Os anos noventa foram bem curiosos em matéria de qualidade de roteiros em quadrinhos, especialmente no que toca os super heróis. Enquanto boas iniciativas e sagas ocorreram, como a Liga da Justiça de Grant Morrison, os runs do Homem Morcego e boa parte da invasão britânica, também ocorreu nessa época o boom da Image Comics, em sua fase mais massa veio. Dentre os vários momentos sensacionalistas, houveram sagas que variavam de qualidade, como as polêmicas A Queda do Morcego e A Morte do Superman. Obviamente, seu retorno não muito tempo depois, e o uso de pochetes, trabucos e armas de fogo enormes começaram a invadir até os gibis de heróis super poderosos, que não precisariam dar tiros para sobreviver, e isso evidentemente tocou o kriptoniano.
Pouco depois que retornou a vida, o Super-Homem apareceu com poderes diminuídos, usando cabelos grandes, roupa preta e repaginada, sem capa e com emblema prateado, num visual que demonstrava que a fase do roteirista e desenhista Dan Jurgens era bem diferente da série de John Byrne, ou as anteriores com Curt Swan e outros artistas. No entanto, essa mudanças apesar de chocarem alguns leitores, não causaram tanto furor como quando ele apareceu com poderes elétricos, mudando completamente seu estilo, visual e até as habilidades sobre-humanas.
Alguns dos visuais do herói ao longo das décadas.*
No Brasil, a fase foi toda publicada pela Editora Abril, e dificilmente será reeditada e republicada por aqui. A historia é longa, reunindo mais de 70 revistas entre Action Comics, Superman, Adventures of Superman e outras, excluindo aí revistas de grupo como a da Liga da Justiça, e toda essa fase é bem presa à cronologia.
Esta versão do personagem, embora se alardeasse que era definitiva, claramente não teve um planejamento tão forte. Entre as diferenças entre o clássico e esta nova configuração, há o fato de quando se desmagnetiza, fica vulnerável, como um humano comum. Além disso, o personagem tem uma estranha sinergia com objetos eletrônicos (chega ao cúmulo de entrar em um computador, onde se percebe até linguagem binária em suas pupilas). As balas atravessam seu corpo, que portanto fica intangível quando ativo. Esta nova função é mostrada de maneira estranha, um bocado incongruente, pois funciona ao gosto dos artistas e roteiristas, já os outros poderes são descobertos aos poucos, e incluem teleporte, variação da densidade corporal (pode crescer e diminuir conforme quiser), além da estranha condição de viajar por linhas telefônicas. Além disso, Clark precisa utilizar roupas de isolamento. Das habilidades que perdeu, há a super velocidade, visão de raio x, visão de calor, que tem a compensação de lançar raios. Além disso, embora siga voando e permaneça super forte, a kryptonita não o afeta mais.
O slogan que fala que o Super está pronto para o próximo século não é dito apenas pelo material de propaganda, mas também pelo próprio Clark. A forma como os personagens secundários o enxergam é artificial demais. Nem seus pais parecem ser os mesmos, e há um exagero para demonstrar que está ainda mais poderoso, obviamente um fato muito contestável. Fora essas conveniências capitaneadas por Jurgens, há uma participação muito boa dos desenhistas, entre eles Stuart Immonen (que fez anos mais tarde a belíssima Superman: Identidade Secreta), Jon Bogdanove (artista cujo traço é bruto e característico) e Tom Grummet (famoso por desenhar o Superboy em suas primeiras revistas). Esses estilos, bem diferentes entre si, produzem ótimos momentos da família Super, resgatando a dignidade perdida nesta fase graças aos textos.
Propaganda dentro das revistas da Abril, anunciando as mudanças de paradigma do kryptoniano.
Existem historias paralelas que poderiam ser bem exploradas, como o tratamento de câncer de Perry White e a editoria que Clark faz no Planeta Diário na ausência por saúde de seu velho amigo. Mas isso é mal explorado do ponto de vista emocional e parece gratuito. Em compensação, a estranha condição de Jimmy Olsen como apresentador de programas de auditórios é constante, tem certa importância dramática mas não é bem trabalhada dramaticamente também.
Essa fase é bem característica de seu tempo. Os vilões clássicos também aparecem em alguns pontos, mas mesmo a motivação deles parece estranha. Uma das explicações para a troca de poderes do Super seria por uma interferência de Lex Luthor. No entanto, as razões que teriam feito o vilão cometer tais atos não se encaixam. Seu plano aconteceu devido ao futuro nascimento de seu filho. Mas tentar diminuir os poderes de seu antagonista não parece ser imporante para o nascimento de um novo Luthor.
Além disso, há a repetição de outros conceitos como as tentativas de substituir o Superman como o resgate de dois Superman, o azul e o vermelho, uma duplicidade gerada após estranhas experiência envolvendo o Homem dos Brinquedos e o Super Ciborgue. A referência claramente traz uma nova versão do conceito de 1963 em Superman #162, embora aqui não haja o mesmo contexto e comentário político da historia antiga. Há um bom artigo sobre isso, chamado Guerras Frias e a história dos Supermen Azul e Vermelho, do grande Felipe Morcelli, que explica essa versão antiga com boa pesquisa e ótima contextualização.
Os Superman de cores diferente, nos anos 60
Se a qualidade dos roteiros não é positiva, ao menos se tenta humanizar o sujeito. Clar Kent não sabe lidar com duas copias idênticas de si. Como herói funciona bem, pois pode se desdobrar e ajudar a Liga, os Titãs e outras cidades além de Metrópolis. Mas Lois sofre muito, não sabendo como conviver com dois maridos ao invés de um. Nunca se soube qual era a verdadeira extensão de poder das partes nessa nova configuração. Embora a situação intentasse ser definitiva, era natural que em algum momento a estruturação do personagem voltaria ao normal.
Como já era esperado, o Super-Homem voltou a ser quem era, unico, com as cores da bandeira americana ostentadas em seu peito e músculos. Misteriosamente ele repete o clichê de cair nu, em uma área rural do Kansas (no caso, em Pequenópolis) na fazenda dos Kent. A sua entrega para salvar a Terra o teria feito mudar as moléculas de seu corpo, e isso restaurou sua antiga identidade, unindo os dois para voltar a ser somente um e igual ao que o status quo sempre pregou no que era conhecido na Era de Ouro e de Prata. Fica um bocado dúbia a questão relativa a possivelmente um deles – o vermelho – ter se sacrificado. Ou se por um milagre um absorveu o outro, literalmente ou energeticamente. Como boa baboseira dos anos noventa, a fase do herói termina assim sem nem sequer uma reflexão sobre o outro ou uma explicação de que os dois se unificaram. O resultado é uma breve lembrança na memória dos leitores mais preocupados com cronologia, mas sem causar grandes efeitos ou sequelas nas vidas do personagem e na ambientação de suas aventuras.