Talvez, e com deveras ênfase nessa tal ambivalência do “talvez”, não haja maior ambição a um cineasta do que recriar a mente de um homem, ser o espelho de suas ideias e nos fazer entende-las de modo crível, e ao mesmo tempo extraordinário, afinal, pela lente de aumento que é, ou pode ser, o Cinema, há também de se levar em conta o elemento do impressionar que a farsa fílmica da dramatização cênica carrega. Impressionar, contudo, através de um universo aonde somos guiados pelo ponto de vista de uma única personagem, suas relações, seus dilemas, sua empatia ou falta de, sempre foi uma das mais nobres maneiras de se organizar os elementos de um filme e nos entregar uma baita história.
Nos impactar através do que rege e do que é regida a personalidade de alguém (a quem o espectador precisa se identificar), portanto, acaba por ser em inúmeros casos de excelência artística um estudo de personagem catártico e intrusivo a um Avatar na tela que, ora, detém tantos traços de nós mesmos, maximizados numa narrativa que aparentemente não tem nada a ver com a gente, mas que através do nosso(a) guia, do nosso ponto de vista sintetizado em sua figura ambulante, acaba sendo reconhecível e atraente a nossa percepção mais básica na sua plenitude singular, seja através de uma personalidade muito bem construída, seja nas cadências de suas múltiplas interações na tela, feito Guido e as mulheres de sua vida naquela apoteose inesquecível de Federico Fellini.
Reafirmando, então: Nos impactar através do que rege e do que é regida a personalidade de alguém. Pois bem: Esse também é o resultado das grandes obras de arte, dos livros de Victor Hugo, dos filmes de Stanley Kubrick, das fotos de Vivian Maier, das sinfonias de Wolfgang Amadeus Mozart: outros tempos e mentalidades, ainda que acessíveis aos nossos sentidos em absoluto; deliciosamente imortais, diga-se de passagem. Abro esta crítica de uma forma tão alegoricamente reflexiva por tratarmos, aqui, de um filme que, perpetuando parte do que foi dito acima, nos absorve para sua realidade e nos faz esquecer por quase duas horas da nossa, no decorrer das vias impactantes da vida de um homem, e ao mesmo tempo, de um detetive, codinome Jim McLeod (Kirk Douglas, numa das atuações mais fortes da carreira).
Ele é a alma, a chave para decupar o espírito de Chaga de Fogo assim como o inesquecível Cody é para Fúria Sanguinária; ou ainda, indo além de Hollywood, pousando cá no Brasil, tomamos como exemplo da personificação da substância de uma obra a insuperável Ângela Carne e Osso, de A Mulher de Todos. Personas, entidades com vida própria dentro de uma obra que carregam em suas silhuetas, postura e no limiar de seus movimentos um universo inteiro de desdobramentos espetaculares. Na história em questão, finalmente, a direção do mestre William Wyler (indicada ao Oscar) dá ao roteiro contornos épicos de uma grande história — vide que antes do detetive McLeod entrar pela primeira vez em cena, fala-se tanto da reputação do cara que é impossível não ficarmos ansiosos para sermos surpreendidos não só por sua aparição, mas do que dela pode resultar. E resulta, até o fim hecatômbico de tudo, pra dizer o mínimo.
Douglas e os protagonistas de Chaga de Fogo tratam seus personagens como expoentes de algo maior, servindo a algo maior, e isso não poderia ser de fato melhor. Dado que a cenografia gira em torno de uma delegacia, onde coexistem os mais diversos tipos de avatares da justiça social e da marginalidade delinquente que essa depende para se fazer necessária, é a materialização preto e branca de um universo de crimes e meias verdades que serve de panorama, espécie de purgatório em todos os sentidos para as almas condenadas (sem exceção) que o habitam destilarem seus diálogos maravilhosos e seus jogos antiéticos de manipulação, não em torno dos crimes que aqueles homens e mulheres cometeram (ou não), não! Isso seria muito pouco.
O que interessa aqui não são os crimes, isso não só seria muito pouco senão superficial, para espectador míope que não enxerga direito o que move a história ter algo a comentar. Nem mesmo o risco de nunca serem selecionados é o alvo! O que importa ao filme, suas resoluções e por consequência para o incansável (e aos poucos percebemos, o impiedoso) detetive McLeod é a estrada, a linha de raciocínio entre os crimes que faz aquele universo, de alguma forma, se manter de pé, sempre à beira do caos como nos melhores filmes policiais, mas sem cair em colapso, contudo – e tudo através da força investigativa que o protagonista representa, vasculhando junto com a câmera de Wyler uma realidade cheia de segredos que, invariavelmente, nos seduz e nos arrasta para suas delineações finais, e iniciais. Wyler, mais famoso pelo “épico” Ben-Hur, era um grande estrategista de nossa atenção em qualquer tipo de produção sob sua batuta, sem dúvida nenhuma.
Nisso, Chaga de Fogo, esse belíssimo drama com toques de comédia e suspense (acredite, tudo muito bem equilibrado na projeção inteira) sem apelar à maniqueísmos de qualquer tipo assemelha-se, demais como o tempo provou, a outro clássico de aclamação crítica, e influência histórica que viria demais, o soberbo 12 Homens e Uma Sentença, de Sidney Lumet. Vale uma sessão dupla, aliás, para inflar ainda mais nossas reflexões a respeito de ambas as pérolas, porque não? Fica a dica.
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