“É sobre uma inocência pisada, de uma miséria anônima.” – Clarice Lispector, em entrevista à TV Cultura, 1977.
Não tem príncipe encantando, nem final feliz para todos e todas, mas ninguém a avisou sobre nada disso. Tampouco falaram para ela do quartinho imundo que a faz ter “saudade do futuro” no Rio de Janeiro, onde sua tia, antes de falecer, a arranjou emprego, fazendo-a ser mais uma nordestina a procura de possíveis oportunidades no sudeste, longe dos amores e ardores natais que nunca conheceu. Suas companhias? Balconistas de loja com as quais divide sua intimidade, e um radinho que usa para se (re)conectar com seu Eu interior, nos momentos de solitude que tanto precisa. Macabéa trabalha como datilógrafa e anseia por tanta coisa, quem sabe até um amor – de verdade, igual nos filmes e outros sonhos. A arma dos anjos é a simplicidade, afinal, mas felizmente Clarice Lispector sabia bem disso.
Tanto sabia que encorpou sua cria mais celebrada com ela. Macabéa conhece então o metalúrgico Olímpico de Jesus, homem de várias e que a adverte: adora sangue, touradas, e ela, borboletas e arco-íris. Ela é estranha para ele, “vaca sem leite”, feita para ser chifrada como chifram os touros que ele ama, mas ela não liga, com seu olhar angelical de nunca se irritar com alguém. Por ser assim, Macabéa não sonha com A Hora da Estrela, pois sabe que sua hora de ser feliz nunca chegará – será? Ela é só mais uma. Uma flor de asfalto cujo destino não deu jardins para florescer. Se vira como pode, e estabelece raízes com quem consegue para acalentar seu coração tão virginal de tudo – absolutamente tudo. Isso o mundo não perdoa, muito menos os homens, e ela segue: misteriosa, tal os não-vividos de toda espécie.
“É que muita coisa eu não entendo bem”, diz ela para Olímpico, que a rebaixa como se o trabalho dela enquanto respirasse fosse ser rebaixada. Uma obra-prima sobre o lugar no mundo que as pessoas tem, sobre o peso rotineiro na flor que, de pingo em pingo, começa a se curvar para a chuva, mas sem nunca perder a beleza. Olímpico não sabia, mas talvez os touros brutos que tanto amava se curvariam, também, a ternura que ele, por jamais entender, enojava. Doce, e inconsequente, num Rio que a faz ter falta do sertão de Alagoas, ela mente para faltar um dia no trabalho e, assim, poder dançar sozinha no quarto que divide com outras moças, longe do seu nordeste onde também não vivia – apenas existia, lá e cá. Macabéa tem medo da noite, e talvez nunca viu a madrugada do começo ao fim, pois, de tão justa, sempre aceitou o sono.
Por trás de Rodrigo S.M, o narrador oficial do romance, brincando assim com os limites e os truques da linguagem literária, Lispector costura e reflete simultaneamente a direção dos passos de Macabéa num espetacular estudo de personagem, fazendo da sua sensibilidade a da autora, e acordando a nossa, em poucas páginas de imediata e irresistível imersão. Macabéa, poesia ambulante, e transparente para nós, se joga na vida e na lama (literalmente) sem outra opção além de encarar o que não entende, mesmo sabendo ser insuficiente para todos, ao redor. Como o (falso) amor e as relações de trabalho aparecem para alguém igual ela, é isso o que a autora explora através de sua lente filosófica, e existencialista, como se não apenas morasse com Macabéa, mas fosse sua anja da guarda leal, e oficial.
Tal um vidro líquido, e ainda maleável, a famosa autora de A Maçã no Escuro e Felicidade Clandestina, todos igualmente publicados pela editora Rocco, fez de seu mais popular romance, A Hora da Estrela, um esplendor de seu próprio e magnífico domínio narrativo, com este regido aqui pela eterna e romântica tendência de submeter o que é complexo na natureza humana, a soluções criativas que valorizam o que é simples, e gracioso. Uma das principais musas da literatura brasileira realiza, aqui, um encanto que não é à toa: a estrutura não encontra capítulos, tornando sua prosa a mais contundente e ritmada possível, pois a vida e o cotidiano não param por ninguém, e essa é a mensagem implícita num dos grandes romances brasileiros da década de setenta. Um convite irrecusável, enfim, a enveredar pela essência humana através da trajetória da mais verossímil das personagens.