Uma das minhas maiores críticas a Stephen King é como ele tem claras dificuldades em nos fazer emergir e nos envolver pra valer nos horrores que ele propõe, em sua longa e popular obra. O Livro do Cemitério, de Neil Gaiman, é o triunfo que o prestigiado King parece suar para alcançar, e aqui, carrega a sensação naturalista de imersão no sobrenatural de uma forma tão suave, e inevitável, quanto um carro que entra e some na neblina na mais escura das noites. Gaiman é o esteta verdadeiro do suspense, e do terror literário atual, tendo provado isso várias vezes não apenas na literatura, guiando-nos de mãos dadas por veredas ocultas e imprevisíveis como poucos autores contemporâneos conseguem fazer. Andar entre os mortos com Gaiman apresenta a familiaridade, a emoção e o conforto que nunca esperaríamos ter nesta excursão pelo macabro, a ponto de desejarmos ir cada vez mais fundo entre suas fundações, seus mitos e sentimentos que o espectro da morte não consegue apagar.
Ao acompanharmos a história de Ninguém, um menino adotado por espíritos de um cemitério (tal como Mogli ingressa em uma alcateia para crescer, e perceber que no fundo, não é um deles), Gaiman não sai de sua zona de conforto mas apresenta novos caminhos pelo desconhecido que tanto lhe (nos) atrai, e constitui, a bem da verdade, grande parte da experiência humana. De onde viemos e para onde vamos permanece um dos nossos grandes mistérios, e estarmos cercados por almas que também ainda não descobriram essas respostas é estranhamente reconfortante – pode acreditar. Após escapar de um assassinato, o jovem Ninguém é salvo, e acolhido ainda bebê por seres cheios de afeto mas que pertencem a outras dimensões, e Silas, o coveiro oficial de um lugar mais repleto de vida que muitas ruas fora dos seus muros, se compromete a alimentá-lo e educá-lo do melhor jeito possível, devido as condições, mesmo sabendo que a hora do menino sair da necrópole, um dia, vai chegar.
Entre túmulos e passagens secretas, Nin (como é chamado) cresce, decorando o alfabeto através das letras nas lápides, fazendo amigos leais, inimigos de todo tipo, vivendo aventuras em outros mundos e descobrindo, afinal, que nem sempre a nossa casa é aonde achamos que ela esteja. Sem se prender no mundo de sonhos, delírio e perdição que é Sandman, o clássico das HQ’s e sua maior obra, Gaiman conta com os expressivos desenhos em preto-e-branco de Dave McKean, o velho colaborador dele, para caminhar com graça e leveza entre o real e o surreal, como se fosse o senhor das duas realidades (e fazendo-nos sentir assim também) ao explorar suas conexões sob a égide de vários temas, tais como a amizade, a família, a sociologia, o misticismo, e porque não, o amor ágape entre duas crianças. Dois infantes que se envolvem sem esperar nada em troca, senão, a simples presença um do outro que o tempo também não consegue varrer. Sobre as coisas que duram, enfim, num mundo tão cheio de valores tão duráveis quanto copos descartáveis.
Talvez seja essa relação entre Nin e Scarlett, a corajosa garotinha que vai no cemitério escondida dos pais apenas para ver seu amigo esquisito, a mais bela relação da obra de Gaiman. A doçura do encontro proibido e duradouro entre a menina que mora numa casa normal, e o moleque do cemitério que não sabe muito bem lidar com essa normalidade, é irresistível e encantadora, rendendo grandes momentos numa obra cujo os capítulos nada mais são do que contos. Oito contos (Gaiman começou a escrever o livro pelo quarto capítulo) a respeito do início da jornada de Ninguém pela vida e a morte, como se os dois conceitos fossem um só, no melhor estilo yin-yang de se encarar nossa passagem (e, porque não, nossas lições) pela Terra. O Livro do Cemitério, da editora Rocco, é marcante para todos os públicos, e idades, pois faz divertir e refletir muito mais do que se pode esperar, sendo então, para a maioria dos leitores, algo aproximado a uma versão do Tim Burton para uma animação da Disney, mas com a elegância e o charme ímpar que Neil Gaiman, tão bem, consegue nos arrebatar.
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