Peter David é um dos grandes nomes dos quadrinhos desde a década de 1980, tendo trabalhado com fases importantes de personagens clássicos como Homem-Aranha, onde voltou a lhe dar um ar juvenil que suas histórias haviam perdido, Hulk sendo principal responsável pela sua humanização, desconstruindo a caracterização preta e branca dada por Stan Lee – referência do clássico O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson. Além disso, foi o responsável pela melhor fase do Aquaman, dando um caráter mitológico ao personagem, transformando ele de fato em um rei mal-humorado, preocupado com questões ecológicas e sobre sua origem, tudo isso somado ao melhor visual que o personagem já teve. Duvida?
No início dos anos 2000, David tendo trabalhado com as histórias da Supergirl no passado, criou um Anjo Caído, uma personagem misteriosa que tinha uma ligação direta com a Supergirl. A personagem ganhou uma série própria escrita por David. Sua ideia era revelar Linda Danvers, a Supergirl da época, como a verdade identidade de Anjo Caído. David planejava transformar Linda em Anjo Caído e assim retomar Kara Zor-El, a Supergirl original, ao universo da época. Contudo, apesar do aumento de mais 50% das vendas, o título foi cancelado pela DC comics com 20 números publicados. Cerca de um ano depois retornaram com Kara Zor-El e nenhum crédito foi dado para o autor da ideia original.
Alguns meses depois, David foi contatado pela editora IDW para que continuasse publicando a história de Anjo Caído em uma série dentro da própria IDW. O roteirista fechou um contrato com a editora mas optou por reformular toda a personagem, para que os novos leitores não precisassem conhecer as histórias publicadas anteriormente pela DC Comics. Uma nova origem teria de ser criada para a personagem, já que ela já não mais seria Linda Danvers. Para isso, David contou com a incrível arte de James Kenneth Woodward onde reformulou toda a personagem, tornando-a, provavelmente, muito mais interessante do que tinha imaginado inicialmente. Após toda essa explicação chegamos finalmente a primeira história escrita de Anjo Caído dentro da IDW, a série Servir no Paraíso, publicada agora em um encadernado pela Mythos Editora.
Dito isso, finalmente chegamos na obra em questão, onde conhecemos um pouco sobre a história de Liandra, uma professora de educação física durante o dia e combatente do crime da cidade de Bete Noire durante à noite. No entanto, em Bete Noire, nada é o que parece, a cidade tem vida própria e é quase como um invólucro entre o céu e o inferno, comandada pelo magistrado, Doutor Juris. O roteiro se desenvolve em duas linhas narrativas, o passado de Liandra, e de como ela caiu do paraíso, narrados através de flashbacks, e a linha de tempo atual, onde o magistrado procura um substituto para sua função dentro da cidade e Liandra precisará impedi-lo.
Peter David trabalha muito bem a origem de sua personagem e as complexidades trazidas em sua personalidade, sua história é interessante e traz conceitos interessantes sobre livre arbítrio, fé, religião e Deus, que trazem uma reflexão que quadrinhos de super-heróis não costumam abordar. A visão de David é bastante crítica a religião em si e sua visão sobre a razão de nossa existência é bastante intrigante, o que por si só já vale uma olhar mais atento para o trabalho dele em Anjo Caído. Se tudo isso já não fosse o bastante, os painéis pintados por J. K. Woodward são absurdamente detalhados e belíssimos, remetendo a enquadramentos muito comuns no cinema expressionista alemão e o próprio cinema noir, que é uma referência do próprio David nesse trabalho.
Anjo Caído consegue um respiro no mar de publicações de quadrinhos de super-heróis, trazendo um roteiro coeso, sólido e criticando, de forma contundente e objetiva, a religião e sua forma de visão unilateral do mundo. Além disso tudo, conta ainda com uma arte incrível.