Filme duramente retalhado, ao ponto de ter que realinhar diálogos posteriormente já que os censores cortaram algumas falas originais, O Desafio é um filme de Paulo Cezar Saraceni e começa mostrando um casal discutindo sua relação em uma viagem de carro, pondo o próprio enlace amoroso em perspectiva, comparando-o com a situação política do país, citando nominalmente o golpe militar sendo lançado somente um ano após a tomada de poder dos ditadores militares.
O casal é vivido por Oduvaldo Vianna Filho e Isabella. A dupla passa seus dias juntos brigando, e em separado travam discussões a respeito da situação politica nacional, normalmente dentro de seu ambiente de trabalho, tendo nesses momentos conversas acaloradas a respeito da bipolarização da época, evocando a Guerra Fria e a paranoia com o comunismo que tomou o Brasil e grande parte do Ocidente.
Saraceni teve uma coragem extrema ao expor falas tão francas a respeito da conjuntura social pela qual passava o Brasil e todo o Mercosul, não à toa seu filme foi tão duramente cortado nas exibições que teve, antes até do Ato Institucional número cinco. A trilha sonora serve em fins diversos, além da óbvia função de reger as cenas com músicas, ainda serve de comentário metalinguístico de protesto, com atores e cantores – entre eles, Maria Bethânia, um performance impressionante de Carcará – como voz destoante da situação cotidiana e da opressão sofrida pelos personagens e povo, sendo esta a mesma situação do espetáculo Show Opinião.
A música instrumental, com um piano tocado enquanto a câmera passa por uma casa abandonada e destruída, em outro óbvio paralelo a degradação pelo qual passava o país, que chegava ao auge do seu subdesenvolvimento ao abrir mão das suas esferas democráticas. O filme é um marco não só por ser um manifesto contra o Regime Militar mas também por reunir em si os elementos do Cinema Novo, que era aos poucos deixado de lado até o ponto de ser completamente suprimido pela violento e ignorante entendimento dos poderosos mandatários da época.
O Desafio tem cópias precárias em qualidade, possivelmente ainda no rastro do revanchismo dos militares e simpatizantes do regime que tentaram se desfazer dos negativos que restavam. Como vários dos produtos dessa época, as fitas carecem de uma boa restauração, uma vez que são películas bastante antigas e o modo de armazenamento não favoreceu a propagação destes exemplares. Mesmo com um orçamento muito escasso, Saraceni conseguiria montar uma peça de rara qualidade e que discute como poucos o papel do burguês e civil nessa período histórico, não aliviando em momento algum para a classe média contemporânea, mostrando não só a conivência como pecado capital, como as fortes influências de tal classe na tomada de poder via autoridade, financiando as forças armadas em uma denúncia séria, concisa e poética em sua abordagem.