Esse é um “filme de cachorro” que não vai passar na Sessão da Tarde; tampouco despercebido. Deus Branco é o clássico moderno que não encontra espaço na TV aberta brasileira (e em boa parte da mundial) para ser reconhecido por tudo o que pode ser. Um manifesto positivo, cheio de conflitos enquanto Cinema, em prol da força que uma amizade sem interesses ou segundas intenções carrega em si, no desenrolar de uma trama de estrutura clássica e soluções surpreendentes para todos os tipos de público. Mas se o perfil da plateia é tão amplo, por que a televisão atual não alcança a mínima propriedade de exibir um dos melhores filmes da década, até agora? Porque a programação hoje em dia não dialoga, em qualquer nível de reflexão, ou combina a frente do grande feito de Kornél Mundruczó, cultuado em Cannes 2014 junto de Mapa para as Estrelas, Leviatã, Timbuktu, entre outros, mas sendo de longe o melhor exemplar de Cinema em estado bruto no festival, contando uma história da forma mais competente e ainda divertida possível, porém com ambições maiores do que apaziguar nossos corações com a graça e a tragédia que habita este mundo, apesar de facilmente conseguir esse objetivo conosco. É impossível ficar indiferente e não se admirar com a escala que tudo vai tomando, ao longo da exibição.
Desde as primeiras cenas, percebe-se que no universo da história a crueldade do ser humano não possui limites, também. A partir das discussões sobre o lugar que um cão de raça toma na rotina de uma família, o bicho é separado a força de sua dona, a menina Lili, de treze anos, que o considerava um irmão. Indo atrás dele, se dá conta do mundo implacável que em alguns anos terá que enfrentar como mulher, mas não poderia nem sonhar (assim como nós, o público) com o que aconteceria do simples ato de revolta da dona, e principalmente, do seu cão, que em certo momento, já não é mais dela: É do mundo, tornando-se fruto da necessidade de sobreviver. Deus Branco é uma fábula bruta e sensível, ao mesmo tempo, na qual O Flautista de Hamelin encontra O Planeta dos Macacos, aonde, se a ruindade do animal humano é infinita, cabe ao cachorro expressar aspectos de “humanidade”, como companheirismo e benevolência, cada vez menos ligados às pessoas e mais voltados ao comportamento de cães e gatos. O filme não quer provocar vergonha, ainda que possa, mas a nossa reflexão, ainda que inconsciente.
O excluído quer se tornar o opressor, porque sim. Porque quer ter vingança, quer sentar do outro lado da mesa e jogar com as cartas que o excluíram, se sente no merecimento disso, pois provavelmente passou por muito para chegar ali. O que move as sociedades é o sexo, e o sexo, bendito seja Oscar Wilde, é poder, afinal. No fenômeno (esquecido) dos rolezinhos, em 2013, dos jovens de favelas em São Paulo que queriam ser notados em shoppings de luxo, atraindo a repulsa provocada na mídia que defendeu passivamente, é claro, a volta daquela “gente diferenciada” ao portões da favela, canil humano por razões muito mais cruéis do que se pensa, estava pulsante uma revolta ancestral de exclusão, ostentando agora o tênis Nike que os playboys usam, sem se importar com isso. Quem não tem liberdade se importa, e vê até o valor do conceito. É normal, e constitui-se em todos os cantos do mundo, até mesmo em Budapeste, na Hungria, sendo “a volta dos que não foram”, a volta dos que não sumiram na carrocinha que apaga tantos sonhos do mundo, o clímax sócio e antropológico de uma fábula que de ingênua, orgulhosamente não ostenta nada.
Também foi Wilde quem aponta: “O descontentamento é o primeiro passo na evolução de um homem ou nação”, e nesse caso, de um cão. Vários, centenas de indigentes, desde pitbulls a beagles, que como milhares de homens e mulheres (não registrados no filme) obrigados a pertencer a uma condição inglória, se apoiam no soberbo caráter metafórico da obra alemã (revestida por um tratamento ímpar na importância de cada arco na história, e na manipulação do impacto que cada um pode ter) e andam os vira-latas pelas cidades, rumo ao fim do arco-íris nunca prometido, mas sonhado, à procura de um bem-estar que foge deles, fadado ao alcance da mão que circo e pão nos dá.
A natureza do ser que caça recusa-se ser caçada, ser vítima, e nesse inconformismo que faz o animal mostrar dentes e garras, constitui-se um filme poderoso e à flor da pele, onde João e Maria escapam da casa da Bruxa, e só não a liquidam se forem contidos pela descoberta que só a música e o amor, essa redenção brega que ainda funciona, salvam o mundo e concebem às raças em conflito o sentar, o equilíbrio de forças, e o tempo para repensar se a paz ainda é possível no convívio entre as diferenças. Deus Branco é uma fábula retumbante, e que usa da selvageria das espécies para discursar sobre a humanidade – e a volta dos rolezinhos, por favor. Grande filme.