O grotesco já começa na introdução do romance de Gillian Flynn, através de uma macabra letra de canção de roda. Lugares Escuros trata da interna maldade humana e utiliza-se do trauma de sua personagem principal, Libby Day, que assistiu à morte das figuras femininas de sua família, sua mãe e irmãs, no estranho culto conhecido como Sacrifício Satânico de Kinakee, através das mãos de seu irmão mais querido, Ben Day.
A rotina de Libby inclui a completa alienação cotidiana. Isolada do mundo, sem companhia e trabalho, vive da renda de uma poupança, guardada em virtude do trágico acontecimento, por longos 13 anos. A intimidade da moça é exposta assim que o conto se inicia, por meio da narração em primeira pessoa, tornando o leitor confidente da resignada moça, já adulta e prestes a ingressar na comum vida do americano médio.
As detalhadas descrições de Libby mostram sua aversão às pessoas ao redor, uma visão que a aproxima da mórbida misantropia, já que exala um desprezo por hábitos e manias comuns de sociopatas e agorafóbicos. Na verdade, são reflexos da autocomiseração e do ódio próprio, graças à letargia que o crime provocou no que até então chamava de vida.
O desprezo pelo ordinário é retratado nas poucas vezes em que Day tenta ir a público. A começar pela descrição do livro de autoajuda que autorizou outras pessoas realizarem em seu nome. Segundo ela, um arremedo de sentimentalismo barato que proporcionou a ela uma das poucas oportunidades de renda que teve na vida. Mais uma vez, essa chance retorna para assombrá-la e ajudá-la a superar a crise financeira, com uma consulta que lhe renderia alguns dólares.
A oportunidade parecia tentadora, ao menos até ser apresentada na íntegra. Consistia em uma reunião com aficionados em crimes bizarros, o que fez Libby revelar seu mais profundo desprezo por seu irmão matricida, Benjamin, preso e jamais visitado por ela. A estrutura narrativa causa uma contradição na fala da menina, já que revela traços da intimidade pré-crime, emulando a tristeza ao comentar o fatídico crime que viveu.
As surpresas começam quando Libby “pousa” no clube com seu pecado capital de subestimar as pessoas. A citação de cada uma é realizada por descrições genéricas, impessoalizando os membros. Um claro mecanismo de defesa da personagem, que se sente ofendida em cada discussão sobre as incongruências relativas à sua versão dos fatos quando criança, situação piorada com a presença das fotos que exibem seus entes queridos falecidos. Nem mesmo a variação do contador de história consegue ser mais difusa e perturbadora para Libby do que a sensação de, talvez, ter vivido uma mentira. Ela chega a ponto de precisar apelar a uma alternativa de fuga comumente utilizada pelos mesmos conservadores que tanto desprezava.
A troca do foco de protagonistas entre os capítulos causa um efeito curioso e nada inédito, chegando a irritar o leitor no início. Ainda que a sensação mude no decorrer da leitura, uma vez que o mergulho na intimidade dos Day se faz de modo gradativo e quase nada desigual, toda a estrutura favorece a Libby da contemporaneidade.
No entanto, mesmo com tantas viradas – e com um leve problema de ritmo, que produz no leitor algumas vezes a sensação de déjà vu, apesar do tamanho do livro -, a desolação da protagonista é sem precedentes. Escancara-se uma situação de total desapego de boas sensações, sem qualquer alento para suprir a carência afetiva que lhe assalta.
Os capítulos finais servem para aumentar a carga de adrenalina e reviver as sensações traumáticas de uma protagonista que jamais pediu por heroísmo e justiça. Pelo contrário: sempre foi conhecida como alguém solitária e que não precisava expor sua vida, excetuando a questão financeira. Se a trama de Lugares Escuros é ordinária, a fluidez da escrita de Flynn compensa o saldo do romance, tornando tudo mais aceitável, especialmente pela personagem principal, uma garota antissocial mas absolutamente crível e empática.
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