“O passado é uma invenção sempre modificada.” – Carpinejar.
O álbum (tido por “excelente” pelo quadrinista Ronaldo Barata, que já o começa afirmando logo na empolgante introdução de duas páginas do livro) Crônicas da Terra da Garoa é uma leitura das mais visualmente interessantes em uma temática que as histórias em quadrinhos, por algum motivo bem especial, tanto gostam de se debruçar: a saudade. Essa palavra tão exclusiva da língua portuguesa faz-se a Julieta dos autores que amam juntar texto e imagem em pequenos quadros, bastante expressivos, sobre tudo aquilo que ainda temos contas a prestar. Não tanto com os outros, a princípio, mas com nossa própria relação com o presente – a dádiva muitas vezes preterida pelo conforto ou o trauma irreprimível do ontem. Nem sempre o inferno são os outros.
A bem da verdade, a infernal São Paulo não teria o apelido que tem a toa. Megalópole de infinitas veredas, ratos e habitantes tão anônimos quanto quem os reproduz, é palco para as lágrimas e sorrisos incontáveis que formam as pegadas de seus cidadãos. O stress do cotidiano, o silêncio e o vazio em meio as multidões nas avenidas, nas estações de metrô ultra lotadas, e assim São Paulo segue engolindo para esporrar seus arquétipos ambulantes, suas legiões de urbanos e suburbanos submetidos a saúde mental típica da selva semi asfaltada. Lá, tem quem morre de ódio, de sono e de inveja nesse cenário, e é numa clínica que trata pacientes que literalmente estão sofrendo de tudo isso, por mais surreal que possa ser, que o solitário protagonista (sem nome) de Terra da Garoa se consulta para descobrir que está morrendo, que nem a gente, mas de saudades.
Fato é que a causa de sua mortal nostalgia já não é digna no decorrer da história de nosso “merecido” conhecimento, em nenhuma de suas cinquenta páginas lindamente coloridas, por sinal. Por meio de vívidas e deslumbrantes ilustrações abstratas, e as vezes confusas e que servem para acelerar o ritmo da narrativa de uma trama que já é curta e com um único diálogo verbal, acompanhamos os passos de um fantasma ainda vivo que (talvez) sinta falta da mulher de sua vida. Ou (talvez) daquilo que nunca viveu, como também dá a entender certas situações que o artista Tainan Rocha tão bem ilustra, visando sugerir muito do que está por trás da abismal melancolia azul e noturna e boêmia de uma tartaruga que não consegue mais carregar seu casco de memórias – milhões de recordações, uma mais pesada que a outra.
Um fardo que acomete até o mais estranho dos homens, aliviado pelos vícios que tanto encontramos no mundano, mundo afora, mas que, em Crônicas da Terra da Garoa, não serve para acalentar um coração sincero. Coração este que não aguenta mais, e certo dia pula de uma ponte no imenso centro paulistano, e que por milagre de um destino feito para fazer Deus rir de nossa pequenez, ganha uma nova chance de ser “feliz” quando o suicídio mostra-se frustrado (agora ele poderá morrer de felicidade. Melhor.). Enfim, este modesto conto de Rafael Calça falha em nos fornecer informações marcantes o suficiente para nos manter absolutamente engajados e imersos na história, vibrando somente pela dinâmica um tanto exagerada dos traços de Rocha – esses sim, essenciais para a experiência leve, e longe de ser inesquecível, de se ler esta publicação da Editora SESI-SP. Abstrata demais para se tornar concreta nos nossos corações.
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