Certa vez ouvi um religioso proferir a seguinte frase: “A prova incontestável da existência de Deus é o fato de que, mesmo totalmente isolado da sociedade, o homem sempre achará algo que julga superior a si próprio”. Duvido que tais palavras tenham sido originalmente ditas por ele, mas, sem dúvida, isso foi dito por alguém em algum momento. Não posso depor pela existência de Deus, mas digo que a frase está correta ao constatar que o homem necessita de entidades maiores para adorar, respeitar e temer. Aparentemente Neil Gaiman também defende tal tese, tendo feito dela a pedra fundamental para seu mais ousado, controverso e reconhecido romance: Deuses Americanos.
No texto somos apresentados a um indivíduo que atende por Shadow, um presidiário, aparentemente sem nenhuma característica especial, prestes a ser libertado por bom comportamento. Um sujeito como qualquer outro, com uma vida complicada e inteligência mal aproveitada, cujos únicos interesses são ficar longe problemas e aperfeiçoar seus truques com moedas. Eis que, quando enfim reinserido à sociedade, a vida de Shadow muda drasticamente, e, levado por um estranho homem, o notório Sr. Wednesday, com uma igualmente estranha proposta, tem inicio uma viajem pelo lado oculto dos Estados Unidos.
Destoando seu inicio pouco impressionante, a narrativa parece crescer conforme estranhezas, seja em forma de situações ou entidades, vão ganhando espaço. Shadow descobre o quão raso era seu entendimento do mundo, e, com total apatia, percebe que seria melhor se assim tivesse continuado. Enquanto nosso herói vaga na escuridão da ignorância, os muitos personagens que aparecem subsequentemente, dotados de facetas que não permitem ao leitor manter-se indiferente quanto a eles, ostentam conhecimento e imponência dignos das deidades que são.
O panteão apresentado é deveras cativante, porém, ainda mais impressionante que a presença dos deuses, é a não diminuição do ser humano perante estes que desperta o interesse do leigo, fazendo de nossos semelhantes e de sua psique um ponto mais relevante que uma eminente guerra. Enaltecendo a figura humana, Gaiman expõe a controversa ideia de que, em busca de alento, o homem conjura as divindades; de que os deuses são dependentes de nós, e não o contrario.
Não se sobressai no livro um gênero em particular; em suas linhas o autor habilmente amalgama aventura, suspense, fantasia e mesmo road trip com pitadas de horror e de um humor cínico, culminando em uma peça literária que questiona a natureza humana, suas tradição e atual formação social, enquanto diverte e empolga a cada virada de página. Gaiman brinca com o leitor e com sua própria história, perdendo-se em devaneios e conceitos paralelos, apresentados como contos desconexos dentro da trama – pequenas histórias que não influenciam a jornada de Shadow, mas enriquecem o crível universo no qual foi lançado.
Mostrando ser aquilo que seu protagonista almeja tornar-se, Gaiman, como um verdadeiro mestre da prestidigitação, guia nosso olhar para onde deseja e nos conduz a bel-prazer, rendendo espanto e deleite a seu público. O britânico desprende-se de qualquer fórmula ou rótulo na elaboração e condução de Deuses Americanos, entregando uma notável fantasia urbana.
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Texto de autoria de Alexandre “Noots” Oliveira.
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