Khmer Vermelho era o nome dado aos seguidores do Partido Comunista do Kampuchea, que foi soberano no Camboja, de 1975 a 1979. Há poucos registros sobre está época e o intuito de Rithy Pahn é resgatar um pouco desta história. O cunho emocional da obra logo é explicitado, focando uma narração do passado através de simpáticos bonecos, lembranças de tempos mais simples, mas nem isso era sagrado, visto que às vezes, subvertiam os brinquedos, mostrando-os pegando em armas, se alistando meio que a força. Os bonecos servem para preencher as lacunas cuja história oficial não conta, segundo é claro as memórias de Panh e de outros homens do povo.
O intimismo faz parte da narrativa, assim como a pessoalidade. O narrador tinha apenas 13 anos no começo da narrativa, e até por isso a memória é muito viva e o sofrimento ainda aparenta ser fresco em sua vivência. O desenrolar dos fatos mostra um povo sofrido, escravo dos interesses de seu governo ditatorial. O contador da história afirma que para a identidade do povo sobreviver, é preciso esconder uma imagem de cores diferentes daquelas vestes pretas padrão, impingidas pelos mandantes de Kampuchea, uma imagem internalizada, pois se estivesse exposta, esta seria morta.
As rachaduras nos rostos dos bonequinhos servem para mostrar o quão arranhada estava a percepção da própria figura do povo, eles se sentiam derrotados, porque eram humilhados e punidos; caso não se sentissem humilhados, às vezes pela restrição de bens que em momento nenhum representavam luxo, como a proibição de ter-se panelas. Os cidadãos só tinham colheres, sua comida era racionada, enquanto os vigias tinham fartura, e não escondiam isto, nas palavras de Pahn, para reeducar tinha que se começar por destruir.
A dor e o desprezo mantinham o povo unido, nem tanto por um ideal, uma vez que a aflição de suas almas não permitia pensar tais coisas, e o não acesso a informação também impelia-os a sofrer calados e sem perspectivas de melhora. A cooperação entre eles acontecia pela falta dos bens básicos, o intuito era a subsistência. Em alguns momentos, o diretor mostra as partes agridoces de sua vida, acompanhando os sets de filmagem que passavam por sua estalagem, e que não por acaso, traziam cor e canto à sua vida, além de uma ponta de vislumbre a esperança de conseguir sonhar, e talvez até realizar tais desejos.
Mas o foco é mesmo na privação, privação de alimento, cerceamento da vida e completa inexistência de direitos. As imagens que o governo fez questão de manter vivas, são as dos acordos políticos, dos líderes ditatoriais se reunindo e celebrando, brindando com champanhe a boa colheita que vinha, às custas da população escravizada, que quando conseguia sobreviver, tinham uma sub-vida. A manipulação de imagens é flagrada, como demonstrada pelos únicos vts que sobreviveram, numa colcha de retalhos feita por Pol Pot, que registra somente o que ele quer, numa realidade inventada, muito distante do verossimilhante sofrimento de sua população. Tal ignorância é ofensiva e desrespeitosa com quem morria trabalhando na floresta.
O autor declara algumas vezes, na duração da fita, que ele é uma criança. A afirmativa serve para este não se distanciar do sofrimento alheio, relembrando que o padecimento da “gente” é o seu, mas revela algo ainda mais pessoal, o de que seu sentimento e sua alma ainda está um pouco presa àquela época tão difícil, e que os ecos do flagelo e da desgraça ainda o abalam demasiado, e influenciam a sua arte – por isso a feitura deste A Imagem Que Falta, que é tocante, não apelativo e toma muito cuidado ao explicitar o infortúnio do povo e a desgraçada atitude dos poderosos. O luto é difícil, o funeral interminável, a poesia de Panh tenta aplacar um pouco da árida vivência das pessoas que não estavam na montagem videoclíptica feita pelo regime, e explicita o real cenário político de Kampuchea.
Olá, Filipe. Achei muito interessante seu texto sobre o filme e ele particularmenteme tocou bastante em diversos aspectos – sobre a impossibilidade de representar de forma completa uma experiência tão traumática e sobre a ausência de registro imagético em uma época em que vemos um excesso da imagem. Mas o que mais me marcou nesse filme é como, ao revelar a fragilidade do seu “artifício” (os bonecos de barro, os cenários miúdos e os cromaquis precários), o diretor me mantém distanciado emocionalmente, pois estou constantemente me lembrando de que estou diante de um filme. Mas, quando vou ver um filme de guerra “convencional” (com atores, efeitos de ponta e tal…) não percebo como aquelas emoções são mais artificiais do que aquelas que senti com os tais bonecos de barro… Esse é um filme realmente marcante!
Certamente o objetivo do realizador não era “só” documentar o que ninguém mais fez, mas mostrar que a história é feita de pessoas, que sofrem, que sentem, que amam, que tem fome, que vivem. Por isso, o toque emocional cai muito bem.
Exatamente, Filipe. O cambojano não me induz a essa emoção de maneira artificial, mas a inteligência dele está justamente em me permitir completar esta “imagem que falta” ao tornar esta ausência explícita para quem assiste.
Tb gostei muito do filme, o problema dessa visão intimista é que ela é tb infantilizada politicamente, podendo dar munição a esse anti-comunismo tacanho na moda hoje em dia, dos Constantinos da vida. Claro que isso não é culpa do filme, que cumpre o que se propõe. Mas a boçalidade não tá nem aí pra isso…
É infelizmente o risco disso se tornar munição para essa rapeize é grande, mesmo que esse seja um serviço de pura desonestidade ética e ideológica. Pensei a mesma coisa quando vi pela primeira vez.
No entanto, prefiro focar na sensibilidade do diretor e na propriedade de falar de uma situação complicadíssima, de um modo verdadeiro, como só quem viveu esse drama poderia falar, sem ignorar os aspectos históricos que envolviam toda a questã.