A industria de games pode ser dividida de várias maneiras. Uma das que mais causa discussões, certamente, é a classificação quanto ao desenvolvimento.
A grosso modo, os títulos se dividem em duas grandes categorias: Os jogos “Triple A” e os jogos “Indies“. Enquanto o primeiro tipo engloba estúdios gigantescos com verbas trilhardárias e o envolvimento de centenas de profissionais, o segundo geralmente é desenvolvido por uma única pessoa que trabalha com equipes e verbas reduzidas ao máximo. Financiados independentemente, através de crowdfunding e doações vindas da própria comunidade gamer, os jogos independentes tem roubado a cena (e os prêmios) dos jogos AAA nos últimos dois ou três anos. A qualidade técnica dos jogos indies mais famosos é comparável a dos jogos dos grandes estúdios principalmente por terem um foco e objetivo mais centrado enquanto, geralmente, os grandes títulos procuram ser mais abrangentes e acabam se perdendo no caminho.
Journey, o jogo que motivou este post, é um excelente título que prova porque os indies que focam em um único objetivo e são desenvolvidos com esmero, procurando trazer novas experiências, não tem como fracassar.
Journey é o terceiro jogo da recém criada Thatgamecompany, empresa responsável por Flow e Flower. Os três títulos da companhia nasceram graças a um contrato firmado entre a Sony, responsável pelo Playstation, e os executivos da Thatgame, Jenova Chen e Kellee Santiago. Na época, a recém inaugurada Playstation Network precisava de títulos menores para distribuição digital afim de movimentar as transações que envolviam a plataforma de vendas do Playstation 3. Jogos mais leves, que fossem disponibilizados para um download rápido e que servissem de entretenimento casual com baixo custo. Os três jogos, idealizados por Chen e produzidos pelos habilidosos designers e programadores da Thatgame, possuem a subjetividade do enredo e o mundo aberto como características chave.
Assim como nos outros títulos concebidos pela empresa, em Journey você não possui nenhuma motivação evidente e engessada. Ao contrário, você identifica o objetivo e cria a própria motivação. Nada é imposto ao jogador, a começar pela concepção do personagem principal. No jogo, você controla um viajante que caminha pelo deserto sem rosto, sem nome nem voz e com apenas um objetivo: chegar ao topo de uma montanha iluminada. O anseio do personagem central é a única coisa clara para você desde o começo e o jogo possui dezenas (talvez centenas) de caminhos que podem levá-lo a este objetivo. Marca registrada de Jenova, o jogo evoca sensações intensas e sentimentos bastante fortes, apesar da premissa aberta. Nele, não existem inimigos declarados ou formas certas e erradas de se caminhar pelo deserto.
A mecânica simples do jogo é de fácil aprendizado e pode ser dominada em um ou dois minutos, para gamers com alguma experiencia com a movimentação em terceira pessoa. Os movimentos do personagem principal são simples e limitam-se a caminhar (ladeira acima), escorregar (ladeira abaixo), saltar e flutuar por um determinado tempo. Durante sua viagem, você interage com elementos do cenário que aumentam sua “autonomia de flutuação” e alteram o skin do seu personagem, aumentando o comprimento da capa que brota do seu capuz. Tocar estes elementos também renova sua capacidade de flutuar, permitindo uma nova “decolagem” a partir do chão ou permitindo um voo mais duradouro.
Os cenários são extremamente bem desenhados e resumem-se a paisagens desérticas (arenosas ou nevadas), interior de prédios formados por rochas e o céu cheio de nuvens. As fitas vermelhas espalhadas pelo mapa reagem a sua presença, envolvendo-o, e ganham vida com o soprar do vento. Criaturas formadas por estas fitas flutuam para baixo e para cima e também possuem a capacidade de renovar sua habilidade de flutuar. O vento sopra com intensidade variada, dependendo do cenário em que você se encontra, e cria belos efeitos visuais de pura contemplação.
Apesar do design incrivelmente bem elaborado pelos funcionários da Thatgame, talvez o maior mérito do jogo esteja na sua interação com os demais jogadores. Durante a viagem, você encontra outros personagens exatamente como o seu e que são controlados por outras pessoas que podem estar, fisicamente, em qualquer lugar do planeta. Neste quesito, Chen mostra suas garras e expõe sua verdadeira intenção com o jogo: Os jogares sentem uma necessidade natural de acompanhar seus companheiros enquanto enfrentam os perigos dos caminhos abertos no deserto, e o mérito dessa forte motivação é totalmente da equipe que construiu a mecânica do multiplayer.
Tudo – TUDO mesmo! – que poderia atrapalhar a interação benéfica entre os players humanos foi “limado” do jogo. O skin dos personagens não é personalizável para evitar inveja e o jogo não possui suporte a voz ou chat para evitar agressões verbais entre os companheiros. Nem mesmo o ID da PSN fica aparente durante o jogo, sendo mostrado apenas ao final de cada partida, que pode durar 30 minutos ou 2 horas, dependendo de como você explora os ambientes. A cooperação entre os players não é essencial, mas se torna indispensável para uma experiência interessante. Essa interação, a principio forçada entre os jogadores, rapidamente transforma-se em uma experiência agradável e repetida sem esforço. Quando os dois jogadores andam próximos, a habilidade de flutuar torna-se praticamente infinita, e flutuar através dos cenários é a coisa mais legal desse jogo… Isso e a trilha sonora- composta exclusivamente para o jogo, a composição de Austin Wintory mescla instrumental de musicas clássica com canto gregoriano de primeira. É muito agradável e acompanha, em compasso e volume, os desafios oferecidos pelo jogo.
O jogo é focado exclusivamente na interação entre os jogadores e na contemplação dos cenários espetaculares do game. Jogar sozinho é possível e, em algumas partidas específicas, inevitável. Nessas raríssimas ocasiões (encontrar outros jogadores é bem fácil e segui-los é mandatório) o jogo mostra outra faceta importantíssima: o retrato da solidão perante o deserto fictício. Até o momento em que escrevo esta pífia resenha, já concluí três partidas de Journey e todas elas foram diferentes. Minha primeira partida, quando ainda não conhecia nada e não sabia o que esperar do jogo, foi marcada pela companhia de um tal de “Rasputin666” praticamente durante toda a jornada. Aparentemente mais experiente no mundo de Journey (quando o encontrei sua capa era umas 10 vezes mais longa que a do meu personagem), ele se mostrou bastante paciente e prestativo, voltando algumas partes para me acompanhar quando eu errava um pulo ou deixava passar algum checkpoint. Se eu soubesse, desde que o conheci, que seu ID na PSN era aquele provavelmente não esperaria ser tão bem tratado. Na terceira partida, entretanto, não encontrei nenhum outro personagem humano e a solidão que Jenova Chen imaginou se comprovou totalmente. Jogar sozinho não tem a menor graça.
Com uma capacidade de replay rara no mundo do jogos independentes, Journey se mostrou um game interessantíssimo e que cumpre muito bem tudo o que se espera dele: Um jogo belíssimo em todos os aspectos, totalmente diferente de qualquer jogo Triple A, barato e que merece ser revisitado de tempos em tempos. Seu sucesso foi tão grande que ele extrapolou a PSN e até foi prensado em mídia física, recebeu diversos prêmios ao redor do mundo e virou o maior expoente dos Indie Games na atualidade. Dizem por aí que Chen e o resto do time da Thatgamecompany já trabalham em um novo título: vem coisa boa por aí!
Jogão!