Deixando, momentaneamente, a definição de graphic novel cunhada em 1964 por Richard Kyle e sua posterior teorização por Will Eisner, hoje o termo é associado a narrativas fora do eixo de heróis, principal fonte de vendas de quadrinhos. Edições especiais, longas, não seriadas, normalmente compostas somente por uma única cor. Nos temas, se destacam obras autorais, focadas no cotidiano e em fatos vividos pelos próprios artistas. A graphic novel hoje se adequou a uma espécie de subgênero. Há a necessidade de reafirmar seu conceito em um momento futuro, sem dúvida.
Dentro desta percepção atual, o mercado brasileiro de quadrinhos encontrou outro público além do mainstream mercadológico entre Marvel e Dc Comics, em edições vendidas diretamente em livrarias, para um possível público diferente, talvez um leitor das antigas que não mais encontra prazer nas narrativas de heróis. Como as edições são lançadas sempre com qualidade gráfica e o aval da crítica no exterior, é natural que este mercado esteja presente no país e, querendo ou não, se defina como um subgênero.
Escrito em 2001 por Frederik Peeters, Pílulas Azuis transcreve mais uma trajetória pessoal de um artista, demonstrando como a arte se torna também objeto narrativo em metalinguagem e matéria de catarse para, com distanciamento, analisar certos acontecimentos da vida. A história apresenta a relação de Frederik e Cati, uma mulher soropositiva, em uma união cujo peso e leveza são transpassados pelo HIV.
Diante de um tema delicado em qualquer sistema de análise, o autor se apoia em sua biografia para desmistificá-lo. Desenvolvendo uma narrativa em primeira pessoa, dialogando com o público, e passando a limpo a história em que viveu. Conforme narra ao leitor sua trajetória, relembra acontecimentos-chave que reescrevem a linha narrativa de sua própria vida.
Se considerarmos que na vertente atual intitulada graphic novel há demasiadas tramas com temas adultos e pesados, esta história é carregada de leveza, o que produz uma abordagem diferente diante dos assuntos. Peeters deixa de lado explicações científicas e proposições médicas para enfocar sua relação com Cati e dividir os pensamentos com os leitores. Suas dúvidas, medos e incertezas ao manter uma relação duradoura são lúcidas e coerentes para aquele que, diante de uma situação delicada, expõe seu lado íntimo de aflições equilibradas com o amor notável que sente pela namorada. Evitando, assim, uma polêmica exagerada ou um ambiente pesado para a discussão.
Mais do que um mero relato sobre sua história, o autor focaliza com precisão os dramas em cada personagem em cena, dando-lhes um panorama de papéis esféricos e situando uma família como todas as outras, com problemas a serem superados, mas unida pelo amor. Como mãe e filho dividem a mesma doença, o espaço dramático é também repartido em dois. A mãe carregando a compreensão total da doença e um sentimento de culpa. Enquanto o filho, vivendo com este problema desde o nascimento, ainda observa com um olhar infantil de esperança. Mesmo compreendendo sua condição, a empatia provocada pelo garoto no leitor, e também em Frederik, é outro laço sensível que evita o caminho fácil de apresentar a criança apenas por sua doença, sendo destacada por suas brincadeiras e outros atos comuns aos infantes.
É desenvolvendo com precisão a retomada do cotidiano, associada com a simpatia das personagens em uma história aparentemente simples, que se percebe a dimensão profunda da narrativa, bem como a visão de um autor que, inserido intimamente no problema, optou por abordá-lo sem peso ou mistificação, tendo como base o cenário íntimo, diário e feliz que Cati lhe proporcionava. Uma mensagem que transpassa o casal e se justifica na composição dessa obra.
A bela edição lançada pela Nemo em brochura, papel off-set e capa cartonada com orelhas, ainda contém páginas extras com a família do autor após a recepção desta hq. Além desta obra, a editora também publicou a elogiada série Aâma do autor.
Compre: Pílulas Azuis – Frederik Peeters