A obra de Thomas Malory, Le Morte D’Arthur foi uma das histórias que mais intensamente seqüestraram a imaginação e a admiração de John Steinbeck. Deve ter sido como com o Stephen King, que se surpreendeu tanto com o filme Três Homens em Conflito, de Sergio Leone, que não tirou mais da cabeça até não estar com os sete gigantescos volumes d’A Torre Negra prontos. No caso de Steinbeck, mais do que criar histórias inspiradas na de Malory (coisa que ele fez, basta olhar os livros dele) ele decidiu que as gerações contemporâneas precisavam conhecer essa grandiosa saga, ao passo que buscou escrever uma versão mais atual da história do Rei Arthur.
Thomas Malory escreveu suas histórias no século XV, época em que o inglês tinha outras características, outro modo de ser dito e escrito, o que, acreditava Steinbeck, tornava o livro menos acessível aos jovens de seu tempo, não mais acostumados às características pitorescas do inglês arcaico. Sua missão, portanto, era traduzir aquela linguagem para outra, menos rebuscada e mais próxima ao inglês atual, e preservar o coração das histórias, suas lições, seus sentimentos, suas reflexões, enfim, seu espírito.
Era uma tarefa difícil. Já na década de 50 Steinbeck acalentava esse sonho. Estudou profundamente Malory e escarafunchou todas as referências que pode sobre as Lendas Arturianas. Lia estudos, procurava por documentos da época, buscava manuscritos originais em terras inglesas, visitava os locais por onde os Cavaleiros da Távola Redonda tinham cavalgado e assim por diante. A empreitada lhe consumia muito tempo e esforço, mas ele parecia estar encontrando uma grande satisfação ao fazê-lo.
O resultado – ao qual temos acesso por conta da decisão de sua família – não foi publicado senão postumamente. Steinbeck, em suas correspondências, dizia que tinha perdido o fio da meada, não sabia mais aonde estava indo exatamente com aquela história. Apesar disso, terminou o livro e tinha o título já em mente: The Acts of King Arthur and His Noble Knights (Os Feitos de Rei Arthur e seus Nobres Cavaleiros).
O livro é bem menor que o de Malory, que, conforme a edição, chega a ter mil páginas. A linguagem de fato ficou mais acessível, sem os típicos rebuscos que Malory usou abundantemente em sua obra. Não que o texto de Malory seja ilegível, mas existem certas palavras que caíram em desuso, conjugações verbais não mais utilizadas e expressões que hoje em dia não fazem mais sentido.
As histórias de Arthur, as intrigas de sua corte, as jornadas empreendidas por seus fiéis cavaleiros, as tramas, as mágicas, as traições, as maldições, Morgana, Lancelot, Merlin e Excalibur, estão todos lá. As histórias tem a costumeira espirituosidade de Steinbeck e focam sobre uma questão que, creio eu, fazia muito sentido para o autor: a honra, o compromisso pessoal que unia estreitamente todos esses sujeitos. A cavalaria medieval em sua forma clássica, digamos assim, cultivava esses valores com afinco, coisa que a literatura e a tradição oral trataram de exaltar e romancear através dos séculos.
Colocar-se à sombra de Malory não é qualquer coisa, é uma tarefa hercúlea e potencialmente ingrata. Steinbeck nesse sentido manteve a humildade e não deixou sua imaginação distanciar-se dos marcos já abertos por Malory. Na ânsia de preservar os elementos que compunham o original sem se alongar demais, Steinbeck acabou colocando nomes demais em histórias de menos. A obra de Malory possui muitíssimos personagens e nomes (Tolkien certamente se inspirou nisso ao criar a Terra-Média e sua história), mas possui um escopo maior de trabalho, já que possui quase mil páginas em relação às pouco mais de trezentas que possui o livro de Steinbeck.
Isso, no entanto, está longe de fazer o livro menos atrativo. Por mais que saibamos que adaptações impõem limitações, elas também nos reservam boas surpresas, como no retrato de Lancelot, um dos personagens preferidos de Steinbeck. Ele ganha um aspecto mais caricato e, por mais que preserve a seriedade cavalheiresca, ganha em carisma. Mesmo a Morgana ganha um toque especial através das descrições sinistras de seus feitiços e intentos.
A edição que li é da Penguin Classics e traz quase cem páginas de cartas como Apêndice ao final do livro. Elas foram escolhidas por Chase Horton (um dos correspondentes de Steinbeck, ao lado de Elizabeth Otis) e ilustram as preocupações que norteavam o autor ao traduzir Malory para nossos tempos.
Se Steinbeck conseguiu realmente difundir as Lendas Arturianas da forma como pretendia, não temos como saber com certeza, mas que existe galhardia e algo de cavalheiresco nessa empreitada, isso podemos afirmar sem dúvida.
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Texto de autoria de Lucas Deschain.
Excelente, Lucas.
Fiquei curioso para ler essa versão da lenda de Arthur, vc sabe se isso foi traduzido por aqui?
Olá Júlio. Infelzimente não há uma tradução desse livro por aqui. Mas justamente pelo caráter de simplificação da linguagem que o Steinbeck pretendia, o inglês é simples, dá para encarar muito mais facilmente do que a história de Thomas Malory.