A adaptação do livro de Ray Bradbury pelo mestre François Truffaut é, no mínimo, estranha. Excêntrica como deveria ser, dada a natureza da história, mas estranha. Truffaut, que junto de Jean-Luc Godard são eternamente os sinônimos da nouvelle vague francesa, é um grande esteta da imagem; e de fato é, sendo suas obras muito mais longínquas que a reles existência do homem. O diretor produziu inúmeras obras-primas reverenciadas na história da sétima arte, entre as quais os inesquecíveis Atirem no Pianista, Os Incompreendidos e Jules e Jim se destacam fácil na trajetória do artista que revolucionou o Cinema, indo de crítico a cineasta; de analista, a operário. O exercício sempre o seduziu, como bem nos é exposto em livros sobre Truffaut, sempre tentando ir além da cartilha e do senso comum produzidos nas veredas hollywoodianas desde os tempos de Frank Capra, King Vidor e Charles Chaplin.
E quem não gosta de uma distopia, tipo Mad Max e O Livro de Eli (esse último sendo um sucesso inexplicável no Brasil desde seu lançamento, em 2010)? Brincando com o pessimismo como se o mesmo fosse inevitável de se alcançar, essa não-utopia vê no horizonte algo não tão brilhante para nós, enquanto humanidade e coletivo que somos. Sendo assim, poucas coisas tão bem simbolizam a decadência da sociedade como a queima de livros contra a informação, e a verdade, algo extremamente característico dos tempos ditatoriais na Europa e na América Latina nos séculos passados. É claro que muitas publicações merecem ser queimadas (ou melhor, não publicadas dada sua qualidade questionável), contudo se a verdade liberta, eis a verdadeira vontade do poder: atear fogo na raiz do problema, a 451 graus na escala fahrenheit de temperatura, tão usada nos EUA como o célsius é usado no Brasil.
E qual profissão é mais emblemática ao fogo para dar início a essa caça aos livros, fadados às cinzas ao invés de condenados às traças? Bombeiros, é claro, que devotos ao fogo e não mais as mangueiras que o combatem, atiram suas chamas às bibliotecas da mesma forma que João Dória atira água nos grafites de São Paulo. Truffaut observa o ridículo e o absurdo de situações como essas do começo, ao fim, e através das mensagens oriundas do ótimo livro de Bradbury transmite com seus atores e mise-en-scène um simples recado, ainda na década de 60, quando a TV já era uma realidade: a verdade deve ser combatida, omitida, perseguida e desencorajada. A toda hora, chamados são ouvidos no quartel dos vermelhos, e a toda hora, pessoas num parque público são revistadas por aqueles que as querem alienadas, presas a um controle onde tudo está bem, e qualquer pensamento mais ousado é contra a normalidade e merece ter a vergonha de ser subversivo, e sumariamente repreendido.
Chegando ao cúmulo de queimarem uma casa que, como numa infestação de ratos estava infestada de livros clássicos, e preciosos em demasia, é bem esperado aos espectadores mais experientes que surjam certos conflitos nessa trama de total repreensão ideológica institucionalizada bem contextuais a trama, como o agente público cada vez mais enlouquecido que ajuda a propagar, e que se relaciona com uma moça que enxerga o quão inacreditável tudo isso é, ou o bombeiro tão viciado em intimidar o povo, a ponto de fazer o mesmo com seus colegas, ou seja: conexões simples entre personagens e piamente desenvolvidas, aqui. Abraçando assim pela primeira vez na carreira o Cinema do entretenimento, quase que puro e simples, apesar das óbvias analogias alarmantes que uma distopia pode agregar, Truffaut decepciona quem conhece o que ele foi capaz de fazer, e faz com que Fahrenheit 451 não seja nada marcante, por mais divertido que certamente seja.
Divertido pode ser mesmo o principal atributo do filme em questão, cheio de situações e conclusões bacanas, e que do começo ao fim rende momentos que mais parecem oriundos demais (devido a ambientação colorida e plastificada que a história se encontra) aos deliciosos filmes de Jacques Tati, de Tempo de Diversão. Apostando nesse universo criado em estúdio, tal como em Uma Noite Americana, Truffaut não tem vergonha de empregar cores vivas e saturadas num mundo ditatorial onde a ignorância precisa ser uma benção, de qualquer forma. Assim, os próprios fundamentos de uma distopia são regularmente reformulados, pois temos um futuro decadente visto graças a uma encenação proposta de uma forma linda, e bela. Ironia, claro, tornando o filme um exercício de adaptação dos mais desafiadores, mas sempre aquém do enorme talento que o diretor já expressou antes, e muito melhor. Seja como for, Fahrenheit 451 traz um final tão gostoso que quase seduz a percepção.