Tudo o que não é icônico, não vende, e esse é um gravíssimo problema da nossa cultura pop, desde os primórdios do século XX. Sem mais delongas, talvez seja por isso que Watchmen e Maus, HQ’s premiadas ao redor do mundo, sejam muito mais conhecidas que as igualmente laureadas Persépolis, e Sopa de Lágrimas, justamente pela falta, nessas duas obras-primas, da tão requisitada glorificação iconográfica que a grande maioria dos leitores acha necessário ter para se interessar em ler, jogar, ouvir ou assistir alguma coisa. Isso explica o motivo da massa preferir qualquer filme de super-herói que uma comédia europeia, ou prestar mais atenção numa série com guerreiros e dragões que noutra com pessoas normais, e contemporâneas.
O icônico (quase) sempre vence, é mais chamativo – o quase fica por conta do fator publicitário que, quando bem feito, vende água suja no límpido oásis de um deserto. E lidemos com isso, mas não com o fato de Sopa de Lágrimas ainda não ser reconhecida – em especial por nós, conterrâneos do povo e da essência latino-americana que a HQ celebra. Diz-se “essência” para não apelar para o caráter mitológico que a publicação da Editora Veneta, de 2016, nos apresenta ao ser sediada no pacato município de Palomar. Espécie de cosmos que reúne os hábitos e figuras pertinentes do imaginário latino, pessoas adoravelmente comuns que, em vinte pequenas histórias, passam a ser nossos amigos ao longo de crônicas sobre as delícias e as dores de um povo sofrido e que goza da vida, apesar dos pesares.
Tal caráter mitológico, então, é representado entre suas relações, seus embates, suas brigas e felicidades, seus escapismos, suas concorrências e as lendas locais de uma Palomar cheia de vida, criminalidade, grandes paixões, mulheres poderosas e garotos em eterno processo de amadurecimento emocional, e intelectual. Nisso, como em quase toda obra que se propõe nos inserir pra valer em sua realidade, temos um guia bom o bastante para isso: Chelo, a parteira (desenhada com traços masculinos) que também distribui banhos aos homens da cidade, e que conhece todo mundo com ou sem roupa, e tantos outros desde que nasceram pelas suas mãos fortes.
Para nós, Chelo, a mulher mais destemida das redondezas, é porta-voz de tudo que precisamos saber sobre Palomar, trazendo consigo a história de uma gente quase que cativante demais para ser verdade – criaturas imperfeitas e confinadas em fábulas tangíveis. Compartilhamos as esquinas, as casas e os dramas de um povoado no princípio pela sua perspectiva, até que, ao longo de 250 páginas de puro deleite, vamos descobrindo cada vez mais dos corações, uns mais puros, outros mais maliciosos, que fazem o mítico local, um laboratório de sensações, ser tão divertido quanto significativo ao caldo primordial sobre o que faz a América Latina ter uma identidade própria, alimentada e ostentada, antes de tudo, pelos seus habitantes e seus adoráveis conflitos sob o bel prazer de uma trama cujo protagonismo coletivo reina, do começo ao fim.
Acaba que nós, os leitores, somos o olhar estrangeiro (sobre nossa própria cultura) que valida a existência de Palomar, caricaturalmente verdadeira, enquanto que a nós é dada a chance de examinar os arredores e seus pormenores, tal um turista a filmar novos horizontes, experimentando novos temperos e diálogos. Eis então o principal triunfo desse clássico de Gilbert Hernandez: nos proporcionar, com totais naturalidade e irreverência, uma autorreflexão crítica e um deslumbramento apaixonante sobre nós mesmos. Sobre aquilo que nos é intrínseco, e já era para as outras gerações dos nossos queridos conterrâneos. Assim, fica inevitável estabelecer aqui comparações imediatas com o diamante mais famoso do realismo fantástico latino-americano: o mastodonte de Gabriel Garcia Márquez, também chamado de Cem Anos de Solidão.
Se no extraordinário livro de Márquez, obrigatório para se dizer o mínimo, o colonizado povoado de Macondo é palco para o desenvolvimento de incríveis personagens que formam uma ordem de sentidos rica, harmônica, e ao mesmo tempo fragmentada, Palomar não fica atrás ao ser um ambiente de grande intensidade, formando assim uma consciência coletiva igualmente própria e que ronda Palomar, assim como rondava Macondo, onde pessoas reais resolvem seus dramas reais através da força encantadora de um regionalismo frenético e irresistível, a qualquer um. E não chega a ser incrível quando uma obra literária consegue ilustrar a nossa imaginação pela dinâmica de seus desenhos, e ainda, nos instiga a imaginar o que se passa entre um quadrinho e outro; entre páginas cujo desdobramentos narrativos imploram por uma releitura?
Incrível, sim, e absolutamente raro. As personagens e tudo que faz parte de Sopa de Lágrimas são de uma vivacidade impressionante, uma vez que as conhecemos antes mesmo de começarmos a ler sobre elas. Seus balões de diálogo são sonoros, pois reconhecemos suas vozes, o realismo das suas ações e motivações que saltam das páginas e parecem compartilhar do nosso oxigênio. Não há preço que pague o valor dessa imersão, muito menos o talento de Hernandez em nos transportar para o sensorial de cenários tão típicos da nossa quente e efervescente América Latina, embora reconhecíveis também ao mundo exterior em que outros climas e costumes dão o tom. Veredas nas quais esse DNA tropical consegue chegar, sendo naturalmente icônico e simbólico, enfim, através de obras cultuadas e essenciais, como essa.
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