“O povo é o mito da burguesia”, disse certa vez Glauber Rocha referindo-se aos lugares sociais que cada um de nós ocupamos, o que isso implica na nossa vivência e, por consequência, o peso das nossas ideologias amigas ou não formuladas a partir de qual classe econômica pertencemos, fatalmente falando. Pra começo de conversa, é cruel e muito direto reconhecer um estudo de personagem e situação como Em Pedaços, filme alemão com uma atriz muito reconhecida em Hollywood após Bastardos Inglórios, a ótima e expressiva Diane Kruger, se baseando na importância da ‘casta’ popular de uma cidadã europeia posta numa condição limite, uma vez que essa perde marido e filho pequeno numa explosão aparentemente sem explicação alguma.
Um ataque de cunho xenofóbico e/ou terrorista talvez, ninguém sabe, uma vez que a família estava longe de ser burguesa ou estrangeira, com a violência irrompendo de forma cada vez mais niilista ao redor do mundo – quando a normalidade implode, os mais pobres são sempre os primeiros a sentir. O drama então se torna real na vida de Katia Sekerci, aqui na pele de Kruger num show de atuação ignorada pelas badaladas e narcisistas premiações americanas – típico. Sua vida após o choque inicial se transforma, e como presenciávamos essa metamorfose psicológica em primeira pessoa, acompanhamos seus passos numa investigação própria, rumo a chave do seu sofrimento. Encarnamos pouco a pouco os fragmentos de uma mãe e esposa em luto e que se recusa a não vestir um trabalho detetivesco ao invés de encarar o conformismo que apenas cultiva uma dor muito grande ao coração oceânico de uma mãe.
Contudo, ao mesmo tempo que sentimos a cada segundo a urgência e o pesar da situação, Em Pedaços é um filme que claramente se beneficiaria de vários elementos mais ricos e mais profundos e objetivos do neorrealismo italiano, aquele movimento cinematográfico dos anos 40 e 50 repleto de grandes figuras maternas a formar um mural de dramatização sobre questões muito semelhantes que Katia, sua família e agentes policiais precisam enfrentar em busca de uma solução – e principalmente, de culpados! O filme de Fatih Akin busca um naturalismo e a discussão sobre justiça e uso de drogas de forma muito focada e deveras intensa, sempre usando de closes como se investigasse nessas faces o segredo do universo. O longa de fato alcança suas presunções seja através de cenas interessantes de tribunal (quase documentais), seja através de mil e um diálogos conservados por uma iluminação, ambientação e performances absolutamente reais em sua encenação clara, e solta.
Eis aqui um suspense dramático que não se envergonha de carregar o máximo de naturalidades possíveis, e que se revela da metade ao fim não apenas um exercício dramático bem maduro e autoconsciente, mas uma desconstrução minuciosa do quadro psicológico de uma mulher abalada por um acidente que a afeta como um trem descarrilhado e que, para tentar juntar a lógica das coisas que foi espatifada nos trilhos da sua vida, Katia começa a duvidar se vale mesmo quase tudo. É bacana afinal, se valendo muito do talento de Kruger pra isso, o quanto Akin gera e aborda circunstâncias que vão revelando uma personalidade que ainda não conhecíamos de uma mulher tão normal no início, e que jogada aos extremos pode criar e desenvolver aspectos impressionantes para que seu luto não seja em vão.
Em Pedaços se vale dessa justifica acima de tudo e segue construindo de forma semi hipnótica seu discurso sobre justiça e xenofobia até o seu ótimo e conclusivo final, evitando discutir política propriamente dita e construir polêmicas fajutas sem nunca apelar tampouco para sentimentalismos, ou abstracionismos baratos, esse último sendo a arma dos diretores que não tem capacidade ou coragem melhor dizendo de realizar grandes obras a habitar a nossa seletiva memória afetiva.