A obra de H.P. Lovecraft é bem vasta dentro do formato de contos. Possivelmente, se suas histórias fossem mais longas, em romances, talvez ele tivesse conseguido uma melhor sorte comercial, dado que morreu sem fama, na pobreza, sendo reconhecido como gênio inventivo só após sua morte. Muitas compilações de sua carreira povoam as prateleiras do Brasil, entre elas, essa da editora Chronos, cujas capas são bonitas e simples, contando com uma tradução de Bárbara Lima, Fátima Pinho e Marsely de Marco. Seu primeiro volume tem a alcunha de O Chamado de Cthulhu e Outros Contos.
As notas dos editores abordam o modo como os negros, indígenas e outras minorias econômicas são retratadas dentro da literatura de Lovecraft, e apesar de não fazer muito juízo de valor a respeito dos claros preconceitos do escritor, o leitor é convidado a tirar suas próprias conclusões, e consequentemente, não se passa por cima dessas questões como se elas não existissem. Ao mesmo tempo, a editoria não cai na problemática de modificar o texto original, como ocorreu recentemente em algumas versões dos contos e crônicas do autor. Lovecraft é fruto de seu meio, mesmo suas histórias se passam nesse cenário mais conservador e retrógado, no Sul dos Estados Unidos, que em sua maioria, onde o povo e autoridades perseguem tudo o que não é branco.
Dentre os contos compilados estão o conto que dá nome ao livro além de Dagon, A Música de Erich Zhan, Os Gatos de Ulthar, A Verdade Sobre o Falecido Arthur Jermyn e sua Família. As descrições variam entre o detalhismo lírico e a incredulidade com o encontro com o sobrenatural. Muito se fala que as histórias de Lovecraft tocam o desconhecido, não só na óbvia questão de mostrar cores desconhecidas, mas também nas sensações de terror únicas e jamais vistas, sendo algumas dessas, não abordadas sequer após a literatura dele, quando muito, sendo copiadas de maneira tola. No conto maior, há uma mistura de diferentes tipos de narrativas, variando entre o documental com uma fala franca em primeira pessoa, e relatos mais crédulos no espiritual. Essa mistura ajuda a aumentar a tensão, uma vez que ela tem um pé na realidade, mesmo que os rituais com sangue e sexo grupal sejam bastante explícitos nessa escrita.
Em comum os textos tem um clima desesperançoso, com desejo de que toda a descrição ocular seja apenas uma viagem mental, principalmente no final das histórias. Os contos também abordam momentos bem corriqueiros, com breves interferências sobrenaturais, a premissa básica do escrito é do homem comum e ordinário que vive seus dias igualmente aos outros, encontrando algo monstruoso se assustando com aquilo e deseja jamais ver a tal criatura. Os monstros tem elementos de descrição tão diferenciadas que a mera tradução de sua aparência é um exercício de dificuldade extrema.
Há uma boa parte do livro dedicada a falar do autor, explicando um pouco de sua biografia, das dificuldades financeiras pelas quais passaram sua família materna – saindo da extrema riqueza para a falência quase total – além de falar da condição de saúde bem complicada dele, herdada de seus parentes, tanto da parte de mãe como de pai. Sempre que esteve longe de Providence, ele se sentia mal, e boa parte dos motivos atribuídos a isso seria a condição racial mista das cidades que habitou.
O autor claramente não tem tanto sucesso em suas histórias mais longas, as menores parecem mais acertadas quanto ao ritmo e à narrativa. O leitor ávido por todo um mundo diferente se frustra, mas para quem gosta de prosa e de um escapismo pragmático, o livro é um prato cheio, pois os personagens são bastante humanos, cheios de falhas, preconceitos e defeitos inerentes à vida comum.
As histórias, contos e cartas de Lovecraft acertam muito na prosa, fruto de uma cabeça perturbada, mal resolvida, isolada e capaz dos pesadelos mais tristes e assustadores, e como contrapartida, geraram escritos de qualidade e assombro singular, que ultrapassam inclusive a figura segregadora e confusa de seu autor.
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