A culinária como metáfora ao cinema. E não só ao Cinema, mas a qualquer arte: Passou do ponto e o caldo engrossa pra nunca mais voltar atrás. É puro tempero, pura experimentação a partir de um paladar refinado, mesmo a favor de quem não sabe distinguir o bom do ruim, um queijo assim, um queijo assado; um quadro sagrado de um quadro estragado. Não há remendos ou curativos, isso é arte médica. Seja na panela ou numa câmera, a metalinguagem entre duas ou mais formas de expressão se faz valer na formação de um manifesto emocional ou cultural, na compatibilidade entre visões de mundo que se chocam e viram uma só. Lindo, tudo na teoria é lindo, mas em A 100 Passos de Um Sonho a culinária é mero subtexto e coerência extravisual de duas culturas (indiana e britânica), usando uma combinação de ingredientes como contraponto realmente fraco a pré-conceitos sociais, ou seja: uma mera desculpa para fazer o filme parecer comida fina, quando é só arroz e feijão requentado.
A história do filme. Uma história de superação. Após perder a matriarca num incêndio doméstico, uma família liderada pelo pai e pelos sonhos deste e do filho mais velho se mudam de continente, em busca do sucesso e acolhimento europeu, além das espetaculares cores do oeste regional que se refletem na matéria-prima do que a família sabe fazer: cozinhar. Acabam atraindo a atenção da Madame Mallory (Helen Mirren), que como numa fábula de Pavel Bazhov não tenta lhes passar para trás e garantir a soberania de seu restaurante tradicional (como diz o slogan do pôster), mas quase os acolhe, com amor e admiração conquistados pouco a pouco pela própria família Kadam, numa excessiva duração do filme. Nada mais convencional, essa versão de Ratatouille no mundo real. Só não vale perguntar quem seriam os ratos se a visão do filme não fosse fabulesca…
O Cinema como metáfora à culinária. Como captar com a íris de uma câmera o frescor (e o vigor, o brio) do ambiente e mixar, com a força visual de um bólido errante na tela, a infinita abundância de cores dos sítios franceses e âmbitos urbanos de Paris, ao que é mostrado no prato, em todo seu colorido que vem destes lugares? A fotografia do filme, resumindo, é espetacular. Uma cena, em especial, quando um dos casais nessa história dividida entre realização pessoal e sucesso comercial, caminham juntos pelos prados cintilantes durante a aurora crepuscular, é absolutamente exemplar a beleza que surge em nossos olhos, e debulha em prol de qualquer conceito sensorial a favor da imagem, degustada pelos nossos olhos. Quanto aos ouvidos, a trilha-sonora cumpre seu papel primordial e nada destacável a quem não se impressiona fácil, aqui, regida pelo famoso A. R. Rahman, o maestro da boa trilha de Quem Quem Ser Um Milionário?, que sabe a hora certa para pincelar no prato seus timbres extra-diegéticos, em certos momentos-chave do filme. Ainda assim, o choque musical entre ocidente e oriente em As Aventuras de Pi e Viagem a Darjeeling, principalmente o segundo, é apenas ‘‘mais completo”, para não usar de superlativos.
Mas aonde está a alma do filme?, é a pergunta. A 100 Passos de Um Sonho é motivacional como deseja ser, ou só um filme para assistir antes de dormir e ter bons sonhos? Os matizes da culinária apresentada, e sem uma introdução adequada ao espectador que gostaria de conhecer mais do que rola nos comes e bebes da Índia, fazem relevo ou oposição ao brilho dessa história de esperança e sonho em família? A resposta é não, eles não fazem, e o filme nem chega perto de fazer, pura e simplesmente por não tentar não se ater ao lugar comum dos ‘‘filmes-estômago”. Um subgênero que já nasceu saturado esse, das iguarias e petiscos, que encontra na sua essência a razão para se colocar no Cinema, pois assistir a um filme é afinal saborear uma iguaria com os cinco sentidos, mas entendê-lo é comer de olhos vendados.