David Duchovny teve muitas dificuldades em se livrar da personagem Fox Mulder em Arquivo X. Sua vontade em renegar o papel de destaque não o eximiu da dificuldade de livrar-se do estereótipo. Após insucessos no cinema, o ator encontraria Tom Kapinos que tinha em mãos um roteiro curioso a respeito de um forte personagem niilista, narcisista, mulherengo e misantropo – características defendidas como elogios notáveis.
Hank Moody, o personagem central de Californication, é como um Charles Bukowski moderno, ainda que isto possa ser encarado como uma comparação parca. Talentosíssimo e preguiçoso, sua trajetória se inicia para o público de forma sacrílega, jogando um cigarro na bacia de água benta em uma atividade semelhante ao título de sua publicação God Hates Us All. Ao fazer uma promessa ao Cristo, ainda que não use o discurso moralista que o santo gostaria de ouvir, tem intenção de voltar ao auge criativo. A proposta da série é notada nos primeiros cinco minutos do piloto, incisiva e direta.
A força de Californication vem de seu protagonista. O escritor Moody em crise é um voraz e compulsivo consumidor da carne feminina, no sentido bíblico da palavra fome. Sob a ótica da moral e bons costumes, sua família vive despedaçada. Agarrada à falsa aparência de que tudo está bem dentro da rotina do preguiçoso romancista. A depressão da personagem é alta mas ignorada pela personalidade sociopata e misantrópica. Sexista ao extremo, o chauvinismo beira o charme e faz com que se destaque da multidão, méritos que vão além do que merece. O seu cinismo diferencia-se do dos demais, além de possuir uma habilidade sedutora em relação à conquista feminina, além da sensação de ser superior ao americano médio – não à toa.
A aflição que confunde a psiquê de Moody é a perda definitiva de Karen (Natascha McElhone), a musa, progenitora da filha Becca (Madeleine Martin) e ex-esposa, prestes a se casar com um escroque. A falta de atitude faz Hank discutir seu papel de macho alfa, mesmo que sua persona sempre esteja cercada de mulheres belas. Porém, os sentimentos presos à sua alma gêmea não o impedem de esticar os olhos na proibida menor (e filha de seu rival, futuro marido da ex-esposa), Mia Lewis (Madeline Zima), que, no papel de admiradora e aproveitadora da fama do autor, faz incorporar a óbvia Lolita.
A arrogância de Hank afasta-o de certos tipos de mulheres, especialmente as inseguras, mas o cinismo não impede de sentir rejeição. Charlie Runkle (Evan Handler), o melhor amigo empresário e um dos melhores coadjuvantes, diz uma frase que resume o funcionamento do estilo de vida de seu agenciado: “debaixo desse narcisismo se esconde um talento para enxergar as coisas de uma nova ótica.” Após idas e vindas, infidelidades e sofrimento mútuo, Karen diz que está cansada de ser o cobertor sexual de Moody e viver com um homem capaz de destruir tudo ao seu redor. Como um toque de Midas invertido, o autor consegue ferrar com qualquer coisa com suas palavras ou levando culpa pelo estigma de mulherengo.
O casamento de Karen e Bill (Damian Young) quase se torna uma demonstração do ego narcísico de Hank, mas após um primeiro momento de negação, aceita a partida de sua musa amada. Como prêmio de consolação, há uma declaração de orgulho sincero da sua filha, ao perceber que dessa vez o pai não estragou tudo. A rotina do escritor é tão caótica que o final feliz que fecha a primeira temporada não pode ser considerada um clichê. E, em um Porsche imundo, foge com a amada, ainda vestida de noiva, e a filha.
Logo na segunda temporada, os acontecimentos anteriores fazem Hank questionar se os fatos são verdadeiros. Diante de seu histórico, tudo dava certo demais para sua rotina. Em virtude da boa sorte que carregava, sempre esperava graves consequências de seus atos. Mesmo em uma aposentadoria forçada pela falta de inspiração, o escritor prossegue recebendo boas propostas para retornar ao mercado, enquanto Karen decide se mudar para Nova Iorque, sua cidade natal.
O retorno da mulher amada para cidade é um símbolo da mudança de vida. Da instituição família dos Moody como uma unidade que nunca tiveram. Hank modifica sua abordagem com as mulheres, evita os cigarros e começa a mastigar canudos de sorvete. Reencontra boa parte das senhoras com as quais dormiu na temporada anterior, em muitas delas fazendo mea culpa, e não reage com raiva de Mia, demonstrando maturidade até mesmo com o roubo de seu manuscrito. Como uma constante, as piadas escatológicas permanecem, diferenciando-o dos outros, mas colocando-se próximo demais de sua antiga persona, um fantasma que deseja se livrar a todo custo.
Mesmo tendo desculpas, Hank se mete em problemas e o estado de calmaria cessa, resultando em um escândalo por parte de Karen. Vencido, sai de casa, rompendo com a paz que o cercava e retornando à antiga rotina. A decadência parece ser automática assim que o personagem é deixado pela mulher. Assim, Moody passa a beber, fumar e foder com tudo que anda e respira, sem exceções.
Certos hábitos não mudam. Karen prossegue dando lições de moral em Hank mesmo após o triste rompimento, deixando-o na cadeia, graças à fiança que ela prefere não pagar. A mágica do personagem é que “não se pode ficar muito tempo com raiva dele”, nas palavras dela. A nova rotina do escritor é acompanhada por um produtor musical e seus clientes. Nesse ambiente, tudo que é preferido de Hank está presente: mulheres, drogas, bebidas. Lew Ashby, personagem de Callum Keith Rennie ganha muito destaque e torna-se um grande amigo do escritor com o passar do tempo.
Algumas reservas morais são ditas por Moody, como a máxima de que “Não se transa com a alma gêmea de um amigo.” Tal prerrogativa é respeitada até o final da série e demonstra que o escritor é muito mais do que o poço de melancolia e maus modos que o expectador mais conservador pode achar. A morte de Lew o faz repensar tudo, não só pela falta do amigo, mas também por enxergar onde poderia parar se continuasse cometendo seus excessos. Hank entende que o amor supera tudo, e que “elas” – sejam as mulheres ou a própria família – irão te perdoar se realmente te amarem, “se a vida não for assim, não vale a pena tentar”, nas falas do finado parceiro. Tudo era por Karen e Becca. Quem garante que eles seriam felizes juntos? Era um risco demasiado para se correr. Por isso, Hank decide escrever uma carta:
“Querida Karen, se está lendo isso é porque eu tive coragem de mandar. Bom para mim. Você não me conhece muito bem, mas se deixar, tenho a frequente tendência de falar que é difícil escrever. Mas isso…É a coisa mais difícil que já tive que escrever. Não há maneira fácil de dizer, então vou falar logo. Conheci uma pessoa. Foi um acidente, eu não estava à procura. Foi uma tempestade perfeita. Ela falou algo, eu também.Quando vi, queria passar o resto da minha vida nessa conversa. Agora estou com a intuição de que ela pode ser a mulher certa. Ela é totalmente louca, de um jeito que me faz sorrir, altamente neurótica. Ela é você, Karen. Essa é a boa notícia. A má é que não sei como ficar com você nesse momento. E isso assusta pra caralho. Porque se não ficar com você agora, sinto que nos perderemos. O mundo é grande, mal, cheio de reviravoltas. As pessoas costumam piscar e perder um momento. O momento que poderia mudar tudo. Não sei o que está acontecendo entre nós, e não sei porque deveria gastar seu tempo comigo. Mas como seu cheiro é bom! Como o lar. E faz um ótimo café, isso tem que valer alguma coisa. Me liga.
Seu infiel,
Hank Moody.”
O desabafo mostra o medo de entrar no processo maduro de crescer e ser adulto. Por isso prefere a auto-sabotagem. Se não o fizer, acredita que pode crescer e esquecer sua Karen. Um risco que não valeria tanto.
Após a saída de Karen da cidade, Hank volta a sua rotina sexual, mas claramente não está tão feliz quanto deveria. A personagem começa o terceiro ano praticando seus atos ruins, incentivando o vício da bebida em Richard Bates (Jason Beghe), um outro escritor que admira. O rompimento com seus 10 anos de sobriedade arruína o futuro de Bates e abre a chance de Moody lecionar em uma universidade. Seu modus operandi é semelhante à rotina como escritor. Relapso quanto as provas dos alunos, deixa tudo a cargo de sua assistente e diz que lerá o trabalho de uma aluna, unicamente por ela ser atraente. Um ponto interessante são as ironias jocosas que faz com a saga Crepúsculo e com seus derivados.
Enquanto leciona, destila seu costumeiro misantropismo nos aluninhos ricos e mimados da universidade, fazendo piadas que a maioria sequer imaginava existir. As melhores continuam sendo seus comentários sobre a diferença entre homens e mulheres, quando afirma que “homens são seres simples, basta um elogio ao seu trabalho para deixá-los no ponto”, ao contrário do proselitismo feminino. Óbvio que a fala é machista, e é óbvio que a graça não se perde nem mesmo com isso.
Hank prossegue clamando as mulheres, mas a razão evoluiu já que passa a implorar (mais) pelo amor da filha e não (tanto) das parceiras sexuais. O drama envolvendo a ida de Becca para Los Angeles faz-se abrir uma enorme discussão a respeito da paternidade, o que por si só é curioso. Os talentos dramatúrgicos de Madeleine Martin são postos à prova e ela convence dentro de suas possibilidades. Hank decide ir também para Nova Iorque e, em sua despedida de LA, é obrigado a dispensar as amantes que acumulou pela terceira temporada. Becca fica confusa ao ver a volúpia que o pai desperta nas mulheres à sua volta, entendendo, à sua maneira, que ela deve ser tratada pelos homens de um modo diferente – crescer com esse comportamento de protetor é difícil. Mas ir para NY simboliza a procura de uma felicidade que pode nunca se concretizar. Californication mostra uma realidade curiosa, onde os adultos se auto-enganam o tempo todo, enquanto crianças são sábias como filósofos.
O final da terceira temporada parece uma repetição do season finale anterior, ou o que deveria ser o começo da terceira temporada – um grande atraso filmado e estendido. Um dos melhores momentos é a discussão da autoria de Fuckin and Puching, que Mia simplesmente roubou e que foi denunciada tão tardiamente. Hank, mesmo pensando o pior a respeito de Mia tenta protegê-la. É um cavalheiro, apesar de tudo, e sente-se como uma figura paterna. A forma com que a história termina é sensacional, inclusive o rompante silencioso na reação de Karen e o triste destino de Hank, com sua “liberdade ilusória” retirada aos olhos de sua família, a mesma que ele jurou proteger, ao som de Rocket Man, de Elton John.
A guitarra que abre a trilha na primeira cena da quarta temporada imerge o espectador no universo caótico onde Hank se encontra. Sua vida certamente nunca esteve tão potencialmente bagunçada quanto naquele momento. Como sempre, há muitas mudanças em sua trajetória, e sua jornada volta a ser próspera com o escândalo a respeito de Mia X Moody e a adaptação para o cinema do malfadado livro. A acusação de pedofilia o faz sentir-se como um Roman Polanski ainda mais maldito, apesar de detestar tal comparação.
A trama varia entre a produção do filme e o julgamento. O caso da promotoria enfraquece assim que Mia faz seu depoimento que, aos poucos, transforma a acusação numa simples tempestade em um copo d’água. As conversas impróprias de Moody com sua advogada Abby Rhodes (Carla Gugino) ao lado de geriatras não é interrompida, mesmo após todas as idiotices que o escritor tem a proeza de alcançar. E, como era de se esperar, consegue cooptá-la.
Ele permanece cínico, mesmo após flagras de supostos assédios. Quando parece impossível, consegue se isolar mais ainda do mundo e dos poucos que ainda o suportam. A vontade de se auto-destruir só cresce em Hank, e nem mesmo o ator tem consciência disto. Ser superado por Karen é a pior sensação que pode poderia sentir, maior do que a apreensão pelo julgamento. Mesmo que assuma a culpa que o consome, sente a decepção nos olhos de sua alma gêmea. A liberdade condicional dá salvo conduto para que o autor volte a ser um babaca completo. A temporada termina sem muitos ecos ou consequências marcantes, somente mais do universo de Moody. Nota-se um claro declínio nos roteiros. Até os lamentos do escritor não são mais tão fortes quanto antes, tampouco comoventes, mesmo com a intenção edificante de Hank no final.
A Deusa da inspiração se foi, possivelmente para sempre. Encarar isso não é o estilo de Hank; seu feitio é se entregar para as mulheres e depois descartá-las. O tédio ainda o envolve, mesmo após o lançamento de um novo livro. O hiato entra a temporada quatro e cinco atravessa dois anos e meio da cronologia e Karen está casada com Richard Bates. O retiro do escritor da Califórnia acaba graças a um rapper, Samurai Apocalipse, interessado em seus préstimos. A ideia esdruxula é fazer uma série chamada Santa Monica Cop. Moody tenta declinar, mas o negro simplesmente não aceita um “não” como resposta. Enquanto isso, Hank mantém o talento de achar loucas mulheres, depravadas e sedentas por sexo. Em momento nenhum perde sua peculiaridade em cometer gafes.
Há um flashback que mostra Hank quando se mudou para LA, ainda inseguro e modesto, com Karen muito reticente em mudar-se para lá. A cidade parece tê-los mudado, o que certamente é uma contradição quando comparados a outros momentos de rememoração dos personagens. No entanto, é interessante por mostrar o quanto a sucessão de acontecimentos mudou o modo de viver do protagonista. A vontade de crescer e evoluir na carreira despertou sua personalidade auto-destrutiva e, mais tarde, o fez se afastar de sua amada. Em uma crise no casamento, Karen tenta fazer a fuga costumeira, voltar para Hank quando a corda aperta. Mas ele permanece um perfeito cavalheiro disfarçado de um babaca incorrigível. E um amigo deveras protetor.
Para variar, a despedida de Hank desencadeia muitas emoções antes escondidas atrás de movimentos hipócritas. A postura nas duas situações que se mostram a ele é muito diversa. No início, Moody tenta socializar com seu “genro” Tyler (Scott Michael Foster), uma versão mais nova de si, que até o substitui como roteirista, mas tudo se destrói rapidamente. Com Bates, Hank é compreensivo. Até por conta da culpa de seu passado, tenta ajudar o esposo de Karen a se reabilitar. O único inconveniente é que, como uma regra, escritor e sua amada tenham pelo menos um momento juntos por cada temporada. De um modo tresloucado, as almas tristes voltam a se cumprimentar e tudo fica bem, chegando tão perto de dar certo, mas o caos da vida do autor volta para assombrá-lo, pela quinta vez, repetindo exaustivamente o clichê.
Californication é uma série épica, que mostra a trajetória de um escritor niilista que se mete em problemas existenciais, mas também pode ser encarada como uma ode à lei da semeadura, mostrando que independente dos bons feitos de uma pessoa, o universo (destino, deus, cosmo…) cobra a parcela da culpa das merdas (shit é uma palavra largamente usada nos roteiros) antes feitas. Isso é uma regra, e o irresistível papel de David Duchovny, Hank Moody, é a prova em carne e osso. A primeira cena da sexta temporada é uma fantasia em flashback mostrando uma variação do primeiro encontro do casal preferido de Tom Kapinos, mas com um temível fantasma.
A culpa volta à mente do autor, que mergulha em seu conhecido vício, o álcool. Retorna também para a sua rotina em estragar a vida de todos que cruzam seu caminho. Seu novo trabalho seria com Atticus Fetch, uma Opera Rock, mas nem mesmo o motiva em um primeiro momento. Hank finalmente verbaliza que não quer mais viver.
Talvez a vontade de morrer de Hank seja pela péssima qualidade do roteiro desse novo ano. Quase todos os momentos em que as atividades dos roqueiros são registradas, é visível um desconforto vergonhoso. Tudo é caricato e mal feito, e ao contrário das temporadas anteriores, esta pouco tem do espírito Rock ‘n’ Roll. Há poucos momentos do tradicional Hank de anos anteriores. Como se o escopo da história estivesse à procura de um público maior.
O roteiro de Moody para a peça é recusado por ser sombrio e parecido com o livro e menos com o filme. Mesmo quem o apoia sente que falta alma em relação a um roteiro sobre um musical. Como pontos positivos, há o desenvolvimento de Becca como escritora iniciante e o legado dos Moody´s se acostumando com recusas.
As piadas dentro da rehab são completamente fora do tom, quase tudo que envolve o personagem de Atticus é caricato e toscamente construído. A comédia é fraca. Apoiar a temporada inteira num dos maiores defeitos da série se prova um equívoco ainda maior. Quase todos os registros de músicos, bandas e cenário musical foram péssimos, e a cereja indigesta é a cena envolvendo o roqueiro britânico poser de estilo indefinido – nem metal, nem hard rock, nem nada.
A Showtime e Tom Kapinos chegaram à conclusão de que a saga de Hank Moody deveria ter seu fim. A sétima temporada será a última do seriado, que, apesar da decadência das duas temporadas anteriores, garantiu momentos épicos, especialmente nos dois primeiros anos, mostrando o modo de viver de um párea, de um sujeito diferente de outros de seu tempo. Um escritor à moda antiga, genial, mas arredio e pouco afeito à fama que incomodamente o agride, e que, mesmo com toda essa agitação, com uma paixão persistente que prossegue em seu coração, o faz sempre ter a vontade suprema de estar junto à sua musa.