Categoria: Cinema

  • Crítica | À Sombra de Duas Mulheres

    Crítica | À Sombra de Duas Mulheres

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    Assim como em seu filme anterior, O Ciúme (La Jalou­sie), o diretor Philippe Garrel optou por filmar em P&B e película – o que dá um ar mais cru ao filme ao mesmo tempo que demonstra um ar nostálgico de filmes antigos. Além disso, a ausência de cor enfatiza a diferença entre a inexpressividade de Pierre (Stanis­las Merhar) e o fascínio causado por Manon (Clotilde Courau).

    Pierre e Manon são casados. São pobres. Fazem documentários que são seu ganha-pão e se viram como podem para sobreviver. Ele conhece uma estagiária, Elisabeth (Lena Paugam), que se torna sua amante. Ainda ama a esposa e não tem a menor intenção de se separar dela. Para ele, é natural “ficar” com ambas. Em certo momento, o narrador eventual verbaliza a argumentação machista que, por ser homem, ele tem o direito de ser infiel, afinal é da sua natureza. Por outro lado, Manon também tem um amante, apenas para se sentir amada, já que Pierre parece já não ter mais os mesmos sentimentos por ela. Ao descobrir isso, Pierre passa a olhar Manon com outros olhos – não exatamente num viés romântico, mas sim controlador. Mesmo depois de Manon terminar o relacionamento com o amante, Pierre a segue, querendo certificar-se de que diz a verdade. Clássico exemplo de “dois pesos e duas medidas”, já que ele sequer cogita terminar com Elisabeth.

    Vale notar o contraponto feito entre a traição de Pierre e de Manon. Enquanto Pierre e Elisabeth ficam reclusos, praticamente confinados ao minúsculo apartamento dela, Manon desfruta dos espaços públicos do café em que encontra o amante. Tem-se a impressão de que, enquanto o adultério masculino é introspectivo, o feminino é de certa forma libertário.

    O roteiro é bastante eficiente ao trabalhar a densidade e a tensão do tema ao mesmo tempo que inclui algumas cenas mais leves, não só como alívio cômico, mas de forma a dar verossimilhança à história. Afinal, nem tudo é tragédia. Por mais dramática que seja a situação, há sempre aquele momento de distração, de mal-entendido, de atos falhos que causam risos inevitáveis.

    O filme é um escrutínio da vida amorosa do casal, com seus altos e baixos, suas idas e vindas, mas no final é apenas mais uma variante sobre o tema infidelidade. Interessante, bem filmada, mas apenas mais uma.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Casamento Silencioso

    Crítica | Casamento Silencioso

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    Um dos filmes romenos que mais se destacaram no final dos anos 2000, Casamento Silencioso tenta encontrar sentido ao contar uma história real inusitada. Em uma vila romena dos anos 50 que vivia sob o domínio soviético, um casamento é interrompido após notícias da morte de Stalin. Como os oficiais decretaram luto de uma semana, eles comemoram o evento de forma silenciosa para evitar chamar atenção das autoridades.

    Para deixar mais palatável ao espectador a crueldade do ocorrido, o roteiro escrito pelo diretor Horatiu Malaele e Adrian Lustig recorreu ao burlesco para construir uma narrativa com leve tom de fábula. Os personagens são um dos pontos altos do filme, pois são tão únicos que acabam funcionando dentro daquele universo esquisito, que precisa ser daquele jeito para contrastar com a triste realidade que ocorre no final.

    A atuação da maioria dos atores é caricata e canastra. Nenhuma atuação se sobressaiu, mantendo a coesão de apresentar todo o vilarejo como um grande personagem. Em relação à direção de Horatiu Malaele, é eficaz dentro do que se propôs. O estranhamento daquele universo é menos sentido devido ao tom de comédia. A direção melhora quando o casamento passa a acontecer sem som algum, homenageando o cinema mudo. É memorável a sequência do telefone sem fio.

    Devido à crueldade que ocorre no final da narrativa, o espectador entende o tom do absurdo que o diretor optou. Malaele, como nós, usou a sátira para tentar compreender o que aconteceu: a reação desproporcional dos oficiais soviéticos com os habitantes de uma vila. A edição de Cristian Nicolescu e a fotografia de Vivi Dragan Vasili cumprem bem o seu papel, mas sem se destacarem.

    Casamento Silencioso vale a pena pois é um filme diferente que discute o delicado tema do papel da Romênia sob domínio soviético.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Oscar 2016 | Indicados e Ganhadores da Premiação

    Oscar 2016 | Indicados e Ganhadores da Premiação

    Melhor Filme

    Spotlight: Segredos Revelados (vencedor)
    A Grande Aposta
    Ponte dos Espiões
    Brooklyn
    Mad Max: Estrada da Fúria
    Perdido em Marte
    O Regresso
    O Quarto de Jack

    Melhor Atriz

    Brie Larson, O Quarto de Jack (vencedora)
    Cate Blanchett, Carol
    Jennifer Lawrence, Joy: O Nome do Sucesso
    Charlotte Rampling, 45 Anos
    Saoirse Ronan, Brooklyn

    Melhor Ator

    Leonardo DiCaprio, O Regresso (vencedor)
    Bryan Cranston, Trumbo: A Lista Negra
    Matt Damon, Perdido em Marte
    Michael Fassbender, Steve Jobs
    Eddie Redmayne, A Garota Dinamarquesa

    Melhor Diretor

    Alejandro G. Iñárritu, O Regresso (vencedor)
    Tom McCarthy, Spotlight: Segredos Revelados
    George Miller, Mad Max: Estrada da Fúria
    Adam McKay, A Grande Aposta
    Lenny Abrahamson, O Quarto de Jack

    Melhor Atriz Coadjuvante

    Alicia Vikander, A Garota Dinamarquesa (vencedora)
    Jennifer Jason Leigh, Os 8 Odiados
    Rooney Mara, Carol
    Rachel McAdams, Spotlight: Segredos Revelados
    Kate Winslet, Steve Jobs

    Melhor Ator Coadjuvante

    Mark Rylance, Ponte dos Espiões (vencedor)
    Christian Bale, A Grande Aposta
    Tom Hardy, O Regresso
    Mark Ruffalo, Spotlight: Segredos Revelados
    Sylvester Stallone, Creed: Nascido Para Lutar

    Melhor Roteiro Adaptado

    A Grande Aposta, Charles Randolph e Adam McKay (vencedor)
    Brooklyn, Nick Hornby
    Carol, Phyllis Nagy
    Perdido em Marte, Drew Goddard
    O Quarto de Jack, Emma Donoghue

    Melhor Roteiro Original

    Spotlight: Segredos Revelados, Josh Singer e Tom McCarthy (vencedor)
    Ponte dos Espiões, Matt Charman, Joel Coen e Ethan Coen
    Ex Machina: Instinto Artificial, Alex Garland
    Divertida Mente, Pete Docter, Meg LeFauve, Josh CooleyRonnie Del Carmen
    Straight Outta Compton: A História do NWA, Andrea Berloff, Jonathan HermanS. Leigh Savidge e Alan Wenkus

    Melhor Filme Estrangeiro

    O Filho de Saul (Hungria – vencedor)
    O Abraço da Serpente (Colômbia)
    Cinco Graças (França)
    O Lobo do Deserto (Jordânia)
    Guerra (Dinamarca)

    Melhor Documentário

    Mad Max: Estrada da Fúria (vencedor)
    A Grande Aposta
    O Regresso
    Spotlight: Segredos Revelados
    Star Wars: O Despertar da Força

    Melhor Fotografia

    O Regresso, Emmanuel Lubezki (vencedor)
    Carol, Edward Lachman
    Os 8 Odiados, Robert Richardson
    Mad Max: Estrada da Fúria, John Seale
    Sicário: Terra de Ninguém, Roger Deakins

    Melhor Maquiagem e Cabelo

    Mad Max: Estrada da Fúria (vencedor)
    The 100-year-old man who climbed out the window and disappeared
    O Regresso

    Melhor Mixagem de Som

    Mad Max: Estrada da Fúria (vencedor)
    Ponte dos Espiões
    Perdido em Marte
    O Regresso
    Star Wars: O Despertar da Força

    Melhor Edição de Som

    Melhor Figurino

    Mad Max: Estrada da Fúria (vencedor)
    Carol
    Cinderela
    A Garota Dinamarquesa
    O Regresso

    Melhor Canção Original

    Writing’s on the wall, 007 Contra Spectre (vencedor)
    Earned it
    , Cinquenta Tons de Cinza
    Manta Ray, Racing Extinction: Vida em Extinção
    Simple song #3, Juventude
    Til it happens to you, The Hunting Ground

    Melhor Trilha Original

    Os 8 Odiados, Ennio Morricone (vencedor)
    Ponte dos Espiões, Thomas Newman
    Carol, Carter Burwell
    Sicário: Terra de Ninguém, Jóhann Jóhannsson
    Star Wars: O Despertar da Força, John Williams

    Melhor Design de Produção

    Mad Max: Estrada da Fúria (vencedor)
    Ponte dos Espiões
    A Garota Dinamarquesa
    Perdido em Marte
    O Regresso

    Melhor Efeitos Visuais

    Ex-Machina: Instinto Artificial (vencedor)
    Mad Max: Estrada da Fúria
    Perdido em Marte
    O Regresso
    Star Wars: O Despertar da Força

    Melhor Curta de Animação

    Bear Story (vencedor)
    Prologue
    Sanjay’s Super Team
    We Can’t Live Without Cosmos
    World of Tomorrow

    Melhor Curta-Metragem

    Stutterer (vencedor)
    Ave Maria
    Day One
    Everything Will Be Okay (Alles Wird Gut)
    Shok

    Melhor Curta-Documentário

    A Girl in the River: The Price of forgiveness (vencedor)
    Body team 12
    Chau, beyond the lines
    Claude Lanzmann: Spectres of the Shoah
    Last day of freedom

  • Os Injustiçados pelo Oscar 2016

    Os Injustiçados pelo Oscar 2016

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    Com a aproximação das grandes premiações de cinema, há evidentemente uma onda de lamentos por performances que não se enquadraram no estreito número de indicados nas principais categorias contemplados pela academia. O conjunto de nomeações tem sido discutido por elementos bastantes distintos da técnica, em especial graças a ausência de atores, roteiristas e diretores negros entre as principais categorias, piorada pelo fato de em 2015 isso também não ter ocorrido, mas há muito mais categorias, filmes e artistas preteridos da festa, escolhidas por nossos redatores.

    Beasts of No Nation – por Filipe Pereira – Melhor Filme, Roteiro Adaptado, Ator Coadjuvante – Idris Elba,  Ator Principal – Abraham Attah e Fotografia

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    Associa-se demais a ausência do filme de Cary Joji Fukunaga ao fato de ser um longa-metragem produzido pelo site streaming Netflix, que normalmente consegue emplacar documentários, mas ainda não é aceito largamente pela indústria cinematográfica. Se tal fator pesou para a sua não nomeação, significa claramente um retrocesso por parte dos acadêmicos, uma vez que a fotografia do filme é excelente, fortalecendo toda a cruel violência que habita as terras de um país africano não definido, fora as belas atuações do tirânico Comandante de Idris Elba, que harmoniza carisma, crueza e malevolência em um papel interessantíssimo. A surpresa positiva e mais lamentável em ter sido esquecida é Abraham Attah, que faz o menino Agu que tem um princípio de infância feliz, muito bem demonstrada em níveis de escapismo e fantasia, sendo cortada por uma obrigação militarista gananciosa que além de ignorar por completa suas necessidades enquanto infante, ainda o faz transformar sua auto-imagem na de um monstro homicida e facínora. Curioso que todo o elenco seja formado por atores negros, e que talvez tenha em si as duas melhores atuações destacadas de interpretes de origem afro-descendente, e que explore uma realidade terrível, proveniente de um continente comumente ignorado pela elite econômica, e claro, sem apelar para estereótipos maniqueístas e gratuitamente violentos, como são mostrados normalmente os ativistas e criminosos africanos.

    Mad Max: Estrada da Fúria, por Flávio Viera – Melhor Atriz – Charlize Theron

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    Co-protagonizando a história ao lado de Max Rockatansky (Tom Hardy), Charlize Theron interpreta Furiosa. Sua importância dentro da trama é inquestionável. É ela quem guia a história. Literalmente.

    Em um ano em que Mad Max: Estrada da Fúria recebeu nada menos que 10 indicações, a ausência de Theron causa estranhamento, principalmente se analisarmos o trabalho despendido pela atriz na composição da personagem e na lógica de seu papel dentro de um filme blockbuster como Mad Max. Utilizando pouquíssimos diálogos e demonstrando uma força imensa, Theron resgata uma humanidade desesperada em um mundo sem esperança. Furiosa é uma personagem forte e que certamente resistirá ao teste do tempo.

    Michael Keaton, por Filipe Pereira Melhor Ator, por Spotlight: Segredos Revelados

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    Após uma excelente performance em Birdman, Keaton daria no ano seguinte uma outra atuação digna de nota, ao contrário dos últimos anos de sua carreira. O personagem principal de Spotlight é Walter Robinson, completamente diferente da faceta de Riggan em Birdman, tanto em caráter quanto em tom. O desempenho interpretativo de Keaton curiosamente segue a direção do cineasta Tom McCarthy, no sentido de se tornar mais vistosa e regular com o tempo e com o desenrolar da história, o que permite ao roteiro uma preciosidade maior e um desvelar emocionante e visceral próximo do termino do filme. Robby é um homem que acredita já ter combatido bem a sua carreira, e nos seus últimos dias de serviço como jornalista e chefe de equipe, tem de tratar sobre uma polêmica questão envolvendo a diocese, opinião pública e abusos de menores. O comportamento do personagem consegue sem qualquer ação histriônica e carregada de discrição, mostrar uma história nada palatável, incômoda e que envolve até pecados de seu passado. Cada ação do homem é justificada pela verossimilhança tanto do texto quanto do artista que o emprega, e que é excluído provavelmente por preguiça dos acadêmicos, que já se sentiram muitíssimos satisfeitos de premiar McCarthy ao indica-lo em sua categoria, resultando em um dos maiores equívocos recentes do Oscar.

    Carol, por Doug Olive, Melhor Filme e DiretorTodd Haynes

    Carol

    Carol é um conto potencializado por um Cinema calcado nos detalhes, nas hipérboles, nas frestas das cortinas, nas sombras de uma ação – e representação. Fica difícil não levar isso em conta se a intenção é desassociar o filme à carreira de Todd Haynes, cineasta rebelde e de projetos dúbios e errantes feito as emoções de duas mulheres que configura, na tela, num impressionismo de estímulos sensoriais a transbordar toda a pureza desse mundo num legítimo romance proibido, enquanto destemido, e visualmente descodificado, tal as mais nobres sensações a brotar de um beijo entre Bacall e Bogart num noir dos anos 60, perdido no tempo. Tempo de amar, assim, moldado numa sensibilidade quase instintiva no cárater de um amor antigo, ao menos mais velho que a crítica caolha de um Oscar há muito ultrapassado.

    No Coração do Mar, por Flávio Vieira, Melhor Fotografia

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    O diretor de fotografia Anthony Dod Mantle é conhecido pelas suas parcerias ao lado de Danny BoyleExtermínio, Em Transe, 127 Horas, Quem Quer Ser um Milionário, este último lhe rendeu o Óscar de melhor fotografia – e Lars Von Trier – em longas como Dogville, Manderlay, Anticristo – no entanto, em 2013, Mantle firma uma nova parceria, dessa vez com Ron Howard que culmina no subestimado Rush: No Limite da Emoção. A parceria se repete em 2015 com No Coração do Mar, um longa baseado na história real que inspiraria Herman Melville a escrever Moby Dick.

    A palavra que define o trabalho de Mantle à frente de No Coração do Mar é crueza. A história contada a dois tempos remete a duas fotografias, a entrevista de Melville com um dos tripulantes do Essex e a aventura da tripulação em si, se na primeira, a fotografia dura com pouca luz, dão um tom sombrio e teatral, remetendo a um clima de desencanto, na a segunda os contornos de um épico não dá sinais do que viria, exceto pela outra linha do tempo, o tom estourado da fotografia aumenta pouco a pouco, dando o clima de desolação necessário a história de náufragos, sem soar piegas ou realizar escolhas óbvias como em filmes recentes como Invencível, de Angelina Jolie.

    Sem soar necessariamente como um épico, No Coração do Mar é um belíssimo trabalho de fotografia de Mantle, sem abusar da estilização visual ou do naturalismo na composição de suas cenas. Uma pena ter sido esquecido pela Academia.

    Creed: Nascido Para Lutar, por Bernardo Mazzei – Melhor Filme, DiretorRyan Coogler, AtorMichael B. Jordan

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    Ainda que Sylvester Stallone esteja soberbo no papel que o consagrou e mereça a indicação de melhor ator coadjuvante, Creed foi solenemente esquecido nas categorias de melhor filme, diretor e ator. O longa-metragem possui doses certíssimas de drama, ação e humor, trabalhando características marcantes da série de filmes do boxeador, inspirando e emocionando qualquer espectador, mesmo aqueles que não são familiarizados com Rocky Balboa. Sobre Ryan Coogler e Michael B. Jordan, não é nem uma questão de representatividade dos negros na cerimônia, ainda que isso seja um tema importantíssimo a ser discutido dentro da Academia. Coogler tem 29 anos e Creed é apenas o segundo filme de seu currículo, contudo, demonstra perícia de um veterano, arrancando atuações marcantes de todo o elenco, filmando de maneira espetacular as sequências de lutas (o plano sequência da primeira luta de Adonis é algo de maravilhoso) e sabe trabalhar cenas emotivas sem soar piegas. Enquanto isso, Jordan demonstra ser um ator de muitos recursos, equilibrando o tom entre drama e humor, além de ter uma química ao lado de Stallone. Fica a impressão de que o veterano Sly foi inspirado pelos dois jovens, o diretor e o ator, e resolveu dar tudo de si nessa que talvez seja sua última vez interpretando Rocky Balboa.

    Que Horas Ela Volta?, por Marcos Paulo Oliveira – Melhor Filme em Língua Estrangeira, Atriz – Regina Casé

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    Que Horas Ela Volta? é repetido por duas vezes durante o longa, em cada uma dessas vezes referindo-se as duas mães da trama, iniciando e fechando o arco principal da trama.

    Há dois grandes méritos na obra de Anna Muylaert: Um deles é o roteiro sutil, que sempre se permite discutir situações de aparente frivolidade a fim de estabelecer a familiaridade daquele ambiente. Outro ponto de força é a própria Regina Casé e sua interpretação que transcende as palavras, feita em cima de gestos e olhares delicados ora demonstrando a extrema ingenuidade caridosa de sua personagem, ora demonstrando toa a experiência contida em suas rugas e o peso dos anos de viver uma vida que não era exatamente dela numa casa que não era exatamente dela, embora a educação dos patrões digam que ela é praticamente da família. O termo praticamente da família por sinal é comumente utilizado para descrever tanto pessoas como animais de estimação, demonstrando os resquícios de nosso sistema de mentalidade escravista onde há cidadãos de primeira e segunda classe, que com o tempo foi polido até transformar-se em uma educação hipócrita onde só se diz que alguém é praticamente da família para demonstrar um estilo despojado de quem diz que seu estilo é se sentir bem independente dos outros, mas que ainda assim esconde a criadagem em um quarto, sem janela para fora, que não permite estabelecer uma vida e nem se sentir confortável. Essa estrutura aparece na própria arquitetura tanto social quanto de concreto. Por esta relação íntima que o filme encantou primeiramente o mundo e só então veio ao Brasil, pois a dor da difusão familiar é universal.

    Chi-Raq, por Doug Olive –  Melhor Filme, DiretorSpike Lee, AtrizTeyonah Parris, Ator CoadjuvanteJohn Cusack e Roteiro Original.

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    Chi-Raq é resgate necessário das injúrias de um Spike Lee cuja veia não secou, tampouco deixou de sangrar a verdadeira face americana onde os Vingadores não chegam. Testemunha de forma instigante a greve sexual de mulheres negras para enfraquecer, na intimidade, os criminosos que tanto amamentam e assassinam a própria população que fazem parte, carente do controle de suas vidas mas que em Chi-Raq, é cedido a eles em tom de metáfora e analogia aos protestos raciais de Faça a Coisa Certa, de 1996, numa história de vencedores e perdedores com a vida e sua negritude postas na roleta-russa de um cotidiano tão ácido, história cara, lastimavelmente ignorada por todo espectro de premiações.

    Snoopy e Charlie Brown: Peanuts o Filme, por Filipe Pereira – Melhor Animação

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    Apesar da bela surpresa com a indicação do brasileiro O Menino e o Mundo, e da competição desleal com um filme da Pixar (Divertida Mente) , mais um longa dirigido por Charlie Kaufman (Anomalisa) e com mais um filme baseado na obra de Nick Park  (com Shaun O Carneiro), é um absurdo que Snoopy e Charlie Brown fique de fora dos cinco indicados. O filme de Steve Martino consegue ser reverencial à obra de Charles M. Schulz, resgatando textos clássicos e reunindo-os com uma pitada interessante de modernidade. Levando em consideração sua filmografia morna – com a terrível continuação de A Era do Gelo 4 e Horton e o Mundo dos Quem – Martino atinge o ponto ideal entre uma história colorida para as crianças, enquanto é repleta de valores éticos para os adultos, sem fugir da simplicidade comum aos quadrinhos e animações dos personagens da turma de Amendoim, resultando em um produto muito mais significativo que As Memórias de Marnie e tantas outras animações.

    Ex-Machina: Instinto Artificial, por David Matheus – Melhor ator coadjuvante, atriz coadjuvante, Fotografia e Maquiagem

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    Ex-Machina foi uma das gratas surpresas de 2015. Aclamado pela crítica especializada e pelo público em geral, a tímida produção escrita e dirigida por Alex Garland (estreante na direção). Vale lembrar que Garland tem no currículo filmes como o clássico Extermínio, além de Sunshine – Alerta Solar e, mais recentemente, a nova produção de Dredd. Ocorre que, Ex-Machina, poderia muito bem figurar em outras 4 categorias. A performance de Oscar Isaac como o misterioso e bilionário Nathan merecia uma indicação para Melhor Ator Coadjuvante. Isaac emulou uma personagem que faz com que o espectador fique confuso, sem saber quem de fato ele é e quais as suas reais intenções para com o protagonista Caleb, vivido por Domhnall Gleeson. Além disso, Oscar Isaac arranca de quem assiste sentimentos que passam dos mais odiosos aos mais alegres, como na antológica cena da dança. Certamente, é uma questão de tempo para que o ator receba sua indicação e posteriormente seu primeiro Oscar, já que é um dos mais talentosos de sua geração. Dito isso, a atriz Alicia Vikander também merecia uma indicação para Melhor Atriz Coadjuvante. Embora o roteiro fosse competente o suficiente para arriscar aquele twist no terceiro ato, parte do mérito também vem da atriz que faz a androide Ava. Vikander conseguiu não só enganar Caleb e Nathan, mas também o espectador. E no que diz respeito às categorias técnicas, o longa também deveria ser indicado nas categorias de Melhor Fotografia e Melhor Maquiagem. O trabalho com a luz do cinematógrafo Rob Hardy merece bastante atenção, por ser levemente estiloso, o que, para a Academia, infelizmente, é fora dos padrões. Há de se falar o mesmo da maquigem, já que o veterano Siân Grigg cuida das andróides do filme. O trabalho de Grigg é primoroso e detém a confiança de aclamados diretores e do ator Leonardo DiCaprio, já que trabalhou em grandes produções, sendo sua maioria premiadas pela Academia. O curioso é que, mesmo trabalhando em tantos filmes, Grigg recebeu sua primeira indicação justamente nesse ano por O Regresso.

  • Crítica | Cartel Land

    Crítica | Cartel Land

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    Escrito, dirigido e produzido por Matthew Heineman, com produção executiva de Kate Bigelow (Guerra ao Terror) e no páreo para o Oscar deste ano de 2015, o documentário Cartel Land analisa duas realidades na guerra ao tráfico na fronteira E.U.A. e México, a de José Manuel Mireles Valverde, médico cirurgião do hospital da cidade de Michoacán e líder das Autodefesas, uma milícia de origem popular nascida para combater inicialmente o cartel Los Templários próximo a fronteira com os EUA. Do outro lado da linha vemos Tim “Nailer” Foley, um ex-operário da construção civil com uma vida conturbada que se estabeleceu como um defensor do país contra os cartéis de drogas e imigrantes ilegais vindos do México. Os cartéis são evidenciados como grupos de extrema violência, decapitando pessoas e saqueando cidades inteiras, aproveitando-se da falta de policiamento local e do alto índice de corrupção na polícia mexicana. Ao verem-se desprotegidos, os moradores dessas regiões vêem na luta armada uma forma de resistência civil.

    A narrativa se inicia com a visão de Nailer sobre aquilo que faz, e sua insatisfação com o uso do termo “Milícia” pela mídia e associações de seu ofício com grupos fanáticos nacionalistas. Apesar de Nailer demonstrar algumas boas intenções, o viés higienizador torna-se marcante em falas que demonstram o rancor pela perda de empregos para imigrantes legais ou ilegais. Embora Neiler mostre-se moderado, em seu heterogêneo grupo é possível encontrar pessoas com sede de sangue, e mesmo nos discursos mais apaziguadores a xenofobia e o medo de um eventual colapso americano marcam boa parte das falas e ações do grupo. Apesar disso, tanto politicamente quanto em termos de ação, a milícia de Neiler é retratada de forma mais ingênua e confusa que as milícias mexicanas, sem flutuar muito em relação à forma com que é mostrada para a tela. Já a milícia mexicana percorre um arco de glória e queda, mostrando ser apenas mais uma peça do sistema para substituir outras igualmente defasadas.

    Inicialmente “Autodefesas” são mostradas como um poder emanado do povo de maneira legítima e com respeito ao povo, intensificado pela persona de aparência digna de El Doctor Mireles. Apesar de entregar muito mais tempo de tela ao núcleo mexicano, a direção sempre busca ecos no núcleo americano demonstrando que este é um sistema acoplado que não vê fronteiras. Após algum tempo sob o julgo do cartel mexicano, a população se arma e luta contra o cartel a partir de operações de busca a apreensão nas casas de bandidos conhecidos ao longo de diversas cidades, armando e treinando a população local para que assim as Autodefesas não ajam como poder paralelo e centralizado. Os rumos da malícia mexicana no entanto sofrem um revés quando El Doctor é atingido por um atentado e vê sua vida em risco. A perda do comando ideológico aparenta deixar um vácuo para que se estabeleçam vetores menos democráticos dentro da milícia, mas mesmo Mireles começa a demonstrar suas faces menos éticas, bem como os desvios de conduta e caráter dos recrutados pela milícia, muitos deles ex-integrantes de cartéis já extintos que alegam ter se recuperado. Logo ela se torna um poder paralelo agindo como cartel tal qual aqueles que se iniciaram no combate, atingindo níveis constrangedores de violência mesmo contra a vontade da população. O poder do povo e para o povo sumiu.

    Com a pressão social e internacional, o presidente mexicano pede o apreço pelo Estado de direito e eis que os ânimos se mostram cada vez mais acirrados e a corrupção na região se mostra endêmica, atingindo diversas escalas de poder.

    O diretor visa desde o começo construir uma narrativa para sua história, com arcos bem definidos e uma história para contar. Esta história é contada com uma cinematografia belíssima em tomadas aéreas do deserto e cenas de profunda intimidade, como a que, após um confronto entre o povo e o exército mexicano, a população dispersa-se e sobra em meio a rua apenas um senhor obviamente cansado e debilitado. Ele se mostra parado ali e a câmera o centraliza em toda sua fragilidade, demonstrando que independente do discurso que se propaga o povo será sempre o elo mais fraco desta corrente. A narrativa também é competente em fazer a desconstrução do El Doctor, mostrando que ele é, apesar de seus ideias, um homem em estado de falência ética ao despir seu charme político do início.

    O que marca em Cartel Land é a aproximação do conceito de ideologia com o de fascismo. Se é fácil identificar uma postura fascista em caricaturas de ditadores ao redor do mundo, mais difícil é identificar o fascista com boas intenções. Este fascista adquire contornos mais sutis ao adquirir outras alcunhas como “cidadão de bem”, mas a semente fascista muitas vezes se esconde atrás de justificativas passionais extremamente plausíveis do ponto de vista prático e não raramente busca fazer o bem aos seus, pois nenhum fascista prega a morte, mas sim a liberdade e força de seu povo. A partir daí ninguém saberá quem vigiará os vigilantes.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom

    Crítica | Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom

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    Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom é o segundo longa-metragem documental do diretor Evgeny Afineevsky, bastante acostumado a tratar temas controversos dentro do seio familiar do americano. O filme, liberado na Netflix, em 2015, trata da controversa questão atual da Ucrânia, passando por um pequeno preâmbulo a respeito da questão política na época da União Soviética, situando seu espectador sobre as eleições de 2004, que foram canceladas e alegadas como fraudulentas por grande parte da opinião pública internacional, apesar da controvérsia a respeito da veracidade das acusações.

    O documentário toma por verdade todas as acusações de fraude a respeito do antigo presidente Víktor Yanukóvytch, falando neste começo sobre a anulação do pleito em 2004 e desenvolvendo um papel heroico para os manifestantes que conseguiram sua queda, ignorando partes substanciais e importantes do fundamento em que baseia tais militâncias, sem sequer deixar claro para o público a participação do Svoboda, partido ultranacionalista de extrema-direita, que, entre muitas alegações, não aceita mestiços em suas fileiras e tem um panfleto que usa argumentos fascistas e neo-nazistas.

    A nacionalidade russa de Afineevsky poderia influir em sua análise das manifestações ocorridas recentemente no país balcânico, e surpreendentemente provoca o efeito contrário do que se esperava. O mote escolhido pelo diretor é bastante favorável aos protestos que ocorreram em Kiev e demais cidades, os quais visavam uma liberdade maior para a população, que em seus brados exigia a integração da nação a União Européia; aos poucos, evoluíram para a insatisfação famigerada com o governo de Yanukóvytch, do denominado Partido das Regiões, partido político que advoga para os interesses dos russos da Ucrânia.

    FILE - In this file photo taken on Saturday, Jan. 25, 2014, smoke and fireballs rise during clashes between protesters and police in central Kiev, Ukraine. The "Heavenly Hundred" is what Ukrainians in Kiev call those who died during months of anti-government protests in 2013-14. The grisliest day was a year ago Friday _ Feb. 20, 2014 _ when sniper fire tore through crowds on the capital's main square, killing more than 50 people. A year later, so much has changed. Russia has annexed Ukraine’s Crimean Peninsula, Ukraine has a new president and government, and the country is embroiled in a war in the east with Russia-backed separatists that has killed over 5,600 people and forced a million to flee. (AP Photo/Sergei Grits, File)

    As câmeras não demoram a exibir os protestantes em confronto com as forças policiais, não poupando o espectador das cenas em que o povo é duramente tratado. A impressão passada pela obra é de que o grito era uníssono, e que o Euromaidan representava de fato os anseios do povo ucraniano. O que não ocorre ao longo dos noventa e seis minutos de duração é a possibilidade de travar-se um diálogo minimamente justo, já que fora do movimento não há praticamente nenhum depoimento que não seja avesso a Yanukóvytch, a seus aliados, e claro, a Vladmir Putin, cuja imagem é representada a partir de um arquétipo maniqueísta, semelhante a um vilão de histórias em quadrinhos.

    É evidente, e até óbvio, que um documentário necessite escolher um viés para sua exploração, e é ainda mais natural que o enfoque seja feito a partir do viés que o seu realizador mais ache interessante, passando inclusive por suas ideologias políticas. No entanto, ignorar por completo o lado oposto causa um estranhamento na abordagem, correndo o risco de transformar o filme em um folheto propagandista.

    Analisando sob o ponto de vista político, Winter on Fire não consegue traçar um quadro minimamente condizente com toda a complexidade que envolve o cenário político local e as manifestações ocorridas a partir de 2013. Em A Praça Tahrir, a própria produtora Netflix havia se inserido em assunto semelhante, ainda que a proposta neste tenha sido completamente diferente, uma vez que a diretora Jehane Noujaim se valeu unicamente de fitas gravadas pelos próprios manifestantes, fator que justifica a sua categoria de fala única. Com Yanukóvytch o caso é diferente, e a imagem passada ignora a discussão a respeito dos rumos do país, que está claramente dividido, apresentando uma estampa de igualdade e união que não condizem com a realidade.

    Os dez minutos finais selam o destino dos ucranianos com possibilidades bastante esperançosas, com cenas de festejo acompanhadas de uma trilha sonora que exala docilidade, fomentando uma esperança e um sentimento de suavidade patriótico ironicamente fragmentado. A situação da Criméia, por exemplo, só é levantada após todo o desfecho narrativo do longa, citado nos pré-créditos finais, talvez aludindo a uma possível continuação que falaria especificamente deste episódio. O resultado final do documentário passa por uma incômoda fuga do complexo quadro político, ocultando informações importantes, como a proibição de partidos comunistas ocorrida recentemente, o que faz com que a sonegação dos lados políticos dos órgãos por trás das manifestações, ao menos de um modo explícito, torne-se ainda mais flagrante e vexatório. A resultante se assemelha demasiadamente a um retrato rasgado, com uma parte necessária e importante faltando, e ainda assim é louvada por grande parte dos analistas que sequer tem ciência disto.

  • Crítica | Coração Valente

    Crítica | Coração Valente

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    Mel Gibson despontou em Hollywood como nova promessa cinematográfica no filme Mad Max, de 1979, como um herói de ação de um futuro distópico ambientado em um arenoso cenário apocalíptico. Com o sucesso do filme, tornou-se um dos astros de ação mais bem pagos pela indústria, protagonizando as duas continuações da história, e posteriormente a franquia Máquina Mortífera ao lado de Danny Glover, além de outros grandes filmes memoráveis, como O Preço de um Resgate, O Troco e Sinais. Ingressando na carreira de diretor, pôde ultrapassar a barreira de idade produtiva imposta a atores e desenvolver sua criatividade artística atrás das câmeras.

    Segunda película dirigida por Gibson, Coração Valente viveu uma pré-produção conturbada com orçamento alcançando a ordem de 73 milhões de dólares. Através da Icon Productions, companhia do diretor, conversou com diversas empresas e conseguiu tirar o projeto do papel com a condição de estrelar o filme, mesmo que já se achasse velho demais para viver William Wallace, o guerreiro que liderou a revolta escocesa contra a tirania da dominação inglesa no século 13. Baseado na lenda conhecida através do antigo poema Ações e Feitos do Ilustre e Valente Campeão Sir. William Wallace (em tradução livre), o filme populariza a história do soldado, praticamente desconhecida fora dos países anglo-saxões.

    Órfão de pai e irmão, mortos em uma batalha sangrenta após a invasão promovida pelo monarca inglês Edward I a Escócia, o pequeno William é levado por seu tio Uncle Argyle (Brian Cox) para viver na Europa. Anos mais tarde, em um salto temporal, não reconhece que seu país foi esmagado pela tirania britânica e se recusa a entrar em conflito. Instruído em várias línguas, no latim, e versado em técnicas de estratégia, argumenta que a paz não é conquistada através do derramamento de sangue de inocentes, se mantendo neutro. Com ideias simples de felicidade, Wallace incluía em seus desejos pessoais viver em paz, constituir uma família e da terra tirar seu sustento, ainda que sob vigência da Prima Nocte, lei que autorizava os senhores feudais a se deitarem com as mulheres recém-casadas em seus territórios. A fim de impôr o sangue dos nobres na descendência da Escócia desejada pela monarquia inglesa, a Prima Nocte tornou-se tão insustentável que ensejou a fagulha na luta de Wallace ao lado de seus iguais.

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    Coração Valente é um filme sobre liberdade e sobre como ela precisa ser defendida. Em um tempo em que a espada era a única maneira de buscá-la, uma população oprimida dentro de sua própria terra avistava no uso da violência uma via única sem volta. Enquanto a nobreza governava com a pena, a lâmina a respondia. Por isso não foi difícil Wallace logo amedrontar os nobres no país ao lado e encorajar soldados que não acreditavam no poder que detinham. Conquistando o status icônico por tornar unido o povo escocês, o líder evidencia o conceito de liberdade por Aristóteles, sinalizando que livre é aquele com o princípio de agir ou não agir, o sujeito como detentor do poder pleno e incondicional de escolha voluntária. Wallace escolheu agir em favor de um lado que, embora cessasse milhares de vidas, produziria no país a sensação de dignidade. Gibson faz uma leitura apaixonada de Spartacus, de Stanley Kubrick, em outro país, em outro contexto, mas com o mesmo conflito simbólico do ser humano buscando se livrar dos próprios grilhões.

    Apesar do filme não possuir muitos elementos históricos sólidos e abusar das licenças poéticas, é uma história inspiradora, e como recurso visual aliado à trama, uma obra-prima. Gibson transforma cenas simples, como a da jovem Murron (Mhairi Calvey) entregando uma flor ao pequeno Wallace, em verdadeiras pinturas. O silêncio, como mecanismo sensível de trazer ao espectador a emoção da cena através da simples expressão facial e objetos em destaque, é muito bem utilizado em seu cinema e repetido em toda a sua filmografia. Além disso, as cenas de batalhas, como a de Stirling Bridge (que infelizmente não tem exatamente uma ponte) são filmadas em detalhe, sem cortes exagerados e focados na violência crua de uma batalha real. Criticado pela crueza em seu filme seguinte, A Paixão de Cristo, Gibson utiliza a ferocidade do ser humano como um elemento real e presente em todos nós.

    Vencedor de cinco categorias no Oscar de 1996, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor, Coração Valente também poderia ter premiado Gibson como melhor ator, visto que ele capta o espírito da personagem mesmo estando em idade mais avançada do que o retrato real. Resgatando parte da história deste povo, a narrativa universaliza a busca da liberdade e leva à popularidade um filme com todos os elementos para se tornar um dos maiores épicos já produzidos.

    Compre: Coração Valente (Dvd | Blu Ray | Edição Especial)

    Texto de autoria de Karina Audi.

  • Crítica | O Menino e o Mundo

    Crítica | O Menino e o Mundo

    O Menino e o Mundo - poster

    Após indicação ao Oscar de Melhor Animação, a produção brasileira O Menino e o Mundo, que já havia sido lançada em home video no país, obteve um novo alcance merecido. A indicação foi suficiente para expandir a popularidade do filme dirigido por Alê Abreu e conquistar novos espectadores. Uma ação necessária diante da ainda precária atenção dada às animações brasileiras em circuito, tanto por parte de uma distribuição reduzida, quanto da recepção do público, sempre atento às animações estrangeiras.

    Desenvolvido sem falas, a obra se vale do conceito clássico do cinema como símbolo visual para transmitir sua mensagem. Não bastando o estilo sem falas, que hoje causa ruptura por retomar um antigo padrão não mais vigente, os traços da animação se destacam ao se basearem em composições simples, como desenhos primitivos feitos por uma criança. São estes personagens delimitados de maneira simples que narram uma história simbólica.

    A narrativa se inicia devido a um conflito primordial na sociedade moderna: a ausência de trabalho e a migração da população para polos urbanos. À procura de um emprego diante da escassez do campo, o pai se desloca para a cidade grande, deixando memórias e tristezas no filho, a personagem principal da trama. Pela saudade, o garoto percorre o mesmo trajeto do pai para procurá-lo na cidade grande.

    O tom simbólico da trajetória se mantém devido à representação imagética apoiada nestes traços infantis. Trata-se de um mundo adulto visto sob a ótica infantil e, assim, modificando as construções reais para uma cidade simbólica, compreensível para o garoto. A agressividade da cidade é representada por objetos mecânicos antropomorfizados em animais, símbolos que dialogam com uma visão de mundo ainda pura. Ao transitar de seu espaço natural para a cidade, o local idílico da infância representado pela música e pelas boas memórias é violentado pela selva de concreto.

    Ao acompanhar temporariamente personagens desta sociedade, identificando sentimentos e situações as quais nunca havia vivido, a história tece uma crítica severa ao conceito de uma sociedade e como ela, por motivos diversos, produz cidadãos infelizes vivendo um cotidiano vazio. Há uma clara contraposição da evolução da humanidade simbolizada pelos avanços mecânicos e tecnológicos em contraste com os seres inseridos nessa própria sociedade vivendo como engrenagens invisíveis.

    A desesperança presente na história é potencializada por estes símbolos na transição do garoto, que observa sua inocência ser transformada por uma visão crua da cidade grande, reconhecendo, em escala geral, a falência da civilização e da existência como um todo. De maneira melancólica, a visão do garoto é desoladora e causa comoção pela triste constatação de que, além das cores e dos traços infantis, a realidade é composta desta maneira, sem nenhum filtro estético.

    A ousadia em promover uma obra sem falas diante de um padrão acostumado com narrativas repletas de ação promove uma ruptura, conferindo à trama maior observação. Sob o viés infantil, O Menino e o Mundo, vencedor do Annie Awards deste ano, é uma delicada obra sobre a evolução humana, equilibrada entre certa poética e amargura.

  • Crítica | Capital Humano

    Crítica | Capital Humano

    capital humano

    “Tudo o que era estável e sólido desmancha no ar; tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados a encarar com olhos desiludidos seu lugar no mundo e suas relações recíprocas.” – Karl Marx

    O economista Thomas Piketty em seu livro O Capital no Século XXI desenvolve uma tese histórica minuciosa sobre a “natureza” intrinsecamente rentista do capital financeiro, sua valorização fictícia e suas dinâmicas de acúmulo e a distribuição do capital, demonstrando que o sistema capitalista possui uma tendência inerente de concentração de riqueza nas mãos de poucos e que, ao longo dos tempos, há um aprofundamento cada vez maior de desigualdade ao redor do mundo. O tema, caro para o diretor italiano Paolo Virzì é abordado de forma tragicômica em seu mais recente longa, Capital Humano.

    Baseada no livro do crítico de cinema americano Stephen Amidon, a trama se inicia de maneira simbólica, dentro de um luxuoso salão, no qual uma equipe de limpeza trabalha arduamente para organizar a bagunça deixada após uma festa ocorrida no local. O que impulsiona a história é quando um dos trabalhadores se nega a trabalhar além de sua jornada e vai embora em sua bicicleta, no entanto é atropelado por um veículo em alta velocidade. A mensagem não poderia ser mais clara. Em um sistema como o nosso, a sujeira deixada pela classe alta atingirá as camadas mais baixas de maneira catastrófica, como bem demonstrado em A Grande Aposta, O Capital, Trabalho Interno e tantos outros.

    Em decorrência do atropelamento e da falta de socorro, o trabalhador vem a óbito, e a partir deste evento núcleos de personagens se estabelecerão para a construção de um mosaico de situações. Apesar de não ser o centro do filme, o acidente será fundamental para movimentar a narrativa, unir esses núcleos e reforçar a ideia de que um simples acaso é determinante na vida de cada um de nós, algo muito bem retratado na filmografia de Woody Allen. Este mosaico estrutural é composto em quatro capítulos.

    No primeiro deles, somos apresentados à figura de Dino (Fabrizio Bentivoglio), um corretor de imóveis ambicioso, prestes a ser pai pela segunda vez, que decide se lançar no mundo dos altos negócios através de um suposto fundo garantido do sogro de sua filha, o empresário Giovanni Bernaschi (Fabrizio Gifuni). Para isso utiliza sua própria casa como garantia de um empréstimo de 700 mil euros. O deslumbramento de Dino por ser parte de uma alta sociedade não o permite perceber os problemas vividos por sua família.

    O segundo capítulo se desenvolve através de Carla (Valeria Bruni), esposa de Bernaschi, e certamente uma das personagens mais interessantes construídas ao longo da trama. O desconforto de Carla é perceptível em sua primeira sequência, mas não sabemos bem o motivo, já que ela se mostra apenas como alguém fútil, incapaz de uma proximidade com as pessoas que a cercam e que passa seus dias em compras pela cidade e em salões de beleza. O esmero do roteiro e do trabalho de atuação na personagem se torna evidente ao desenvolvimento do filme, no entanto o véu sobre Carla é retirado. Quando ela adentra em um teatro abandonado e completamente destroçado, entendemos suas escolhas, seu comodismo, suas abdicações e minimizações em troca de um status. Os capítulos finais se desenvolvem apresentando novos pontos de vista e amarrando pontas soltas dos capítulos interessantes, entregando um final condizente com a proposta da obra.

    Um ponto interessante trabalhado em Capital Humano é sem dúvida a construção dessas personagens: todos aparentam algo que não são. É neste esfacelamento de relações, hipocrisias e de decadência moral e social que o filme tem mais a oferecer. Cru, impiedoso e realista, o longa tem uma beleza fria, e isso é expresso até mesmo pela fotografia, com quadros de pouca luz, seja em sequências internas ou externas, como também nos ambientes que os rodeiam.

    Paolo Virzì entrega um longa repleto de dilemas morais, questionamentos e um crítica cheia de ironia ao sistema capitalista. As respostas para as questões levantadas estão nas entrelinhas, nas atitudes de cada personagem, nas alegrias e amarguras de cada um de nós. Afinal, quanto vale a vida?

  • Crítica | Presságios De Um Crime

    Crítica | Presságios De Um Crime

    Presságios de Um Crime - Poster

    Pensado inicialmente para ser uma sequência de Se7en: O Sete Crimes Capitais, Presságios de Um Crime rodou durante muito tempo nos noticiários de cinema nos últimos anos. O projeto foi atrelado a diversos diretores ao longo do tempo, com rumores fortes apontando, em meados de 2005, que Paul Verhoeven finalmente tiraria o filme do papel. Bruce Willis e Morgan Freeman chegaram a ser apontados como protagonistas, mas, como podemos ver, nada disso aconteceu. No final das contas, o roteiro foi filmado pelo brazuca Afonso Poyart – diretor de 2 Coelhos – e o elenco encabeçado por Anthony Hopkins.

    Na trama, o eterno Hannibal Lecter interpreta John Clancy, um médico com poderes psíquicos que vive em isolamento após a morte de sua filha. Ele é recrutado por seu grande amigo e agente do FBI Joe – interpretado por Jeffrey Dean Morgan – para auxiliar em uma série de mortes perpetradas por um serial killer que não parece seguir nenhum tipo de padrão para escolher suas vítimas. Ainda que relutante, Clancy aceitar ajudar seu amigo e se une a ele e a sua cética parceira Katherine, vivida por Abbie Cornish, para tentar prender o assassino.

    Percebe-se de início todo o senso estético de Afonso Poyart. O diretor filma com uma minuciosa atenção a todos os detalhes que compõem o ambiente onde acontece cada cena. É interessante perceber como cada cenário de crime possui uma “temperatura de cores” de acordo com o momento de cada vítima. No que diz respeito à relação dos personagens, existe uma atenção especial em demonstrar a tentativa do protagonista em se manter sempre distante, mesmo do seu amigo. Porém, ao começar a se aproximar da agente Katherine, o diretor brasileiro não consegue esconder a falta de química e sincronia entre Hopkins e Abbie Cornish. Na condução de algumas sequências de ação, o diretor também faz um bom trabalho, principalmente na primeira hora de filme. Entretanto, na sequência final Poyart acaba errando a mão, além de ser extremamente prejudicado por efeitos especiais ruins.

    O roteiro do filme começa interessante, mas ao longo do tempo vai perdendo força e passa a sucumbir a soluções fáceis ou que já foram utilizadas em películas de histórias semelhantes. A maneira como o assassino, interpretado por Colin Farrell é introduzido, é bem interessante e remete a uma cena do filmaço Fogo Contra Fogo, dirigido por Michael Mann e estrelado por Al Pacino e Robert DeNiro. Há ainda um grave problema de mudança de tom no terço final da obra. A forma como o “complexo de Deus” do assassino é apresentado por ele é bem interessante, porém poderia ser melhor trabalhada. Ele conta tudo de uma maneira parecida com o que fazem os vilões dos filmes de 007, deixando pouco espaço para a imaginação do espectador ou para uma possível surpresa. Enquanto durante todo o tempo o filme exibe um trabalho de investigação com pitadas sobrenaturais de maneira sóbria, ao se aproximar do filme tudo isso é substituído por um tom histérico que destoa completamente de tudo que gere algum tipo de apreensão, mas somente uma vontade de que o final chegue logo antes que o filme se torne constrangedor.

    Anthony Hopkins claramente atua em piloto automático, tendo pouquíssimos momentos de brilhantismo. Abbie Cornish e Jeffrey Dean Morgan, intérpretes da dupla de agentes do FBI que procura o personagem de Hopkins, defendem com dignidade seus papéis e funcionam bem quando estão juntos. Porém, somente Morgan funciona em dupla com Anthony. Quando chega a vez da lindíssima Abbie contracenar com o veterano, as coisas não funcionam tão bem assim. Colin Farrell chega a beirar a caricatura, mas é verdadeiramente o melhor do elenco em cena. Ainda que tenha pouco tempo em tela, ele consegue roubar o filme para si. Seu olhar enlouquecido e sua inquietação constante o transformam em um personagem assustador.

    Não dá pra saber se todo o tempo que demorou a ser produzido e as inúmeras vezes que o roteiro foi reescrito afetaram a qualidade do projeto, mas Presságios de Um Crime não foi a estreia dos sonhos do brasileiro Afonso Poyart. O resultado final é um filme irregular, que possui alguns poucos bons momentos.

  • Crítica | What Happened, Miss Simone?

    Crítica | What Happened, Miss Simone?

    What Happened Miss Simone - poster

    Ainda que a definição sobre a composição da arte seja delicada, há uma natural observação comum, pontuada tanto por uma análise geral quanto pela vertente crítica com base em biografias, de que parte da arte mundial foi esculpida através de sentimentos dolorosos. Um conceito simbólico que faz da tristeza um maior escopo fundamental para que artistas expurguem sentimentos pela criação, equilibrando a matéria interna com o labor de um trabalho visível.

    A dor é uma das constantes de Nina Simone em sua longa carreira, cuja trajetória se destaca na biografia dirigida por Liz Garbus – a qual já dirigiu uma obra sobre Marilyn Monroe, outra figura trágica do show business – com distribuição da Nexflix. Desenvolvida em estilo documental tradicional, apoiada na trajetória temporal da cantora, a história apresenta altos e baixos dessa compositora de formação clássica cuja interpretação musical era carregada de uma intimidade intrínseca com a música. Obra indicada ao Oscar de Melhor Documentário, curiosamente concorre com outra grande cantora biografada, representada pelo médio Amy.

    Nascida em 1933, Simone tinha o desejo de se tornar a primeira pianista negra de música clássica no país. Após um concerto aos quatro anos de idade, demonstrando um talento precoce, passa a estudar com duas tutoras por anos, assimilando a música clássica a qual seria fundamental em suas composições de jazz. A necessidade do trabalho a projetou em diversas casas de música interpretando canções fundamentais do jazz, o início do sucesso como intérprete.

    A figura de Nina Simone é composta por contradições. Elementos apresentados na história que fortalecem sua trajetória como artista. Sua carreira se destaca logo após seu casamento, quando o marido, até então policial, se torna seu empresário. Uma relação de amor e ódio que causava desequilíbrio na cantora, apesar de ela sempre declarar seu amor. O relacionamento, assim, representava parcialmente a visão da época na qual o casamento se mantinha como uma instituição a ser seguida, mesmo que violentamente. Cobrada ao extremo para executar seu talentoso trabalho, o palco era seu momento de catarse com interpretações carregadas de sentimentalismo na voz e extrema técnica no piano.

    Em 1964, quando a luta pelos direitos civis dos negros eclode, a pianista reconhece que parte de sua trajetória como artista vinha da afirmação de sua origem e raça, e se torna símbolo favorável ao movimento, compondo uma pungente canção após a morte do ativista Medgar Evers. Missisipi Godam marcava o início de um poderoso viés artístico, importante para sua época mas, devido à sua agressividade, foi responsável por afastá-la da mesma mídia que a consagrou. A brutalidade da luta pelos direitos leva-a a extremos, aliada a uma frágil psiquê que se desmonta e a faz odiar a própria arte que amava.

    Simone era inimiga de si mesma sem saber, tardiamente diagnosticada com transtorno bipolar e psicose maníaco-depressiva. Somente em fase madura da vida pôde compreender que, além de sua personalidade distinta, da voz aberta para falar dos problemas e da alma capaz de transparecer em suas canções, tinha uma doença invisível. Em tratamento, restabelece seu público e aparece, pela primeira vez, em paz consigo mesma, compreendendo as pressões existentes na carreira, sua limitação devido à doença e o talento que a consagrou.

    Nina viveu numa época em que o esforço artístico era fundamental para a carreira de um bom artista, sem aparato técnico, marketing ou qualquer outro artifício predominante. Bastava o talento como diferencial e uma motivação capaz de transformar a matéria do cotidiano em arte. Sua voz viveu boa parte da vida sob a redoma da dor; a música libertou-a para a eternidade.

  • Crítica | Amor, Drogas e Nova York

    Crítica | Amor, Drogas e Nova York

    Amor, Drogas e Nova york - poster

    Sintetizadores dominam as saídas de áudio enquanto dois jovens sujos se beijam no chão da rua. A garota segura o cigarro. Traga, beija. Surge então um choro que chama atenção para um momento futuro, mas ele não importa. Pelo menos não agora. Não há motivo para pensar adiante. A vida é efêmera, sem esperança. Aproveite enquanto dura. Assim é o cotidiano dos personagens de Amor, Drogas e Nova York. E é importante entender que é só sobre isso que o filme quer tratar.

    Ben Safdie e Joshua Safdie (Go Get Some Rosemary) dirigem o filme com roteiro de Joshua Safdie e Ronald Bronstein e baseado no livro autobiográfico de Arielle Holmes, que também é a atriz principal. Escrito a pedido dos irmãos Safdie, depois de a encontrarem na rua e sentirem interesse em sua história, o filme acompanha Haley (Holmes) em seu cotidiano; como lida com sua realidade e os parceiros de sua vida, em especial Ilya, por quem tem um vício no mesmo nível da heroína.

    Arielle transpõe sem glamour ou romantização sua vida. É crua. Tão visceral quanto a dos outros personagens, que são também, alguns, colegas de sua vida nas ruas. Sua personagem não apresenta amor próprio, independência. Guia-se pelos outros, trocando de acompanhante para acompanhante em uma desesperada busca por algo que a mantenha ativa. E, assim como outros, não apresenta um arco narrativo de desenvolvimento tradicional, nem deveria. Segue sem pretensão e sem brilho além do produto de seu vício. A obra, por sua vez, não se preocupa em explicar como foram parar ali, quem são os culpados, como melhorar. Não é algo inovador, mas nem por isso se deve deixar de perceber como a presença de alguém que realmente viveu o retratado torna mais coerente e coeso o que ocorre em tela.

    A fotografia, portanto, segue um estilo documental de handy-cam e movimentos bruscos. Às vezes afastada e observadora, às vezes muito próxima dos personagens. Próxima o suficiente para que, em tons puxando para cinza, deixe escapar o vazio de cada um dos que observa. Em poucos momentos há realmente cor em tela, mas são eles os mais danosos. Assim como a presença da trilha sonora reminiscente dos anos 80, que foi tratada por Paul Grimstad e Ariel Pink. Ela enche os espaços por entre as massas de realidade. Assim como nos energiza de forma a continuar até a próxima ilha de banalidade.

    Apesar de tentar, de certa forma, criar um final satisfatório para os médios 90 minutos de filme, não há fim. Assim como não houve começo. Há somente frações de vidas. Não há lição didática para aprender; epifanias de personagens, ou público. O círculo da vida dos marginalizados é o mesmo sob o sol de Nova York ou de qualquer outro lugar do mundo. É assim. Só Deus sabe o resto.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Crítica | O Lobo do Deserto

    Crítica | O Lobo do Deserto

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    Baseada nos preceitos beduínos vigentes em 1916, e situada no território do Império Otomano, a história de O Lobo do Deserto remonta um drama de época sob os olhos de uma criança chamada Theeb (Jacir Eid Al-Hwietat), que tem por obrigação se instruir nos modos e ditames que a tradição de seus pais manda. Sua companhia em meio ao ambiente árido e desértico de sua vila, Wadi Rum, é seu irmão mais velho Hussein (Hussein Salameh Al-Sweilhiyeen), que tem a árdua tarefa de ensinar ao seu irmão os costumes de seus antepassados, sendo ele o mentor do garoto na ausência de seus pais mortos.

    Theeb é um rapaz curioso, alegre e proativo que consegue driblar facilmente o ambiente repleto de conflitos bélicos que o cercam. Sua natureza aparenta em um primeiro momento ser bastante diferente da figura que traduz seu nome, tendo pouco a ver com o lobo que deveria preceder sua descrição. Não demora para um grupo de exploradores brancos encontrarem a dupla de irmãos, empregando Hussein para guiá-los até seu misterioso objetivo.

    A intenção de Naji Abu Nowar é traçar um paralelo entre passado e presente, mostrando que aquelas terras da Jordânia permanecem seguindo a tradição de violência e morte que já a acometia quase cem anos antes, usando a jornada gananciosa capitalista como ponto de partida de sua crítica social, passando também por questões chave como invisibilidade social e a completa falta de inferência governamental sobre seus cidadãos, usando o território do deserto como avatar de uma terra sem lei, como era no Velho Oeste dos Estados Unidos em inúmeros filmes de John Ford.

    O Lobo do Deserto 3

    A face dura da guerra por terra e riquezas não demora a cortar o caminho de Theeb, tirando-lhe mais uma figura de autoridade, ainda que tal submissão tenha sido imposta. O sentimento de obrigação persiste, além da ação de revidar com tiros os ataques dos opositores, pondo de lado sua postura de fantasia infantil.

    O revide provoca em Theeb o mesmo torpor causado nos adultos que o cegam, a mesma insana busca por mais justiçamento e pelo caminho menos virtuoso. O Lobo do Deserto tenciona ser um retrato de uma característica cabal de um povo que se vale da frieza para executar seus inimigos. No entanto, o conjunto de nuances prometido no começo do filme não é alcançado em plenitude, caindo ao final em um discurso reducionista, distante da boa premissa que se alardeava, ainda que não resulte em um filme fraco, em especial graças à dedicação da fotografia em planos que contemplam as planícies arenosas, que servem de lugar comum à jornada do garoto.

  • Crítica | Nick Fury: Agente da S.H.I.E.L.D

    Crítica | Nick Fury: Agente da S.H.I.E.L.D

    Nicky Fury Agente da SHIELD 1

    Muito antes de Samuel L. Jackson aceitar o convite da Marvel Studios para estrelar o papel do coronel caolho da  agência da S.H.I.E.L.D., seria feita uma versão de Nick Fury, produzida por Avi Arad, Stan Lee e roteirizada por David Goyer. A escolha para o papel principal não poderia ser mais sui generis, com o aporte de David Hasselhoff, ainda na esteira de S.O.S. Malibu, em um papel tão canastrão quanto o que fizera neste e em Super Máquina.

    O Fury de Hasselhof é ainda mais agressivo e arredio do que a última versão cinematográfica do personagem, nada afeito a ordens, um rebelde que sabe o poder que tem, mesmo como subalterno dentro a agência de espionagem. O desrespeito as regras começa pela clássica cena em que acende um fósforo na parede, movimento comum a qualquer brucutu, ainda mais condizente com um militar que não aguenta desaforos.

    A fluidez com que é conduzido o filme de Rob Hardy  é tamanha, que se assemelha às encenações teatrais de colégio em fase de ensino fundamental. Não há como levar a sério qualquer dos conflitos entre a S.H.I.E.L.D. e a Hydra, que a priori, agiria desde a época da Alemanha Nazista, porcamente encenada por um elenco que abusa de falas aos gritos, overacting e muitos exageros visuais, com direito a cabelos extravagantes e sotaques californianos imitando horrorosamente o tom europeu de falar.

    É difícil escolher o aspecto mais chocante do telefilme, se é o fato do protagonista estar sempre oleoso, se é o tapa-olho que denuncia a completa falta de continuísmo ao se trocar frequentemente o objeto de hemisfério corporal, o bronzeamento artificial justificado do modo mais burrificado possível ou os cenários em CGI que fazem inveja aos diversos mockbusters da Asylum.

    O conjunto de semelhanças visuais com as HQ’s é incabível, sendo incrivelmente esdrúxulo, não fazendo sequer sentido dentro da métrica do argumento em alguns pontos, resultando até em contradições lógicas, como o ato de usar couro em um ambiente extremamente quente como a embarcação marítima/aérea em que a instituição se situa.

    Fury é leviano, durão e baddass, convive bem em meio ao mundo que o cerca, mesmo neste ambiente repleto de cenários de papelão que lembram demais o que é visto em produções de baixo orçamento. A trama se arrasta nos momentos finais, com direito a ressurreição de inimigos centenários, que só retornam para morrer logo depois, e uma larga apresentação de coadjuvantes genéricos, que não deixam o público esquecer do quão trash é o longa. Após um apelativo gancho para uma continuação, a resolução de Fury é curiosa por ir contra a burocracia típica da organização, ainda que o modo como é realizado não tenha qualquer inteligência. Nick Fury Agente da S.H.I.E.L.D. consegue ser tão pleno em seus defeitos, que provoca no seu espectador um riso involuntário, provindo do que já se chamava em 1998 por Marvel Studios, ainda que em outra encarnação da produtora.

  • Crítica | Moscou Contra 007

    Crítica | Moscou Contra 007

    Moscou Contra 007 A

    Assim que James Bond, o 007 malicioso e persuasivo interpretado por Sean Connery, assina a foto de Tatiana Romanova, sua lindíssima bondgirl no longa-metragem dirigido por Terence Young, 007 Contra Moscou tem início, adaptando a clássica história de Ian Fleming.

    O ambiente de fundo é a Guerra Fria. O ápice da espionagem guerrilheira entre os Estados Unidos e a Rússia envolve desta vez, o Reino Unido e o MI-6, que corresponde a 007 investigar um programa de criptografia russo. Bond então parte para a Turquia, enquanto a inocente agente Romanova (Daniela Bianchi) é destinada a persuadir e colocar o espião em uma armadilha, que de fato estava armada desde o início da operação.

    Seguindo a narrativa dos filmes anteriores e dos posteriores, o tradicional plot de espionagem é certeiro e contempla diversos meios para ser conduzido. Algumas sequências ilustram um filme noir, com perseguições e entraves nos diálogos, cooperando junto a ironias e um humor sarcástico, além da conhecida elegância inglesa.

    O filme é bem dirigido. A fotografia é bela, exaltando a imponência e as cores do ambiente, principalmente em filmagens externas. O roteiro flui sem tanta naturalidade. Os diálogos são ótimos e muito bem escritos, mas algumas cenas não entregam o que o roteiro leva. Em alguns takes há falhas de comunicação, criando uma falsa perspectiva e gerando surpresas até mesmo aleatórias. Mesmo que isso não comprometa o filme como um todo, há momentos que me transmitiram uma impressão falsa do que estava por vir.

    O ápice climático, as cenas de ação e os conflitos dos personagens são os alicerces. Conduzem o filme ao longo de quase duas horas. A química entre Connery e Bianchi é fantástica, fortificando a atriz como uma das melhores bondgirls da era do ator, e de todos. Vale o acréscimo para Robert Shaw, que interpreta o agente da SPECTRE, Red Grant. Seu jeito misterioso e imponente transporta a sensação de uma interessante vilania.

    Moscou Contra 007 comprova o vislumbre, a realeza e a tradição dos filmes de espionagem. Sem forçar estereótipos, e até mesmo quebrá-los ao insinuar uma personagem russa como homossexual, é um filme bonito e, mesmo que aparente ser datado, agrada pela contextualização, sendo um dos melhores de toda a saga.  

     –

    Texto de autoria de Adolfo Molina.

  • Crítica | O Abraço da Serpente

    Crítica | O Abraço da Serpente

    O Abraço da Serpente 1

    Fruto da exploração do passado americano via cone sul, O Abraço da Serpente é um drama que explora a diferenciação entre povos distintos, tomando por base os europeus colonizadores e os índios nativos da Amazônia, falando de modo emocional e lisérgico sobre o contato humano com a natureza. Sua carreira internacional foi tão bem sucedida que o filme ficou entre os finalistas ao Oscar de filme em língua estrangeira.

    Ciro Guerra organiza uma base de roteiro simples em premissa, mas profunda se analisada em seus sentimentos transpostos em tela. A história é contada a partir do olhar de um nativo, um bravo habitante da floresta, Karamakate (Nilbio Torres), que vive sozinho e aparenta ser o último de sua tribo. Cruzando o rio, se encontram Manduca (Yauenkü Migue), um índio que se rendeu a civilização europeia, dada suas roupas, e Theo (Jan Bijvoet), um alemão que se adoentou em meio a pesquisa que realizava.

    O argumento trata de questões chave, inerentes tanto ao homem moderno como em sua face mais visceral e em contato com a natureza selvagem. A solidão de Karamakete e Theo são diferentes, mas se encontram aos poucos, compartilhando a partir dali uma viagem à procura da cura para o cientista. Logo, o roteiro se bifurca em dois momentos, apresentando uma linha temporal quarenta anos à frente, onde o etnobotânico Evan (Brionne Davis) começa a procurar a mesma planta encontrada por seu antecessor, a qual teria o poder de fazer o homem sonhar. Nesta jornada, Evan tem a ajuda de um nativo, interpretado por Antonio Bolivar.

    O Abraço da Serpente 3

    A divisão da história ocorre de modo intercalado, realizando um comentário metalinguístico, ao emular as condições especiais da mata invadida pelo homem. A compreensão do nativo entre os dois visitantes europeus claramente muda com o passar das década. Há um claro abismo entre as figuras de Theo e Evan, resumida na postura que os índios tem em relação a ambos, resultando em uma dubiedade no primeiro e na simples aprendizagem dedicada ao segundo.

    O texto usa de alguns signos óbvios, como a posse da bússola como avatar da informação universal de localização, dita pelos nativos como instrumento de democratização do conhecimento, artigo que deveria ser posse de todos, e não somente de um povo. A produção discute a purificação dos seres, determinando que este é o fator para alcançar a plenitude espiritual e não as vias religiosas comuns. O texto não tem qualquer pudor em expor os católicos civilizados como seres violentos e tirânicos, impondo suas verdades absolutas as custas da crença e da pele alheia, castigando os rebeldes que não permitem se domar ou moldar, em ambas fases as da história.

    O Abraço da Serpente trata também do contato com o natural, comum ao sujeito que vive na mata em contraponto com a evolução violenta e hostil vista no sujeito urbano que habita a Europa e a América colonizada, mostrando de maneira poética os caminhos da alma de um ser falho como o homem através da consciência incorpórea, elevando-a a patamares incompreensíveis para mentes viciadas e impuras, através da sabedoria de povos que foram dizimados pela ganância dos colonizadores que, em suas expansões, pouco se importavam com seus iguais.

  • Crítica | O Clube

    Crítica | O Clube

    306209

    Um dos filmes mais controversos de 2015, O Clube tem a difícil missão de apresentar ao espectador temas difíceis que estão entranhados no povo chileno: o abuso de padres pedófilos e a relação da igreja com a violenta ditadura de Pinochet.

    O roteiro do diretor Pablo Larraín, o mesmo do filme No, em colaboração com Guilhermo Calderón e Daniel Villalobos é conciso em seu início e consegue criar o mistério necessário que prende a atenção do público a cerca daqueles padres que vivem reclusos e que são cuidados por uma freira com um passado igualmente obscuro. A sequência de rupturas daquele universo começa na chegada de Matias, um padre que abusou de crianças e se suicida no local, motivando a chegada de Garcia, um padre progressista que deseja melhorar a igreja.

    Uma das maiores forças do roteiro reside nos personagens principais do filme. Um dos que mais chama atenção é Sandokan, um homem que persegue o padre que o abusou. A sua presença permeando a história é um dos pontos mais interessantes do roteiro para explicitar a consequência do abuso da pedofilia aos membros da Igreja e forçar um choque através da sua interação. Todos os padres criminosos não consideram que erraram, eles tentam justificar de diversas formas as barbáries cometidas.

    Os habitantes da casa, incluindo a freira, são desajustados, provavelmente, desde a infância. Por não conseguirem se enxergar assim, continuam a ter certa empatia com qualquer desvio de personalidade. Um exemplo disso é o Padre Vidal, que se apega mais a um galgo, um cachorro de corrida que eles acharam na rua, e não consegue admitir os crimes que fez a diversas pessoas sob a roupa da Igreja. Outro personagem denso é a Irmã Mônica, a freira que toma conta dos padres. Com um passado misterioso de quem abandonou a própria família, a freira defende padres abusadores, os militares durante a ditadura e até um dos sacerdotes que ajudou a encontrar lares para crianças sequestradas dos inimigos dos militares.

    Personagens que ganham dimensões humanas através de seres que não deveriam ter empatia. Ganhando mais humanidade quando realizam seus atos cruéis, como uma das cenas no final, mostrando como a Igreja Católica e a Ditadura Militar Chilena resolvia seus problemas manipulando o próprio sistema,

    A narrativa funciona como uma forma de denúncia que se propõe a discutir a pedofilia e os crimes que os padres cometeram, porém ao ir além, se torna panfletário, diferentemente de Spotlight: Segredos Revelados: filme que trata do mesmo tema. O excesso de progressismo do Padre Vidal soa falso, não condiz com o personagem e se torna caricato. Por mais que ele represente a ala reformista, durante os interrogatórios ,acaba agindo mais como um ateu fanático do que um membro que deseja construir uma nova Igreja, como ele mesmo fala. Outro ponto em que o roteiro perde força são os padres admitirem sem muita dificuldades que são gays e que a sexualidade com crianças é aceitável dentro de uma cultura celibatária, soando como um esteriótipo.

    A direção de Pablo Larraín tem alguns tropeços ao longo da trama, principalmente, nestas cenas de interrogatório. A escolha dos ângulos nestes momentos poderia mostrar melhor o desgaste e a dúvida interna dos padres sofrendo com a investigação. O diretor também poderia exigir mais de seu elenco na direção de atores. No entanto, o saldo é positivo e produz unidade ao filme. A sensação de opressão dentro da casa é permeada durante a obra inteira com imagens escuras e em contra-plongé, coerente com o fato de abrigar personagens que estão tentando se esconder da sociedade. Assim, a casa funciona como uma espécie de purgatório, onde há mais trevas do que luz, porém a pouca luz que existe é a chance da redenção através da confissão que eles tentam tanto adiar. Destaque para a cena do suicídio do Padre Matias logo no começo do filme.

    A edição de Sebastián Sepulveda poderia ser melhor. Apesar de deixar um ritmo mais lento, o filme se perde na metade e acaba cansando após tantos depoimentos. A edição de acaba sendo satisfatória no total. A fotografia de Sergio Armstrong, que trabalhou com Larraín em No, é competente no que se propõe. Tecnicamente ela poderia ter uma qualidade de definição melhor nas cenas internas da casa, mas mantém a harmonia de imagem ao usar palheta de cores azul e com pouca saturação para mostrar a falta de vida.

    O Clube vale a pena por trazer temas super relevantes e discuti-los de uma forma diferente em um filme com bons personagens.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | O Quarto de Jack

    Crítica | O Quarto de Jack

    O Quarto de Jack - poster

    Um ano após realizar Frank, obra metafórica sobre a criação artística, o diretor Lenny Abrahanson volta às telas em O Quarto de Jack, produção com maior apelo cinematográfico e com maior sensibilidade em sua narrativa. Baseada no romance de Emma Donoghue, a qual também assina o roteiro, a obra apresenta a delicada história de Joy e seu filme Jack, isolados em um quarto há sete anos, cativos de um homem conhecido como Velho Nick.

    O difícil tema do abuso sexual e psicológico vivido pelas personagens é narrado sob a ótica do garoto Jack ao recém completar cinco anos de idade. Local em que é concebido, o quarto, ao qual o título original se refere, representa o mundo palpável do garoto. A escolha de uma criança como ponto de vista narrativo faz parte de uma vertente literária que transforma a voz infantil em um observador diferente do usual, nem sempre capaz de compreender com profundidade os atos dos quais é testemunha. Obras como Pelos Olhos de Maisie, de Henry James, e Extremamente Alto e Incrivelmente Perto de Jonathan Safran Foer partem de premissas comuns a diversos romances mas reciclam seu contexto ao explorar a psicologia infantil dentro de situações-limite. Inserido neste contexto, o menino é como um personagem criado com lobos, vivendo uma visão à parte daquela narrada pela mãe e vista na televisão. Sob um espaço determinado e condicionado a uma situação desde que nasceu, o garoto observa a tudo com intensa novidade, mesmo que seja um observador limitado, como um representante de um mito da caverna.

    Mesmo sendo uma história ficcional, o enredo atinge o espectador pelo choque e se transforma em um símbolo que representa de maneira ampla, devido ao alcance do cinema, os casos anônimos de sequestro e cárcere privado. A escolha de adaptar um romance ficcional diante de histórias reais sobre casos de sequestro é favorável na exploração dramática do roteiro sem recorrer a liberdades artísticas para esconder nomes ou intensificar o relato. Ainda que não seja um testemunho, a veracidade da história se projeta em casos reais, como o de Jaycee Dugard, raptada aos onze anos de idade e encarcerada nos 18 anos seguintes em um local semelhante ao visto na produção. Autora do livro Vida Roubada, sobre seu longo período vivendo sobre o jugo de uma família, Dugard narra sem nenhuma projeção o drama vivido ano após ano em companhia de seu captor. Se literariamente a obra não transcende nenhuma barreira, é forte suficiente pelo intenso relato.

    A trama delimita bem o espaço-tempo em cena, desenvolvendo tanto a intensa agonia das personagens no cárcere, e a maneira pela qual mãe e filho se unem para viver um universo paralelo sob o peso da dor, como demonstrando quanto seria difícil um processo de adaptação de volta à sociedade. A narrativa é bem conduzida no limite entre um tema explosivo, de alto impacto, e a vertente dramática, ainda que em sua parte final o drama se estabeleça em um tom mais leve do que inicialmente. Em cena, Brie Larson se destaca centralizando a agonia dos anos aprisionada e a dor de uma personagem que perde a liberdade devido ao delito doentio de outra pessoa. À procura de verossimilhança para a interpretação, a atriz revelou que se condicionou em espaços fechados para compreender a sensação de aprisionamento de sua personagem. Sem recorrer a uso de maquiagens, aliado a uma fotografia pálida de Danny Cohen, O Quarto de Jack se transforma em uma cruel representação da realidade em um bom drama.

  • Crítica | 13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi

    Crítica | 13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi

    13 Horas 1

    O cinema do diretor de cinema Michael Bay normalmente é criticado por seu caráter pueril, repleto de explosões desnecessárias, duração longa e preciosismo narrativo. Exceção feita a Sem Dor, Sem Ganho, sua filmografia recente pouco se diferenciou de sua marca registrada, em especial pela trilogia Transformers e seu mais recente capítulo que mistura continuação e reboot, em A Era da Extinção. As expectativas em relação ao seu décimo segundo longa-metragem eram bastante diferentes, já que todo o marketing em volta de 13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi prenunciava um filme mais sério e contido.

    A premissa da adaptação literária do livro de Mitchell Zuckof é realizada por Chuck Hogan, escritor do livro Prince of Thieves, o mesmo que gerou Atração Perigosa de Ben Affleck. Apesar das boas credenciais, o drama dos militares que adentram o território líbio é exibido de um modo bastante melodramático, sub aproveitando inclusive os dotes de John Krasinski, que vive o herói da jornada Jack Silva.

    Incrivelmente Bay consegue compilar um filme em menos de 150 minutos, fato raro em suas últimas incursões na sétima arte, e que nem por isso garante uma história enxuta. A primeira hora é dedicada basicamente a estabelecer que os homens designados para aquele trabalho não são monstros insensíveis, e sim valorosos guerreiros que sentem saudades de suas famílias, apelando inclusive para cenas adocicadas e de pouco valor além do pueril e comum discurso patriótico cego.

    O texto guarda espaço para discussões bobas, ameaças entre alistados de patentes diferentes e ultimatos feitos por um personagem inútil à trama para outro, o que faz zerar ainda mais toda a tentativa de drama estabelecida no argumento. A descida de qualidade inclui até um momento que deveria ser de tensão, com agentes estrangeiros metralhando uma bandeira dos Estados Unidos da América, cuja patética forma faz esgotar a possibilidade de se levar o filme a sério a partir dali.

    A agonia da espera e expectativa servem de artifício metalinguístico, já que personagens e público vivem esta mesma experiência, com os primeiros temendo a morte, enquanto o espectador sofre com a duração do drama mal construído, arrastado ao extremo mesmo em se tratando do filme mais curto do diretor (excetuando comédias) desde A Ilha.

    A fita tenta emular momentos de Guerra Ao Terror, mas sem a sutileza e talento que são típicos de Kathryn Bigelow, substituindo esses artigos por uma forte carga de islamofobia. Embora as cenas de ação consigam emular uma violência que está em desuso no cinema hollywoodiano recente, ao focar em dilacerações e deformação de corpos, não há como salvar o resultado final.

    Um dos muitos personagens genéricos presentes na história, Dave Boon Benton (David Denman) lê em seu momento de lazer o clássico O Poder do Mito, de Joseph Campbell, que resume a tentativa de história proposta no longa, ao demonstrar um maniqueísmo exemplar ao retratar os soldados que tentam, a todo custo, entrar para os anais da história militar de seu país através de uma tola e datada jornada heroica. O paralelo com o monomito e com esse tipo de trajetória é o máximo de conteúdo que Bay e Hogan propõem ao seu público, não conseguindo sequer justificar o tosco folheto propagandista como máscara de filme anti-guerra, resultando em mais um produto patético do cinema de guerra estadunidense.

  • Crítica | O Novíssimo Testamento

    Crítica | O Novíssimo Testamento

    O Novíssimo Testamento - poster

    Como tema, a religião sempre se traduz como sensível na discussão. O conflito entre fé e incredulidade permanece ecoando por séculos e as diversas parábolas narrativas com a mensagem cristã, bem como seus doogmas, transformaram-se em temas para diversas histórias, tanto por uma vertente explicitamente religiosa, voltada para os fiés, como o recente Os Dez Mandamentos – O Filme, adaptação da novela da Record, como produções que partem de histórias específicas e adquirem um novo viés narrativo como A Última Tentação de Cristo e Êxodo: Reis e Deuses.

    Dirigido e escrito por Jaco Van Dormael, O Novíssimo Testamento parte da bases dos evangelhos rumo a uma trama de realismo fantástico para apresentar um Deus burocrático, que sente cansaço com sua criação, tratando sua própria família de maneira oposta aos ensinamentos propagados em suas escrituras. Rabugento e mal humorado, o criador permanece cuidando de seu universo a partir de um computador. Morando em algum local da Bélgica com sua esposa e a filha de dez anos, o patriarca sente o fardo de anos e anos executando o mesmo trabalho. Cansada da índole do pai, a filha foge de casa para promover um novo testamento. Antes de ir embora, contudo, a garota invade o computador do pai e envia a todos os habitantes da Terra a informação sobre a data de suas mortes.

    A trama é dividida em partes simbolizando os livros bíblicos, inicialmente, apresentando a fuga da garota para a busca de discípulos para compor o novíssimo testamento do título. A vertente do humor improvável, destacando a figura ranzinza do pai, estabelece uma crítica contra a tradicional visão do criador. A paródia aproxima Deus dos homens no tédio do cotidiano e lhe dá contornos malévolos ao decidir viver rindo de nossa miséria. Todos os problemas humanos, incluindo decepções simples, como o pão caindo com o lado da manteiga no chão, seriam leis divinas feitas sob abuso de autoridade para rir da desgraça humana diária. Atos de um homem egoísta à procura de diversão e vingança em não ser louvado como deveria, sendo a morte um dos poucos triunfos do criador, um feito diminuído pela filha ao divulgar as datas da morte de todos pelo globo.

    Longe de casa, a garota procura discípulos para compor o novo testamento, e cada capítulo destas personagens apresenta-as de maneira distinta daquela apresentada em cena. São homens caracterizados por extremos, vivendo à margem de si mesmos. Ainda que a história as mostre como personagens limítrofe e quase imorais, sua índole não parece nociva. A revelação das mortes propagadas pela filha carrega a mensagem da finitude, um ato que possibilitaria aos humanos viverem com mais coerência os desejos e sonhos, visto que não mais havia o medo da morte.

    Conforme agrega discípulos com histórias incomuns, o roteiro perde equilíbrio sob um verniz extremamente metafórico. Falta uma base realista para que o fantástico seja desenvolvido com precisão. Os  símbolos surgem cena após cena e se amontoam sem significados aparente, beirando um vazio interpretativo. Aspecto que faz o público considerar uma obra aberta à reflexão, sem dúvida, uma vertente possível se cada símbolo ou metáfora corresponder a um significado aparente. Ao exceder-se nessas camadas, a história perde sua força pelo exagerado.

    Van Dormael demonstra força ao desenvolver sua paródia mas a leva a um momento insustentável, incapaz de lidar com o simbolismo de seu próprio roteiro, ainda que o argumento seja interessante como base. A visão paródica talvez seja o motivo pelo qual a produção tenha conquistado indicações em diversas premiações europeias. Ainda assim, insatisfatória como filme.

  • Crítica | Shaun: O Carneiro

    Crítica | Shaun: O Carneiro

    Shaun - O Carneiro - poster

    Mark Burton e Richard Starzak dão à luz a animação Shaun – O Carneiro, focada no personagem título e no rebanho que tradicionalmente o acompanha na fazenda. Cansado de ser tosquiado rotineiramente, o personagem – dublado por Justin Fletcher – começa a tencionar novos rumos, planejando uma audaciosa fuga da rotina de execução bem simples, seguindo o passo de como seus produtores conduziram a animação.

    O roteiro é bastante formulaico, apresentando todas as etapas da jornada de libertação das ovelhas em busca de novos ares. O texto se baseia em uma série televisiva homônima, criada por Rick Park, o mesmo responsável por animações anteriores como Wallace e Gromit e Fuga das Galinhas. A escolha por não compreender diálogos praticamente, exceto por balbucios, demonstra que o caráter do filme é ligado a uma faixa etária mais baixa do público infantil, mas que em momento nenhum repele a atenção do adulto mais exigente, já que as situações pitorescas refletem também o lugar comum do homem moderno.

    O ambiente estabelecido no campo revela além de uma abordagem bucólica da Europa, mas também a possibilidade de um universo compartilhado entre as animações de Park, já que todas as desventuras de seus personagens se passam em ambiente e sítio, ou tomam este lugar como ponto de partida.

    A relação entre os animais e o Fazendeiro (John Sparkes) é bastante curiosa, tendo por princípio uma troca de exploração, passando por uma interdependência que soa harmoniosa e não forçada, uma vez que há ligação sentimental entre as partes nos pouco menos de noventa minutos do longa metragem. Todas as viagens que o roteiro oferece em relação ao personagem humano de maior destaque apresentam um mundo de possibilidades normalmente sonhado por quem habita a vida inteira no campo, valorizando, por fim, o bucólico e a simplicidade do companheirismo presente no dia a dia de quem tira da própria terra o seu sustento.

    Os momentos finais do filme se valem de uma figura vilanesca improvisada de última hora, que serve basicamente para dividir o cunho heroico entre o humano e seus animais, que não só lhe provém como causam espécies de sentimentos muito caros e estimados. A docilidade do desfecho passa longe de ser incômoda, assim como a quase total ausência de diálogos, surpreendendo o espectador em quanto a sua história se vale do visual, sem subestimar sequer a parcela infantil de seu público.