Começando pelos acordes pontuais de Nino Rota, a viagem fantasiosa pela luxúria e usura de A Doce Vida exibe seu caráter seguindo a esteira de estudo dos dramas humanos através da interpretação junguiana, comum nos trabalhos de Federico Fellini. Marcello Mastroiani, fiel companheiro do diretor, dá vida ao jornalista Marcello Rubini, que transita na alta roda italiana, convivendo de modo privilegiado com astros e estrelas, se pondo em níveis acima dos urubus chamados de paparazzi. A trajetória do comunicólogo passa pela poesia e depressão inerente a psiquê do pobre bicho homem, que insiste em se julgar racional, especialmente nos ditames sentimentais.
Marcello guarda algumas semelhanças com seu criador, servindo como alterego do Fellini jovem, quando ainda era um simples jornalista, e analisava ao longe o glamouroso mundo das estrelas italianas. A futilidade e bajulação as figuras afamadas é flagrado em detalhes sórdidos, ganhando capítulos reais com a personificação de Sylvia (Anita Ekberg), que faz as de figuras bem quistas na época, desde óbvias como Marilyn Monroe, até outras. O factoide da perseguição de Marcello esconde uma relação fracassada, do funcionário de periódico que ignora sua cônjuge para viver um luxo que não é seu e que não lhe cabe.
Mesmo tentando fugir, Marcello não resiste a comum idolatria ao ícone de beleza feminino, como se existir fosse somente uma desculpa para desfrutar ao longe de algo tão ímpar. A mistura entre um corpo escultural, personalidade magnética e uma desatenção cativante fazem de Sylvia um personagem rico, real e irresistível, tanto no âmbito sexual quanto na figura de inveja e admiração dos que a cercam. O interesse por coisas triviais faz ele se apaixonar ainda mais pela mulher, tornando mesmo questões cotidianas em eventos cósmicos, tornando banhos em chafarizes em eventos mágicos, indiferentes ao tempo e a ebriedade comum de quem vive uma rotina de excessos.
O protagonista se põe em uma posição de onipresença, como observador universal, mas sem onipotência, já que não lhe é comum interferir muito no operar daquele universo habitado por deuses. A distância do homem com as figuras idolatradas é a mesma entre a Terra e o Sol, e ele só se atreve a ameaçar cobrir esse trajeto, mantendo distância dessa realidade, mantendo-a em uma respeitosa longitude dos astros que conhece, aceitando humildemente até seus insultos.
A realidade de Marcello não demora a chegar, através do comum vitimismo de Emma (Yvonne Furneaux), uma namorada desconsolada, que se lamenta por não estar presente na maioria das aventuras de seu pretenso par, se tornando uma pessoa que claramente não está no mesmo momento amoroso que o homem. É da parte desta contraditória pessoa que surge a alcunha de hiena, dita aos fotógrafos sensacionalistas que seguem os entes notórios, mostrando os dotes que a fazem ser o álibi amoroso do jornalista, ainda que seu papel seja, na maior parte dos dias, decorativo.
A reflexão de Marcello sobre o que faz no presente e o que pretende fazer no futuro é parte do ensaio ideológico de muitos dos que se dedicam a crítica ou a comunicação, fruto do desejo de estar perto da arte que ainda não se sentem prontos a exercer. Ao mesmo tempo que as palavras revelam um sentimento que pode ser encarado como pretensão, há também a conexão com dois fatores simples, com os sons comuns da natureza e a presença infantil, que faz alegoria à ingenuidade apaixonante dos não corrompidos pelas ambições dos adultos. O mesmo ambiente que produz essas sensações é a casa onde se discute a dignidade entre agir como analista de arte e a boa remuneração dos que reproduzem o discurso midiático fascista.
A jornada humana e profissional descrita na fita, os detalhes sórdidos da exploração da cena mainstream, elevam Roma a um epicentro cultural europeu e mundial, como era na época de seu Império. Fellini demonstra seu amor pela cidade e, sempre que podia, fazia de sua obra uma ode ao lugar que lhe presenteou com tantas histórias, a fonte de suas grande mentiras. O repertório felliniano era tão vasto que grande parte de seu texto era dedicado a desenhar uma análise dos tempos posteriores, o que o qualifica como figura premonitória, capacidade rara entre cineastas de toda história.
A melancolia, assinalada entre os momentos de pausa de Marcello, resulta em uma contemplação da depressão, comumente escondida entre os momentos de farra e excesso de bebidas e fumo. Não há tristeza que consiga manter-se incógnita pela eternidade, sequer por uma longa extensão de tempo.
Fellini consegue mostrar que a distância entre o depressivo e o apaixonado pode ser ínfima, praticamente irrisória quando ocorre a corrida pelo coração daqueles que Marcello ama. O personagem serve também como uma tela branca, onde experimentações a respeito da retórica sentimental são testadas, onde se exemplifica o abismo entre o discurso pretensamente desapegado da dura verdade que demonstra o vazio de quem não tem no amor o centro emocional de seu ser.
Marcello é um sujeito falho, humano na concepção mais íntima da palavra, capaz de atos belos e covardes, capaz também das maiores decepções, especialmente a respeito dos que ele achava ter uma vida perfeita, mas que acaba por ceder a uma tragédia pessoal, que se anunciava a despeito da falta de percepção do óbvio, provinda do homem que deveria analisar o cotidiano.
O desfecho inclui mais uma festa exagerada, onde lança mão de substâncias inebriantes que simbolizam as milhares de maneiras de fugir de si e dos dramas diários e recorrentes da intimidade humana. Nenhuma depravação, exagero ou escândalo é capaz de esconder a miséria presente no ideário de Marcello, assim como do sujeito ordinário que busca eternamente meios de se entorpecer e enganar suas próprias percepções de mundo, e esse é um dos múltiplos motes explorados no roteiro de Fellini, Enio Flaiani e Tulio Pinelli servindo como um belo estudo da perspectiva psíquica humana, passando por Jung, Lacan e Freud, sendo talvez o filme mais profundo em temas psicológicos não necessariamente ligados a paralelos junguianos, ainda que trate de arquétipos. A influência talvez tenha vindo do escritor não creditado Pier Paolo Pasolini, já que A Doce Vida possui um burlesco fantasioso voltado um pouco para o grotesco, abraçando a realidade. Ainda assim, usa a rotina para pavimentar o caminho até o âmago dos sentimentos do proto-artista, estudando a mente e a possibilidade de um Fellini no pretérito, ainda em formação, na fita que talvez seja a jornada mais pessoal de sua filmografia.