Mentira, todo mundo sabe, essa utopia praticamente impossível de, se cada um numa fila de espera escrevesse um livro sobre suas memórias ou expectativas, o mundo seria um lugar melhor – mentira. Também não é verdade que o herói não pode ser o vilão, ou os dois ao mesmo tempo, e nem por isso carece de ser chamado de “anti-herói”. Aqui, no caso do protagonista desta pequena preciosidade dramática de Paula Febbe, tudo é tão bilateral que enquanto o idoso Carlos Almeida remói sua vida (e seus crimes) entre senhas intermináveis de um atendimento hospitalar, percebemos que a realidade de uma vida é fragmentada demais para ser taxada de uma coisa só.
Suas cores são diversas, as faces de um homem vivido também, e o desconforto que advém disso interessa só a nós, que adoramos especular sem se envolver de jeito nenhum com o alheio, perdendo o nosso tempo com Big Brother Brasil e vídeos de ‘50 Fatos Sobre Mim’ de youtubers com nada a dizer. Por sua vez, Carlos Almeida é um vovô qualquer com terríveis segredos cuja imoralidade, de tão pesada que é, não o deixa esquecer. Numa leitura rápida e ritmada, dividida em capítulos e estrofes rápidas com alto o poder de síntese de Febbe dando o tom deste conto, o aposentado fica sentado esperando ser atendido pelo doutor, entre tantos outros idosos, enquanto seu pensamento voa guiado apenas por seus instintos psicopatas.
A autora paulistana, além de ser psicanalista, parece ter um prazer quase que inenarrável de adentrar e revirar uma mente destorcida como a do senhor Almeida, viúvo e que a partir disso, dessa revolta que fica alojada em seu âmago em perder a esposa num acidente de metrô, é capaz das coisas mais terríveis com crianças que não o devem nada, exceto, para ele, alguns minutos de prazer forçado e sem remorso algum. A psicopatia então casa com uma pedofilia crônica em Mãos Secas Com Apenas Duas Folhas, e alguns trechos cínicos e cáusticos nos causam uma revolta gigantesca que só alguém que conhece e tem coragem de desbravar a tensão e a perturbação que uma psique doentia esconde pode nos oferecer, toda vez que adentramos nela. Em seus segredos, amarrados em pequenos detalhes cheios de duplos sentidos.
Em troca, temos em mãos uma obra curta e de grande sensibilidade com seus contornos, seu potencial de mexer com os nervos do(a) leitor(a), algo cruelmente realista que narra o gatilho e as consequências de uma segunda personalidade destrutiva – ou seriam uma só? “As palavras, às vezes, são sangue”, diz o inofensivo Almeida, frágil aos olhos que não veem o que esconde sua aparência arcaica. Assim, a publicação de 2018, da editora Monomito, tem plenas capacidades literárias (igualmente incômodas) de acordar as nossas paranoias sobre a integridade das pessoas comuns que convivem conosco, a todo momento, incapazes e impotentes dos maiores horrores sociais que pensamos viver longe de nós. Eis um dos livros nacionais mais passivo-agressivos dos últimos tempos, e cabe a cada um de nós ler e descobrir o que isso quer dizer.