro, não sabemos como mediar. Daí a mediação de Jia Zhang, cineasta chinês que dirige o filme com a precisão de desenhar uma tatuagem na espinha dorsal de um rei, cheio de simbologias e expoentes de uma única imagem, conectados por um caráter de identificação universal, manchados ora de vermelho-sangue, ora de matizes neutras, como só o nosso mundo pode criar, acima das barbáries de qualquer outro ficcional. É o cinema europeu de Luis Buñuel, antes comportado e certinho, agora em nível irreversível de causas e consequências. Bem-vindo ao mundo real deste grande filme, onde a ficção só existe se for ainda mais inacreditável.

    De dinastias honoráveis engolidas por um capitalismo predatório, a China atual inspira o desencanto, o ateísmo diante de tudo e de todos em relação a um sistema que não consegue mais se sustentar no lombo de seus cidadãos constantemente desesperados, e quem mora lá sente isso na pele, no cotidiano implacável de um país fechado e sedento por oposições, cheio de radicalismo. Entre os limites do necessário e da referência, da coincidência existencial de outro grande filme asiático – Cães Errantes –,  Pecado sustenta-se na corda-bamba deste radicalismo sociopolítico, sob uma máscara apenas social, mas que esconde, máscara debaixo de máscara, a urgência e o grito público de cidadãos à beira do precipício – uma das quatro histórias deixa isso mais do que claro.

    Lembra-se de Onde os Fracos Não Têm Vez? Aqui nem o mais forte, nem mesmo o malandro. Então, quem? O que se deve ser para sobreviver num mundo onde tomates na estrada valem mais do que a vida de qualquer um, quando se há mais fome que vida por aí? Pecado extrai o que há de imparcial no certo e errado, ao invés de quaisquer indenizações acerca de bem e mal. Deve ser feito o que deve ser feito; ‘‘go big, or go home”, já diz o ditado americano. É ideia de Walter Salles com roteiro de Iñarritu filmado por Tarantino, mas com um peso e uma relevância ainda não conquistados por nenhum dos três ocidentais, a bem da verdade.

    Longos planos-sequência, extremamente convidativos à hipnose. Um bom widescreen muito mais bonito, enquanto profundamente significativo, do que os quadros recentes do exagerado O Grande Mestre; situações inspiradas que Zhang Jia constrói e desconstrói com mão leve e muitas vezes de forma documental; um fôlego linear e a autoconfiança à toda prova do cineasta. Tudo isso quase chega a justificar, quando sob a sintonia do produto final, a ambição sob a qual o filme se apresenta de forma tão contemporânea. Quase, pois se retrai e analisa mais do que explode em suas ações, na maior parte do tempo, guardando o melhor de suas histórias para o clímax de cada uma, que, se não compensa a espera pelo impacto de um Cinema prestes a explodir a qualquer segundo, nos satisfaz com resoluções sem conclusões, de campo aberto a interpretações de cunho o mais variado possível.

    A narrativa em blocos eleva as histórias, unidas ou em unidade, ao atestado oblíquo de representações fiéis à realidade dos fatos, mas livres enquanto Cinema. O melhor exemplo é o terceiro conto, sobre a dificuldade em se preservarem a feminilidade e integridade pessoal em meio a conflitos de interesses, filmados aqui na luz e na sombra dos tormentos sociais dos excluídos, nas metrópoles imprevisíveis, onde o medo e a violência são a lei. Quando uma cobra cruza o caminho de Xiao Yu (a espetacular e pouco conhecida Zhao Tao, esposa de Zhang e melhor atuação e personagem do filme), não temos dúvida de que, para ela, algo pior está por vir.

    Um Toque de Pecado é isso (e será muito mais ao longo dos anos, ao longo de outras críticas): o grito de alguém que vê demais e pode fazer de menos. Retrato nacional e universal ao mesmo tempo, extra-diegético e tridimensional em tudo que expõe e calcula, com cuidado e muita ambição e vaidade; pecados homéricos de um cineasta orgulhoso por sua habilidade natural.

  • Crítica | O Grande Mestre

    Crítica | O Grande Mestre

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    Filmes de luta são bacanas. Para muitos, irresistíveis, à beira da inspiração de se matricular na escolinha de caratê perto de casa para quebrar o cotovelo no primeiro golpe decente ou queda latente. Não é fácil ser Bruce Lee; mais árdua ainda é a tarefa  de seu próprio tutor. Um universo atraente, cujas habilidades podem ser a maior maldição imposta a um ser em constante luta— literalmente ou não  para se manter humano, rumo à sobrevivência impossível de se alcançar, uma plenitude linear de uma existência tão imprevisível. O Grande Mestre, mistura de O Tigre e o Dragão e Kill Bill junto a um charmoso clima noir, não debate, mas escancara as portas da trajetória de um fantasma social — verdadeiro nômade que precisa provar seu valor a quem não ousa duvidar dele e, mesmo assim, busca o desequilíbrio do próximo para alcançar a tal plenitude pessoal. Focando esta analogia urbana, visto que nas cidades é essencial ser 100% competente o tempo todo, fica fácil — até demais — captar as intenções por trás do escopo da projeção, certeiro feito os socos e pontapés coreografados em belas danças regidas pela lendária coreógrafa de lutas Yuen Woo-ping. Odes à brutalidade humana, revestida aqui da mais bela poesia irônica entre dor e antídoto, os quais são mascarados por ritmo, planos cênicos sobrenaturais de absoluta beleza, além de sonoplastia magnífica.

    Mas a piscina é rasa, e quem quer dar um mergulho fica com metade da cabeça sem se molhar. Isso se deve à nova tendência dos filmes de ação que não justificam todo o seu apreço publicitário, que é, hoje em dia, apostar num drama no estilo “novelão mexicano”, reduzido ainda mais ao que se deve expandir, e que efeito especial algum substitui. Não que um ótimo cuidado na dramaturgia não combine com o oposto, afinal ambos se atraem, seja na arte, seja na vida. Contudo, O Grande Mestre e seu diretor Wong Kar-wai são frutos imediatos deste novo galho experimental, que ainda tem muito a se ramificar, mas que já dá sinais de que não deve ir muito longe.

    Caso o espectador já tenha dado uma espiada prévia nos grandes filmes de ação de Seijun Suzuki e Akira Kurosawa, duas lendas do cinema asiático, sabe que há razões para duvidar deste falso épico que transborda efeitos de câmera lenta, filtros de captura de imagem e diegética exagerada mesmo para espetáculos faraônicos deste calibre. Saber contar uma história em meio à ação é um dom muito respeitável. Vários são os elementos bem coordenados por Wong para orquestrar a produção, porém são emissores e derivados de um audiovisual oco e de um gosto de “quero mais” desagradável, que pode ser saciado pelo recente 13 Assassinos, de Takashi Miike, um Épico japonês da gema, com o devido É maiúsculo junto a tudo de bom que a tecnologia oferece atualmente.

    É curioso e muito mais do que isso: triste constatar a conduta dos cineastas não americanos em aceitar a “americanização”. Um palavrão feio e de consequências horríveis, como é o caso do filme de Wong, uma controvérsia nada acidental de um produto oriental que teima ser ocidental, e que perde sua identidade ao tentar se adaptar a outro DNA. Tal influência não remete ou faz bem à essência do material, que vende a alma, na vontade de reconhecimento, através da identificação com a forma frenética de se fazer o cinema típico dos Estados Unidos e do Reino Unido. Então, sem comparações e por efeito de causa, apenas: será possível imaginar um filme de Mizoguchi com uma edição ao estilo de Hitchcock? Depois de três conhaques e uma sessão dupla de O Grande Mestre, eu não duvido. É melhor nem tentar…

    Pois por tentar fazer o Yojimbo do século XXI, restou a vontade; ao tentar refilmar O Tigre e o Dragão, sobrou a ambição; de captar a genialidade de obras como A Vida de um Tatuado, ficou o ímpeto de uma criança perdida num tatame de caratê pela primeira vez, sem saber direito o que socar nem o porquê, pois cresceu vendo, por meio da televisão, filmes de luta, querendo brincar da mesma maneira. É preocupante que a crença sobre um visual arrebatador se torne motivo suficiente para um filme arrebatador, e que esta preocupação não seja mais uma exclusividade restrita à cegueira cultural promovida à exaustão por Hollywood: ela começa a se propagar, oficialmente, com O Grande Mestre, do outro lado do hemisfério. O fim está próximo ou o solstício de certas práticas centenárias apenas avança ao epitáfio em prol da soberania dos cadetes da tecnologia?