Steven Rodney McQueen é londrino, mas seus pais vieram da ilha caribenha de Granada. A adolescência, vivenciada na região oeste da capital, teve como ponto marcante o tempo em que estudou em Drayton Manor High School, onde, segundo o próprio cineasta, teve uma experiência ruim quando obrigado a trabalhar nos ofícios de encanador e construtor. Essa fase era particularmente conturbada graças a uma leve dislexia que sofria e ao fato de usar tapa-olho em razão de um problema ocular. Mais tarde, estudou arte e design na Chelsea College of Art and Design e também em Goldsmiths College. Se interessou por cinema quando ingressou na Universidade de Londres. Suas influências declaradas incluem: Andy Warhol, Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Jean Vigo, Buster Keaton , Carl Theodor Dreyer , Robert Bresson, e Billy Wilder.
Em 1993, McQueen apresenta um curta filmado em 16 milímetros em que dois homens negros (ele incluso como ator) se envolvem em um embate que transita entre a simples agressão e atração homoerótica. O diretor afirma que em Bear, filmado em preto e branco e apresentado no Royal College of Art, em Londres, a questão racial é secundária. O enfoque é no físico intenso, na tensão corporal e no equilíbrio entre sexualidade e agressividade, o que é revisitado mais tarde em Shame. A fita não possui sonorização, o que maximiza a imersão, torna o espectador ainda mais próximo da obra, recurso largamente usado em sua filmografia. Em Five Easy Pieces, de 1995, McQueen filma uma mulher em uma corda bamba e discorre sobre vulnerabilidade e força, temas semelhantes a Above My Head, do ano seguinte, que já se utilizava de experimentalismos para ilustrar a fragilidade humana e a persistência. O curta Deadpan, em que o diretor busca homenagear Buster Keaton, lhe rendeu um Prêmio Turner, e mais uma vez ele se vale do silêncio para causar uma experiência diferenciada no público. No decorrer dos anos, o realizador produziu outros filmes interessantes, como Charlotte (2004) e Static (2009).
Hunger (Fome, no Brasil), o primeiro longa-metragem que McQueen dirigiu, é pródigo em diversos aspectos. Primeiro pela temática, que demonstra o engajamento do cineasta com causas políticas e sociais. Segundo pelos maneirismos típicos do cinema europeu contemporâneo, com cortes rápidos e bruscos e variadas oscilações na mixagem. Steve faz questão de mostrar em seu primeiro longa quase todos os seus predicados. Voluntarioso, demonstra o que sabe fazer em posse da câmera. Este filme seria também o início da parceria com o ator teuto-irlandês Michael Fassbender. Amicíssimo do diretor, Fassbender ajuda McQueen a demonstrar a decadência do físico (presente em Shame e 12 Anos de Escravidão, mas sobre outros avatares) por meio do jejum voluntário dos revolucionários, especialmente na figura de Bobby Sands. A ideia do cineasta é mostrar uma narrativa quase documental: há uma longa cena de diálogo envolvendo Sands e o Padre sobre a greve de fome que está prestes a realizar; são 17 minutos sem qualquer corte, oscilação ou movimento de câmera. O policial filmado no início mostra os punhos ensaguentados. Hesitante, representa a parcela do contingente autoritário não contente em aplicar a repressão. A política britânica, vista por McQueen, inclui os grupos rebeldes do exército do IRA, abarcando em sua crítica a esquerda contrária ao governo Thatcher. O braço forte da lei é absolutamente intransigente, duro e cruel com seus opositores e os presidiários são submetidos a humilhações.
Shame é iniciado com uma tomada sobre a cama de Brandon, que abre os olhos, suspira e claramente busca a naturalidade nos atos cotidianos, do ato de acordar e do fazer tarefas cotidianas. Nada em sua rotina é comum, em razão da parafilia que possui. Sua sexualidade é despertada de uma maneira agressiva, constante e nada saudável. A obsessão é encoberta por uma capa de normalidade difícil de sustentar, mas que, a duras penas, é mantida. A relação do herói falido com a irmã é curiosa, pois seus defeitos são inversamente proporcionais: a carência de Brandon é físico e ele tem dificuldades de se relacionar emocionalmente com outras pessoas. Com Sissy (Carey Mulligan) é obviamente o contrário: ela suplica pela presença de seu antigo par. Ambos são assombrados por algo marcante e traumatizante do passado e que os mantém afastados a priori e contraditoriamente também os faz unidos. O registro emulando um documentário retorna em Shame: a lente quase não se posiciona contra Brandon, somente o observa de longe praticando seus atos imorais.
A expressão de quando quase se vê pego ao ter seu HD analisado é impagável. Brandon sofre para encarar a moça que quer namorar. Dócil e delicada, ela não consegue fazê-lo atingir o ápice. O psicanalista MD Magno, após revitalizar ideias freudianas, chega a uma conclusão, denominada pulsão da morte, que prega que haver deseja não-haver. Trocando em miúdos, seria o homem caçando o orgasmo absoluto a todo momento, e mesmo quando ele não mais consegue atingi-lo, utiliza-se de estimulantes pra continuar o círculo vicioso – a condição de Brandon é esta, o conceito em sua vida não poderia ser mais literal. A causa da parafilia não é explicitada, nem aventada, porém os momentos em que aproximam de uma discussão sobre o problema são quando o personagem assiste a desenhos, referência à infância e ao provável período do trauma. O torpor auto-induzido de Brandon é uma estratégia de fuga; ele não quer olhar para a própria realidade ou encarar os fatos de frente e nem quer lidar com a questão de Sissy, a princípio. Mesmo quase participando de uma segunda tragédia familiar, Brandon parece não ter mudado seus hábitos, dando indícios de que retornaria a seus pecados.
François Truffaut escreveu certa vez que, enquanto primeiro e segundo filmes de um diretor são exercícios de auto-descoberta e aperfeiçoamento, o terceiro longa geralmente tem seu refinamento no conteúdo e na forma e por isso é o primeiro que é justo julgar como esforço cinematográfico válido. A carreira do diretor de Hunger e Shame é a prova disso, pois é em 12 Anos de Escravidão que McQueen finalmente atingiu a maturidade e conseguiu alcançar a atenção do grande público sem incomodar o conjunto de fãs que já havia conquistado. Ainda demonstrando um grande engajamento político, o roteiro, baseado na auto-biografia de Solomon Thurp, escancara uma realidade triste, que, apesar de ser supostamente superada, contém em seu plot um conjunto de situações muito semelhante com a realidade mundial atual, vide a segregação que parcela da população negra sofre, de forma velada ou não, nos quatro cantos do globo.
Steve McQueen atinge o auge de sua carreira com apenas três longas-metragens no currículo. Seu último filme ofuscou produções de temática parecida, como o bom O Mordomo da Casa Branca de Les Daniels, e além de ter em seus elementos o ativismo racial, apresenta também um refino na fotografia, direção e reconstituição de época. Os sentimentos vociferados pela sua inquieta lente são muitos e vão desde o comportamento passivo diante da exploração até a rebeldia justificada, muito bem construída na jornada que o personagem de Chewtel Ejiofor protagoniza.
A pouca idade – 45 anos a serem completados em 9 de Outubro de 2014 – garante a promessa de uma carreira ainda mais competente, possivelmente superada em breve, dada a sua juventude e clara evolução de película a película. Muito do artista em estado bruto ainda permanece na obra de McQueen, o que não precisa ser analisado como equívoco, mas como um modo visceral de encarar a arte. A impressão que fica é que suas realizações podem e devem melhorar, uma expectativa de crítica e público de que isso se concretize. Que seu olho clínico para as situações cotidianas prossiga tão atento e ainda mais refinado com o passar dos anos e das experiências que o diretor adquirirá com a execução de novas obras.