Documentário de Lula Carvalho e Natasha Neri, Auto de Resistência traz dura e, infelizmente, comum rotina de muitas famílias que moram nas favelas cariocas, denunciando a quantidade assustadora de homicídios causados pela polícia contra civis no Rio de Janeiro, em especial os que são alegados como legítima defesa. O montante de vítimas investigadas pelo filme são normalmente acusados de serem traficantes, e o filme se dedica a colocar frente a frente as versões dos julgamentos dos casos nas varas dos tribunais do juri.
Boa parte dos bastidores das ações policiais são mostrados, esses com imagens de baixa qualidade, pois são câmeras de vigilância dentro dos veículos ou nos locais das ocorrências, quando não através das câmeras dos celulares das próprias pessoas alvejadas, ou de seus amigos, e esses vídeos servem como importantes relatos dentro do estudo que o longa traz.
O filme tem semelhanças enormes com os de Maria Augusta Ramos, em especial O Processo e o dueto Justiça e Juízo, não só por mostrar o quão frios são os processos jurídicos envolvendo os que são acusados de matar os jovens, mas também por acompanhar de perto os envolvidos no processo legal. Em alguns pontos, mostram-se políticos que são conhecidos do cidadão comum, tanto os que defendem os que morreram, como Marielle Franco e Marcelo Freixo, assim como alguns que desdenham tanto da luta por direitos humanos como também tratam a maioria dos vitimados com deboche e generalizações tolas, exemplificados pelo deputado estadual Flávio Bolsonaro. Esse tipo de postura bizarramente casa bem com a recusa de alguns policiais em deixar que pudessem ter suas imagens aparecerem nas filmagens que Carvalho e Neri faziam, talvez por receio da repercussão, ou talvez por não quererem estar em um filme que claramente escolhe um lado, o dos homens pobres que tiveram suas vidas brutalmente tiradas.
Os detalhes dos julgamentos passam por discursos semi prontas, em especial os que defendem as forças policiais, normalmente apelando para um moralismo pueril, quando não usando argumentos lugar comum de que os direitos humanos só assistem os bandidos, e não os policiais. É absolutamente lamentável que por parte de homens e mulheres que argumentam a favor da legalidade se usem de argumentos tão baixos e fracos para defender um sistema que claramente é falido e corrupto desde as instancias maiores, como os políticos executivos, até seus secretários, generais e chefes de batalhões.
Infelizmente, boa parte dos pontos que Auto de Resistência defende são tão alardeados e pedidos tradicionalmente que já não são novidade. Denuncias contra o genocídio de jovens negros nas favelas, o livre trânsito de policiais militares com somados números de homicídios claramente sem a falácia de que era “auto de resistência” e os choros das mães e de familiares são ainda freqüentes, e muito distantes de serem justificados minimamente. É lastimável que o filme de Carvalho e Neri ainda retrate uma realidade tão tangível, e é extremamente necessário que ele seja exibido, apreciado e discutido, pois em toda a simplicidade dos autores e em toda simplicidade da fala dos que protagonizam o protesto, se verifica um emocionado e realista discurso, que não se perde e que não se permite ser outra coisa senão um pedido ignorado por socorro, pelas autoridades e algumas vezes pela sociedade.